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O SURGIMENTO DE UMA RACIONALIDADE MÉDICA NO BRASIL

No documento marcelodossantoscampos (páginas 80-89)

4 A HISTÓRIA DA MEDICINA NO BRASIL

4.1 O SURGIMENTO DE UMA RACIONALIDADE MÉDICA NO BRASIL

Em que medida o médico contemporâneo, a despeito de todos os avanços tecnológicos, é atravessado por subjetivações que foram sendo produzidas ao longo da história da medicina ocidental e, em particular, a brasileira? Que elementos constitutivos da emergência de uma racionalidade médica no Brasil, marcada, em seu processo de construção sócio-histórica, por influências indeléveis do pensamento racial branco europeu, ainda podem estar presentes nos discursos e práticas de médicos brasileiros?

Com o intuito de melhor transitar entre essas perguntas, numa perspectiva de minimamente vislumbrar algumas respostas, optei, nesta seção, por dialogar com as duas principais vertentes históricas do saber médico brasileiro do final do século XIX e início do XX, que foram gestadas a partir da instituição das duas primeiras escolas médicas no Brasil: a Escola de Medicina da Bahia e a do Rio de Janeiro. Ambas representaram o final de um longo período de inexistência da medicina científica no Brasil colônia, revolucionando a assistência médica no país, servindo de alicerce para a produção científica de médicos da Bahia e do Rio de Janeiro, com a consequente construção e consolidação da racionalidade médica brasileira.

Nesse sentido, da trajetória dessas duas escolas médicas, tentei apreender: as influências teóricas raciais europeias; pontos comuns e de divergência; a correlação da prática médica e a antropologia; a atuação médica perante o Estado; a participação em disputas de poder; a construção de saberes e suas implicações sociais; e sobretudo elementos constitutivos de dada racionalidade que se desdobraram, a despeito do intervalo secular, em influências na prática médica atual.

De acordo com Schwarcz (1993), a medicina europeia no século XVIII transformava- se em atividade pública, tendo na figura do médico um instrumento da nação, cujo objetivo era cuidar da saúde dos corpos, ficando a cargo do clero o cuidado da saúde das almas. A profissão médica, com isso, passou a adquirir uma posição de destaque, não mais remunerada por ações individuais, mas pelo financiamento estatal direcionado a um trabalho que se configurava, também, como o de cientista e pesquisador, visto que as universidades passaram a ser responsáveis por uma formação médica.

Dentro desse contexto europeu de investimento científico na construção de uma racionalidade médica no século XVIII, exceção se fazia para Portugal, em cuja Universidade de Coimbra, onde se graduou a maior parte dos médicos que atuavam na metrópole e em suas colônias, a pesquisa e o trabalho empírico eram quase inexistentes. Tal anacronismo e ineficiências do ensino médico português reverberavam na colônia brasileira que, impedida por mais de trezentos anos de fundar instituições de ensino superior, ficava, no campo de cuidado à saúde, submetida aos problemas gerados pela falta de profissionais especializados e conhecimentos científicos atualizados (SCHWARCZ, 1993).

De acordo com Ferreira (2003), durante muito tempo, uma parcela significativa dos estudos sociológicos que se dedicaram a essa temática apontava que o processo de incorporação da medicina no Brasil não experienciou resistências socioculturais, particularmente pela inexistência de um saber chancelado pelo cientificismo com relação às técnicas de cura no período colonial. No entanto, a história desvela que, nesse período, diante de inexpressiva participação de médicos com formação acadêmica, era abundante o exercício de uma medicina fundamentada em três bases culturais distintas – a indígena, a africana e a europeia (portuguesa) –, de modo que nesse cenário, protagonizavam curandeiros, boticários, raizeiros, parteiras, benzedeiros, padres e os chamados “médicos práticos”15.

Até 1772, todas as atividades que se relacionavam com a “arte de curar” eram fiscalizadas pelos cirurgiões-mores do Reino16. Posteriormente, tais fiscalizadores foram

15 Médico prático é aquele que exerce a profissão de médico sem ter a formação acadêmica. Ele aprendeu a arte de curar com algum médico credenciado e se submeteu aos exames que o permitem atuar. Essa situação foi comum no século XIX no Brasil (FIGUEIREDO, 2005).

16 Em Portugal, o cargo de cirurgião-mor do Reino foi criado durante o reinado de Afonso III (1245- 1279), mas só recebeu regulamento próprio em 25 de outubro de 1448, ficando responsável pela direção e fiscalização das artes físicas e cirúrgicas. A carta régia de 25 de fevereiro de 1521 separou e definiu as atribuições do cirurgião-mor e do Físico-Mor, cargo criado em 1430 cujas atribuições envolviam os negócios de higiene e saúde em todo o Reino e domínios ultramarinos. Seguiram-se novas regulamentações para o cirurgião-mor e o físico-mor, até os cargos serem extintos pela lei de 17 de junho de 1782, quando foi criada a Junta do Protomedicato, que assumiu e centralizou essas atribuições. O cargo de cirurgião-mor do Reino, Estados e domínios ultramarinos foi estabelecido pelo decreto de 7

substituídos pela junta perpétua Protomedicato, que era representada por deputados e enfermeiros diplomados em Coimbra. As atividades realizadas pelos “práticos” deveriam ser habilitadas com “cartas de autorização”, as quais previam poucos requisitos, como uma certificação de aprendizado do ofício junto a outro profissional, bem como um exame de qualificação realizado diante da junta, que, invariavelmente, aprovava todos os candidatos.

Diante da carência absoluta de médicos e cirurgiões, tais “práticos” não passavam de iniciantes, geralmente mestiços e analfabetos, sem posição de prestígio social, cuja atuação se amalgamava no meio de uma multidão de curandeiros, parteiras, dentistas e boticários. Tal fato retratava não somente a falta de profissionais médicos qualificados no Brasil, mas sobretudo as dificuldades em seguir a carreira médica, visto que os livros franceses tinham entrada proibida na colônia, além da grande dificuldade de acesso à biblioteca médica. Somando-se à ausência de vantagens profissionais, desconhecia-se a flora brasileira, o que, por vezes, ocasionava ineficácia terapêutica. Ressaltando que, até 1800, a profissão médica era absolutamente vedada aos brasileiros, não restando outra alternativa senão a prática ilegal (SCHWARCZ, 1993; TERRA, 2014).

Ainda assim, na sociedade colonial, em face da doença e da morte, a população exigia a presença do médico. Para o Rei de Portugal, a manutenção da vida na colônia era uma questão político-administrativa estratégica, de modo que indicava um indivíduo profissionalizado para assumir a função de médico na colônia, para garantir efetivamente a existência dos súditos, cuja função era expandir a colonização (TERRA, 2014). Entretanto, tal determinação real não significava, em última instância, o alcance de seu intuito, visto que era insuficiente o número de médicos qualificados para tal designação:

Na prática, cirurgiões, boticários e leigos assumiram o papel reservado exclusivamente aos doutores em medicina. A favor dessa subversão da ordem, estava também o fato de que a arte médica executada no Brasil pelos escassos médicos não se distinguia radicalmente daquela exercida pelos populares. A medicina culta assemelha-se à medicina popular, na medida em que expunha uma concepção da doença e apregoava um arsenal terapêutico fundado numa visão de mundo em que coexistiam o natural e o sobrenatural, e experiência e a crença (FERREIRA, 2003, p. 102).

Somente no final do século XIX, iniciou-se o movimento de produção de um pensamento médico moderno no Brasil. Esse movimento foi deflagrado por transformações

de fevereiro de 1808, durante a estada da corte portuguesa na Bahia, tendo sido nomeado para o cargo o médico brasileiro José Correia Picanço, cirurgião da Casa Real e deputado da Real Junta do Protomedicato. Para maiores informações consultar: Cirurgião-mor do Reino, Estado e Domínios ultramarinos. Disponível em: http//: http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-periodo-colonial/154- cirurgiao-mor-do-reino-estados-e-dominios-ultramarinos

históricas específicas da sociedade brasileira, que necessitava da formulação de uma nação que se adequasse ao universo capitalista e, de maneira incipiente, criasse possiblidades para que a medicina brasileira, após séculos de ensino precarizado, alcançasse o patamar de uma ciência legitimada, a exemplo do que já ocorria nos países europeus (HERSCHMANN, 1994).

Schwarcz (1993) enfatiza que, com a chegada da família real e da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, esse cenário de precariedade foi potencializado pela multiplicação de problemas higiênicos e sanitários. Esse contexto motivou a implantação, na própria colônia, de escolas promovendo a formação de profissionais que atuassem como cirurgiões, já que somente a Coimbra era dada a autorização para a formação da medicina clínica, mantendo o controle em todos os vastos domínios e reinos de Portugal. Sendo assim, em 18 de fevereiro de 1808, D. João VI, de passagem pela Bahia, criou a Escola de Cirurgia da Bahia e, em 02 de abril de 1808, criou a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro.

Em 1813, essas duas escolas passaram por uma reorganização, criando-se duas academias médico-cirúrgicas, uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro, o que implicou maior institucionalização dos cursos médicos. O programa foi reformulado e ampliado, com a implementação de novas regras, destacando-se a que estabelecia o estatuto profissional dos alunos recém-formados, que previa aos aprovados nos exames do quinto ano a carta de “cirurgião aprovado”; aos alunos que desejassem repetir as disciplinas do quarto e quinto anos era concedida a graduação de “formados em cirurgia”, equivalente a uma espécie de bacharelado na área (SCHWARCZ, 1993).

Embora as duas academias diplomassem, ininterruptamente, novos cirurgiões, e embora tenham sido implementadas diversas melhorias na época, permanecia a carência desses profissionais, diante da crescente demanda por cuidados que se desenvolvia no Brasil. Dessa forma, esforços foram feitos no intuito de mitigar tal problema, tendo destaque o que foi realizado em 26 de agosto de 1830, quando o país, recém independente, ofereceu favores escolares aos universitários brasileiros que residiam em Coimbra, Paris e Monpellier, a fim de que retornassem ao Brasil (SCHWARCZ, 1993).

A despeito das diversas manobras utilizadas como tentativa de solucionar a carência de profissionais médicos no país, eram inúmeras as situações que desvelavam a precariedade das academias. De acordo com Schwarcz (1993), além da baixa assiduidade dos alunos e lentes, estes eram mal qualificados para a docência, ministrando aulas pouco didáticas, sem móveis e utensílios para as aulas regulares, e aqueles apresentavam aproveitamento insatisfatório. Tal fato alimentou o clamor pela reforma das academias brasileiras do Império, o que se, por um lado, foram criadas espelhando-se nas escolas portuguesas, por outro, reproduziam, em certa

medida, a falta de qualidade das escolas lusitanas, quando comparadas a outras instituições de formação europeia.

De acordo com Schwarcz (1993), o processo de consolidação da medicina no Brasil como prática diversa das até então praticadas pelos chamados práticos e pelos curandeiros, barbeiros e sangradores, levou à fundação, em 1829, da Sociedade de Medicina, organizada nos moldes da Academia Francesa. Teve como primeira incumbência analisar as diferentes propostas de reforma do ensino médico, culminando em um projeto transformado em lei em outubro de 1832, que transformou as academias médicos-cirúrgicas em “escolas” ou “faculdades de medicina”, as quais passaram a ter o direito de conceder o título de doutor em medicina, de farmacêutico e de parteiro.

Inicialmente, nessas faculdades houve a adoção dos regulamentos das escolas de Paris, fato modificado nos anos seguintes, quando nessas instituições passaram a vigorar novas regras e estatutos. No entanto, os avanços não foram suficientes para sanar os problemas de penúria e desorganização: os professores eram pouco preparados para as novas atribuições, transformados em doutores pelo decreto de 1832 e contratados por critérios nada científicos, muitas vezes seguindo a lógica da sucessão por laços de parentesco (SCHWARCZ, 1993).

Os primeiros quarenta anos das faculdades de medicina brasileiras foram marcados por um esforço de institucionalização em detrimento de um projeto científico original. Dessa forma, prevalecia a benevolência nos exames de certificação, mestres desqualificados para a função, verbas e dotações orçamentárias insuficientes, além de desrespeito por parte dos alunos (maioria oriundos da elite) em relação aos professores. Tal cenário veio a modificar-se somente a partir da década de 1870, quando começaram a surgir alterações no perfil e na produção científica das escolas de medicina nacionais, com publicações, organização de novos cursos e aglutinação de grupos de interesses (SCHWARCZ, 1993).

Segundo Herschmann (1994) e Terra (2014), a despeito das dificuldades relacionadas ao ensino da medicina, o médico brasileiro passou a ser associado a uma prática política específica. Com as modificações nas relações sociais que transformaram o contexto sociopolítico em fins dos oitocentos, a medicina no Brasil foi adquirindo contornos de uma medicina social, muito influenciada por correntes teóricas estrangeiras, passando a atuar como um instrumento de análise da sociedade, com ares de uma ciência do social, estando, portanto, independente das inúmeras limitações e contingências referentes ao estudo da medicina:

[...] vamos encontrar os médicos analisando os fatos sociais e avaliando os aspectos relativos à conduta moral. Vamos encontrá-los diagnosticando

problemas que não caberia à anatomia patológica comprovar. Veremos esses médicos reconhecendo, reproduzindo e reprogramando a realidade social que os cercava e que constituía a matéria de sua apreciação. Vamos flagrá-los em sua atividade conformadora da vida social, vamos caracterizá-los como um foco de emissão dos preceitos morais. Em outras palavras, vamos encontrá- los produzindo conhecimento sobre a dimensão coletiva da vida humana, firmando sua especialidade como espaço de uma ciência propriamente social (ANTUNES, 1999, p. 12-13).

Na medida em que a medicina brasileira começou a lançar seu olhar para a realidade social, desvelava-se uma nova compreensão e representação da sociedade, que, analogamente, era percebida como um corpo adoecido, sendo de responsabilidade do médico a intervenção com vistas a sanar seus males. O indivíduo, com isso, deixou de ser o primado da atenção para ceder espaço à coletividade, à nação contaminada, enfraquecida e carente de intervenção. Dessa forma, a população pobre e adoecida representava um grande laboratório humano a partir do qual os desvios expostos poderiam ser escrutinados, ensejando o surgimento da figura do médico político no Brasil (SCHWARCZ, 1993).

Schwarcz (1993) aponta que, nesse momento, nasceu a noção de higiene acoplada à ideia de sanear: enquanto aos médicos sanitaristas cabia a implementação de grandes planos de intervenção nos espaços coletivos, públicos ou privados, aos higienistas competia as pesquisas, bem como a atuação cotidiana no combate às epidemias e às doenças que mais assolavam a população. Entretanto, na prática, essa divisão entre sanitaristas e higienistas nunca existiu, sendo que ambos atuavam de forma indiscriminada.

No Brasil, as inúmeras e frequentes epidemias, desde os tempos coloniais, transformavam a higiene em tema primordial: tuberculose, febre amarela, varíola, lepra, peste, sarampo, febre tifoide, mal de Chagas, beribéri, malária, coqueluche, cólera e escarlatina são alguns exemplos de doenças infectocontagiosas que alarmavam os médicos especialistas. O objetivo não era tão somente a cura das epidemias, mas, sobretudo, evitar que novos surtos aparecessem a partir de um processo de saneamento, o qual invadia escolas, igrejas, portos e lares. Prescrevia-se desde hábitos alimentares, indumentárias e costumes, até modelos disciplinares no uso dos espaços públicos e educação higiênica nas escolas (SCHWARCZ, 1993; HERSCHMANN, 1994).

O contexto sanitário e sociopolítico teve grande influência nesse processo de transformação. O primeiro referia-se às epidemias de cólera, febre amarela, varíola, entre outras, o que destacava a missão higienista reservada aos médicos. O segundo foi decorrente da Guerra do Paraguai, a partir da qual afluíram em massa doentes e sujeitos com traumas oriundos das batalhas, que demandavam atuação imediata dos cirurgiões. Outra implicação sociopolítica foi o crescimento desordenado das cidades, aumentando a criminalidade gerando problemas referentes ao uso de álcool, à falta de

saneamento, além de doenças consideradas endêmicas entre certas populações de imigrantes. Esse cenário redefinia, então, a atuação médica no país, onde surgia tanto a figura do médico missionário, obstinado em sua intenção de cura e intervenção, como a do perito em medicina legal, cujo olhar recaía sobre o criminoso com suas degenerações (SCHWARCZ, 1993).

Com isso, iniciou-se a produção de um conhecimento médico determinado por princípios metodológicos e ideológicos próprios da época, que tinha como um dos objetivos diagnosticar fatores sociais atuantes na disfunção da ordem “natural” da sociedade. Nascia, então, uma racionalidade médica brasileira, que passava a compor uma elite intelectual, que muito contribuiu para as análises e interpretações dos fenômenos sociais. No entanto, o processo de construção histórica do pensamento médico no Brasil não ocorreu de maneira linear e isento de obstáculos, uma vez que seu desenvolvimento estava justaposto à sua história política, social e intelectual.

Tanto a Abolição da Escravidão (1888) quanto a Proclamação da República (1889) promoveram profundas influências na elite intelectual brasileira. Com o advento de um Estado Republicano ainda arraigado no conservadorismo, que determinava a imersão permanente da sociedade civil nos regionalismos rurais, despertou-se nos intelectuais a ideia de que o Estado deveria impor-se na formação da Nação e do povo, tido como atrasado política e intelectualmente. Para além da construção de um novo regime político, objetivava-se a conservação de uma hierarquia social secular, caracterizada pela oposição de uma elite de proprietários rurais contra uma grande massa de escravos e uma quase insignificante classe média urbana (SCHWARCZ, 1993).

O pensamento médico-político, utilizando-se do aporte teórico na análise do social promovida pela medicina social, não somente apoiou de maneira irrestrita os objetivos para a conclusão do Estado e para o estabelecimento de uma identidade nacional, como também auxiliou em inúmeras reflexões e sugestões sobre as possiblidades de construção de um Brasil moderno, a partir de uma perspectiva positivista do progresso:

Se é bello de contemplar-se o espetáculo singelo da caridade encarnada no médico que alivia padecimentos individuaes, não é menos o daquele que compenetrado do papel social da medicina política entrona para todos os lados seus benefícios alargando incomensuravelmente o circulo de suas atividades profissionais, que na escala da perfectibilidade dos sentimentos auxilia à sociedade em sua passagem do egoísmo para o althruismo. O medico moderno digno de seu nome e condição deve pratica-la plenamente no exercício da medicina política (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1896, p. 398 apud SCHWARCZ, 1993, p. 202).

Nesse sentido, amparadas pelo paradigma da Medicina Social e dos ideais positivistas e evolucionistas, as análises sobre os males das sociedades modernas deslocavam-se das doenças

para o indivíduo, que era o receptáculo de uma patologia natural, individual e hereditária. A conformação racial do povo brasileiro passaria a representar, dentro da perspectiva do discurso médico-político amparado pela medicina social, o determinante de possibilidades e impossibilidades de um projeto civilizatório, capitalista e nacionalizante, que respondiam aos interesses de uma burguesia em transição (TERRA, 2014).

Assim, o objetivo era civilizar o povo, para que se pudesse criar uma identidade nacional capaz de garantir a ordem e o progresso numa perspectiva de atender aos interesses do capital internacional. Dessa forma, as produções teóricas da elite intelectual, composta por médicos, bacharéis e engenheiros, apontavam para uma intervenção social, almejada tanto pelo Estado, quanto pela elite econômica, de forma a garantir o monopólio do poder na nova nação (RIBEIRO, 2010).

De acordo com Corrêa (1998), em meados do século XIX, para a elite intelectual,

[...] pode ser considerada um dos momentos cruciais do debate entre a possibilidade da participação das massas na vida política do país e a reafirmação de sua exclusão. Não só os movimentos sociais de rebeldia mas também a crescente urbanização da sociedade pareciam também revelar um aumento e concentração de populações anteriormente menos visíveis, ou sob maior controle, populações que passava a ser necessário conhecer, além de controlar. Isto é, no momento mesmo em que se colocava as questões de cidadania e de nacionalidade na sociedade brasileira, tornava-se também um imperativo político definir mais claramente os critérios de inclusão/exclusão ao estatuto de cidadão nacional (CORRÊA, 1988, p. 33).

Isso posto, como o objetivo de um projeto de Estado burguês, para sanar tanto as doenças consideradas naturais quanto as morais, para as quais se delegava o suposto declínio produtivo da nação e seu atraso social, fazia-se mandatório a consolidação de políticas públicas e ações que pudessem enfrentar não só a doença, compreendida como antônimo de progresso, mas também a insipiência da população, sequestrada pelos conflitos patrimonialistas locais e submersa na conformação racial. Instituições como o Serviço Sanitário, o Instituto

No documento marcelodossantoscampos (páginas 80-89)