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Os determinantes sociais de saúde

No documento marcelodossantoscampos (páginas 126-132)

5 UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE

5.2 O CUIDADO COMO UMA POLÍTICA SOCIAL

5.2.3 Os determinantes sociais e as determinações sociais da saúde

5.2.3.2 Os determinantes sociais de saúde

O ressurgimento das discussões a respeito da determinação social da saúde, a partir da “revitalização da epidemiologia social”, ocorre pelo enaltecimento dos chamados determinantes sociais da saúde (DSS), que subsidiaram o fomento de um intenso debate, cuja centralidade incidia no tema “desigualdades”, devido à constatação de disparidades nas condições de vida e de trabalho, no acesso diferenciado a serviços assistenciais, na distribuição desigual de recursos de saúde e nas suas consequentes repercussões sobre a mortalidade e morbidade de diferentes grupos sociais (ALMEIDA-FILHO, 2009). Tal contexto de reaparecimento da temática foi, em grande medida, estimulado pela OMS, que, em 2005, criou a Comissão para os Determinantes Sociais de Saúde (CDSS), cujo objetivo era promover discussões e estudos sobre os DSS, convocando as autoridades mundiais para um esforço de decisão coletiva no combate às desigualdades sociais (GARBOIS, et al., 2017).

A CDSS compreende como DSS as “circunstâncias em que as populações crescem, vivem, trabalham e envelhecem, bem como os sistemas implementados para lidar com a doença” (GARBOIS, 2017, p. 66). Tais circunstâncias, de acordo com essa comissão, são moldadas, por outro lado, por forças de ordem política, social e econômica, em que as condições de vida se apresentam potencialmente determinadas pelo lugar em que os sujeitos se encontram na hierarquia social. A construção desse conceito foi realizada a partir do clássico modelo explicativo dos DSS criado por Dahlegren e Whitehead (COMISSÃO PARA OS DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE, 2010) e que utilizarei a partir da Figura 1 para tecer algumas explicações sobre o que ele se propõe a fazer.

Figura 1- Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Dahlgren e Whitehead e adotado pela OMS.

Observa-se, nesse modelo, que os DSS se encontram dispostos em camadas sobrepostas que se afastam do centro, no qual se encontra aquilo que representaria as características individuais dos sujeitos, em direção à parte mais externa, que representaria os macrodeterminantes do processo saúde e doença. Nesse sentido, na base do modelo, encontram-se todas as características individuais das pessoas, como idade, sexo e fatores genéticos, para, contiguamente, apresentar os comportamentos e estilos de vida individuais. Esses últimos se localizam no entremeio dos fatores individuais e os DSS, visto que os comportamentos são, além de produzidos pelas opções individuais, influenciados por outros determinantes, como acesso a informações, lazer, local e tipo de moradia, entre outros. A camada seguinte representa as redes sociais e comunitárias de apoio que expressam os variáveis níveis de organização e coesão social. Posteriormente, encontram-se os fatores relacionados às condições de vida e de trabalho dos sujeitos, a disponibilidade de alimentos, bem como as possibilidades de acesso aos serviços essenciais, tais como saúde e educação. A partir dessa camada podem-se apreender os diferenciais de vulnerabilidade a que estão expostos os indivíduos que se encontram em condição de pobreza. Por fim, na parte exterior do modelo, encontram-se os macrodeterminantes relacionados às condições econômicas, sociais e ambientais da sociedade, assim como os determinantes supranacionais, como o processo de globalização (COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2008).

Em 2011, na Conferência Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde, a OMS adotou um novo marco conceitual sobre DSS, ao incorporar no relatório “Diminuindo diferenças: a prática das políticas sobre determinantes sociais de saúde” (OMS, 2011). Nesse modelo, proposto por Solar e Irwin (2010), os determinantes estruturais operam por meio de um conjunto de determinantes intermediários, moldando os efeitos na saúde (Figura 2). O sentido dessa estrutura é expressar como os mecanismos sociais, econômicos e políticos originam um conjunto de posições socioeconômicas que representam a estratificação das populações de acordo com a renda, a educação, a ocupação, o gênero, a raça/etnia, entre outros fatores. Tais posições socioeconômicas, além de determinarem, em última instância, as diversas vulnerabilidades e exposições diferenciadas nas condições de saúde (determinantes intermediários), refletem o lugar ocupado pelos sujeitos na hierarquia social.

Os autores destacam alguns fatores contextuais relacionados à produção e manutenção dessa hierarquia: 1) estruturas de governança formais e informais relacionadas com mecanismos de participação social da sociedade; 2) políticas macroeconômicas, incluindo políticas fiscais, monetárias, políticas de mercado e a estrutura do mercado laboral; 3) políticas sociais nas áreas de emprego, posse de terra e habitação; 4) políticas públicas em áreas como educação, saúde, água e saneamento, assim como a extensão e a natureza de políticas

redistributivas, de seguridade social e de proteção social; 5) aspectos relacionados com a cultura e com os valores sociais legitimados pela sociedade (SOLAR; IRWIN, 2010).

Ainda de acordo com Solar e Irwin (2010), os fatores intermediários dizem respeito ao conjunto de elementos categorizados em dadas circunstâncias materiais (como condições de trabalho, qualidade do ar, acesso e disponibilidade a alimentos e água, condições de moradia, tipo de vizinhança), fatores comportamentais (estilo de vida, consumo de tabaco, álcool ou outras drogas, sedentarismo), e psicossociais (estressores psicossociais, circunstâncias estressantes, falta de apoio social). Nessa perspectiva conceitual, o sistema de saúde também é considerado um determinante intermediário, visto que, especialmente a partir dele, podem advir restrições do acesso. De maneira transversalizada estão a coesão social e o capital social que perpassam as dimensões estrutural e intermediária.

Figura 2- Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Solar e Irwin.

Fonte: Solar e Irwin (2010).

Segundo Garbois et al. (2017), em ambos os modelos conceituais dos DSS, as causas estruturais são projetadas de maneira diferenciada, da mesma forma que também são distintas as posições de relevância e significações que tais causas alcançam. No modelo proposto por Dahlgreen e Whitehead (Figura 1), as causas estruturais encontram-se no limite mais periférico, sendo denominadas determinantes distais ou macrodeterminantes econômicos e sociais. Tais autores compreendem que a projeção periférica fornecida aos determinantes estruturais, somada à ênfase dada à camada intermediária, na qual se encontram as condições de vida e de trabalho, bem como a dos fatores individuais, demonstra que, na construção dessa noção de DSS, pouca importância conceitual foi atribuída aos determinantes estruturais.

Diferentemente desse modelo, o construído por Solar e Irwin (Figura 2) tem a centralidade do destaque nas causas estruturais, que se aproximam da ideia de base ou raiz, no sentido de representarem primazia causal, a partir da qual os fatores estruturais atuam na

geração das iniquidades em saúde e na modulação das condições de vida. Destaca-se, também, que o desenho desse modelo explora o recurso gráfico das setas, que remetem à compreensão das relações e conexões entre os determinantes estruturais e os determinantes intermediários da saúde (GARBOIS, et al., 2017).

No entanto, essa abordagem da OMS sobre os DSS tem sido alvo de críticas de intelectuais que se dedicam à análise da temática dentro da saúde coletiva e da medicina social latino-americana, particularmente no que se refere à diferenciação entre determinantes sociais de saúde e a determinação social do processo saúde e doença. Há um entendimento, por parte desses intelectuais, que a OMS, ao abordar os DSS a partir da perspectiva de “fatores” (condições de vida, trabalho, moradia, educação, transporte, etc.), “contextos”, “circunstâncias” e “condições”, opera dentro de uma perspectiva reducionista e fragmentada da realidade social (GARBOIS; et al., 2017). Logo, tal abordagem encobre sobremaneira a compreensão da pluralidade de processos socioeconômicos, culturais, eco-biológicos, psicológicos estruturadores das dinâmicas de articulações que envolvem o objeto saúde-doença. Isso porque o perfil patológico não é reconhecido como produto de um processo de criação e transformação característico de cada sociedade, bem como de momentos históricos particulares. Concomitantemente, essa perspectiva avaliativa dos DSS adotada pela OMS converte as estruturas sociais em variáveis e não em categorias de análise do movimento de produção e reprodução social (ARELLANO; ESCUDERO; CARMONA, 2008; BREILH, 2013; TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009).

Segundo Garbois et al. (2014), o paradigma que sustenta essa maneira reducionista de apreender os determinantes e as determinações sociais de saúde assenta-se em uma cisão absoluta entre a natureza e o ser humano, considerando a primazia da dimensão quantitativa, em que os componentes da realidade investigada são fragmentados e divididos numa perspectiva de valoração estatística, fomentando o enrijecimento do rigor da objetividade e da neutralidade científica. Juntamente a essa fragmentação, tal racionalidade encerra o campo social em um domínio específico e circunscrito, como se este fosse distinto dos demais campos, como o da biologia, direito, geografia, psicologia, entre outros. O social, nesse sentido, seria apenas útil para tentar explicar os aspectos residuais deixados por outras disciplinas diante da impossibilidade de abarcá-los. Configura-se, assim, uma perspectiva exteriorizada do social à dimensão saúde.

A construção desse modelo iniciou-se a partir da revolução científica do século XVII no âmbito das ciências naturais, tendo como atributo necessário e essencial a criação e

enunciação de leis universais. Segundo Garbois, Sodré e Dalbello-Araújo (2017), tal paradigma se apoiava

No princípio do determinismo, fundado a partir da ideia de ordem e estabilidade do mundo, e anunciava que a natureza é regida por constantes e regularidades e que caberia à ciência descobri-las. Aplicado ao campo da investigação científica, esse princípio resultou na premência dada à busca das relações de causalidade entre os fenômenos. Nos séculos seguintes (XVIII e XIX), os pressupostos que apoiaram o desenvolvimento dos métodos de excelência para a investigação dos fenômenos naturais foram considerados como igualmente oportunos para basearem a investigação dos eventos sociais, especialmente a partir da corrente filosófica positivista (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017, p. 70).

No que se refere e essa corrente filosófica positivista, tais autores julgam essencial revisitar os argumentos concebidos no desenvolvimento da racionalidade científica moderna, sobretudo no campo da sociologia, em especial a positivista de Émile Durkheim (1858-1917), considerado um dos autores clássicos que consolidou a sociologia como disciplina acadêmica, a partir de rigorosos procedimentos de pesquisa e nos quais residem os preceitos filosóficos que dão corpo a essa noção reduzida dos determinantes sociais, conforme presente neste momento da discussão.

O preceito central da ciência positiva de Durkheim é a noção de “lei social natural”, segundo a qual os acontecimentos humanos passam por uma explicação “natural”, na medida em que compartilham a condição de constância e regularidade presentes na interpretação dos fenômenos naturais. O desdobramento epistemológico desse pressuposto foi o de que as pesquisas das sociedades deveriam utilizar os mesmos critérios, regras e procedimentos usados nas ciências naturais. Assim, as ciências sociais deveriam limitar o estudo dos fenômenos sociais à observação e à explicação causal, possibilitando a interpretação dos “fatos sociais” que regem as relações humanas e sociais, a partir da ótica de objetividade científica, isenta de qualquer tipo de julgamentos de valor e de ideologias (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017).

Durkheim (2007), em sua produção As Regras do método sociológico, ao criar o conceito de “fato social”, constituiu e delimitou o que seria o objeto de investigação da sociologia, de maneira que ela pudesse se tornar uma ciência autônoma. Segundo esse autor, fato social é

[...] toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais (DURKHEIM, 2007, p. 13).

O fato social, portanto, é toda maneira de agir, pensar e sentir dos indivíduos, estando não apenas exterior a eles, mas dotado de uma força imperativa e coercitiva que a eles se impõe. Ele se difere dos fenômenos orgânicos, visto que consiste em representações e ações, da mesma maneira que se difere dos fenômenos psíquicos, já que estes somente existem na consciência individual. Assim, aplica-se o termo social já que não é o indivíduo o substrato para a produção desse fato, mas a sociedade, seja a política em seu conjunto ou dos grupos parciais que nela se encerra (DURKHEIM, 2007).

Segundo Durkheim (2007), essas maneiras coletivas de agir e pensar, por apresentarem-se como uma realidade externa, que precede os indivíduos por serem elaboradas por gerações anteriores, são internalizadas e assimiladas pelo recurso da educação, compreendida como um esforço contínuo e sistemático de socialização do indivíduo no meio em que vive, desde os primeiros anos de vida. Consequentemente, as maneiras de sentir, de agir e de ver o mundo são aprendidas, transformando- se em hábitos e tendências, que, em última instância, são produtos dessa coerção.

A partir do momento em que os fenômenos sociais passaram a ser abordados cientificamente como “fatos”, surgiu a primeira regra essencial do método sociológico, a partir da qual os fatos sociais passaram a ser considerados como “coisas”. A análise científica da vida social, ao receber esse caráter de “coisificação”, deslocou o foco das ideias e noções individuais sobre os fenômenos sociais para centrar a atenção nas representações instituídas pela coletividade, materializadas por meio de normas jurídicas, de valores econômicos, etc. A partir desse marco normativo, Durkheim criou as normas subsequentes, entre as quais aquela segundo a qual o pesquisador, para realizar a observação dos fatos sociais, precisa distanciar-se de suas pré-noções, preconceitos e ideias formadas pelo senso comum, sendo este, por não fazer parte do domínio científico, considerado produtor de falsas evidências. Tal regra é colocada como condição primária e indispensável para que exista a possibilidade de prova e verificação dos fatos (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017).

Nesse sentido, o método científico deve primar pela objetividade, de forma a ser capaz de exprimir os fenômenos através de propriedades a eles inerentes e não daquelas que provenham de uma ideia do pesquisador. A investigação, portanto, deve partir das manifestações mais exteriorizadas de um fenômeno, o que requer uma consideração, por parte do pesquisador, de aspectos dos fenômenos que se apresentam isolados de suas manifestações individuais, de maneira que sejam representados da forma mais objetiva possível. Ou seja, o que prevalece é a forma como o fenômeno se apresenta na coletividade, em sua expressão mais generalizada:

Vê-se aí, como a propriedade de ‘coisa’ atribuída ao ‘social’ retira-lhe a dinamicidade e a organicidade inerentes. Para que os fenômenos sociais

possam ser objetivamente abordados, precisam apresentar uma fixidez, uma medida precisa, que se mostre por si mesma e que independa do ponto de vista do pesquisador, eliminando tudo o que tem de variável e de subjetivo. As regras estabelecidas pelo positivismo de Durkheim não apenas trouxeram, mas, principalmente, legitimaram, no interior das Ciências Sociais, os pressupostos da objetividade, fundamentada na reificação do social enquanto ‘fato’, a partir de duas características consideradas indispensáveis para a validação científica: a exterioridade, ou seja, a capacidade de mostrar-se como uma realidade independente e externa ao indivíduo e a generalidade, ser comum a todos ou à maioria dos indivíduos. Além de exigir a neutralidade da ciência na análise dos fenômenos sociais, na medida em que colocou como fundamentalmente necessário o afastamento das pré-noções, crenças e pre- conceitos do pesquisador na observação dos fatos sociais (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017, p. 72).

Nesse sentido, categorias analíticas de fundamental importância para as ciências sociais, tais como a reprodução social, modos e relações de produção, ficam apagadas dentro dessa perspectiva de abordagem, dificultando a construção de um pensamento crítico centralizado na essência da organização social da sociedade de mercado e do regime de acumulação capitalista, os quais operam a partir de processos de geração e reprodução da exploração humana e da natureza, com suas marcadas consequências na saúde. Portanto, o modelo de DSS adotado atualmente pela OMS (Figura 2), mesmo tendo as “causas estruturais” das desigualdades sociais em saúde assumindo um papel de maior relevância, ainda assim representam limitações na medida em que aparecem esvaziados de criticidade capaz de abarcar a complexidade da realidade social, o que, em última instância, impossibilita a análise da díade acumulação econômica – exclusão social, como eixo estruturante de uma reprodução ampliada das desigualdades sociais de uma forma geral e na saúde em particular (BREILH, 2013).

No documento marcelodossantoscampos (páginas 126-132)