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O NASCIMENTO DA CLÍNICA OCIDENTAL

No documento marcelodossantoscampos (páginas 66-71)

3 O OLHAR SOBRE O PODER DA MEDICINA MODERNA

3.1 O NASCIMENTO DA CLÍNICA OCIDENTAL

Foucault priorizou a transição histórica do período clássico à modernidade, particularmente na passagem do iluminismo para o século XIX, quando se deu a ascensão da Ciência como produtora de verdades, fundamentada nos pressupostos metodológicos positivistas e empiristas. O saber, portanto, de acordo com Foucault (1990), deveria ser provável para que pudesse ser reconhecido, devendo possuir um objeto passível de observação, experimentação e análise.

Em sua obra O Nascimento da Clínica, Foucault (2008) buscou compreender o surgimento da racionalidade anátomo-clínica, que fundamentou a consolidação do saber médico na modernidade, para o qual o principal objeto investigativo era representado tanto pela doença como pelo corpo adoecido. Para ele, o nascimento da clínica se deu no final do século

13 O método arqueológico foi descrito por Foucault em 1969, no livro Arqueologia do Saber. O método teve como ponto de partida a história das ideias, à qual é atribuída a tarefa de penetrar nas disciplinas existentes, tratá-las e reinterpretá-las – é a disciplina dos começos e dos fins, da descrição das continuidades obscuras e dos retornos, da reconstituição dos desenvolvimentos na forma linear da história. A descrição arqueológica, por sua vez, abandona os postulados e procedimentos da história das ideias na tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. Na tentativa de responder a como os saberes apareciam e se transformavam, procura estabelecer a constituição dos saberes, privilegiando as interrelações discursivas e sua articulação com as instituições (AZEVEDO; RAMOS, 2003).

XVIII, período em que a medicina passou por um processo de transformação da organização de seus pressupostos, conhecimentos e práticas, fundamentados no empirismo positivista, que a alçou ao glorioso patamar de Ciência.

Assim, a doença e o corpo doente passaram a ser conjurados em benefício de um conhecimento assentado em um olhar positivo. De acordo com Foucault (2008), no espaço da clínica, onde corpos e olhares se entrecruzavam, o conhecimento a respeito do sofrimento, restrito à subjetividade dos sintomas, foi inserido em um discurso redutor e objetivante. A ciência médica, amparada pelo poder soberano do olhar empírico, tornava o espaço da experiência permeável tão somente à evidência dos conteúdos visíveis. Segundo esse autor, isso criou a possibilidade de uma experiência clínica, pelo direcionamento de um olhar que perscrutava a doença, conferindo a ela objetividade.

Tal mudança estrutural, menos do que transformações refinadas de seus conceitos e técnicas, ou pelo abandono do antigo arcabouço teórico e dos velhos sistemas, deu-se pela modificação de uma certa configuração linguística que compunha o discurso médico. Os conceitos, objetos e métodos passaram por uma variação semântica que os subsumiram a uma discursividade racional conveniente e pertinente ao modelo científico, de forma que o sujeito portador de uma doença foi objetificado e incorporado ao discurso médico. Tal fato promoveu uma mutação essencial no saber médico na passagem do século XVIII, seja pela possibilidade de reorganização dos conhecimentos médicos, seja pela criação de um discurso sobre a doença (FOULCAULT, 2008).

Assim, no século XVIII, surgiu na sociedade europeia um mercado médico voltado para clientelas privadas, para as quais eram ofertadas intervenções medicamente qualificadas, a partir de uma clínica centrada em exames, diagnósticos e na terapêutica individual. Com isso, naturalmente, houve o aumento de uma demanda por parte de indivíduos e famílias, por cuidados especializados. Tal processo de medicalização culminou no surgimento da medicina do século XIX, período em que a doença passou a ser compreendida como problema político e econômico das coletividades, para as quais era imputada a responsabilidade de resolução, bem como do surgimento de uma política de saúde (FOUCAULT, 2010a).

Foucault (2010a) aponta que, até o final do século XVII, na Europa, o deslocamento dos problemas de saúde em relação às técnicas de assistência era praticamente inexistente, de modo que os encargos coletivos da doença eram, majoritariamente, realizados pela assistência aos pobres. Exceção se fazia a determinadas situações específicas, nas quais se utilizavam de medicalização compulsória e que não estavam correlacionadas organicamente com as técnicas assistenciais. Tais exceções ocorriam nas regras que eram aplicadas em épocas de epidemias, nas medidas tomadas em cidades consideradas pestilentas e nas quarentenas que eram instituídas em alguns grandes portos.

Entretanto, fora desses casos, a medicina-serviço estava economicamente assegurada por fundações de caridade e institucionalmente era exercida de forma restrita em organizações leigas e religiosas. Tais organizações se propunham desde à distribuição de alimentos e vestuário e ao recolhimento de crianças abandonadas, até à vigilância e sansões de pessoas categorizadas como “maus elementos”. Do ponto de vista técnico, a parte desempenhada pela terapêutica na época clássica era limitada ao funcionamento dos hospitais e restringia-se à ajuda material e ao enquadramento administrativo. A doença era apenas um dos elementos que caracterizava o pobre necessitado, merecedor de hospitalização. Outros fatores como a idade, a impossibilidade de encontrar trabalho e a ausência de cuidados, concorriam com as enfermidades na política e na economia complexa dos socorros (FOUCAULT, 2010a).

Segundo Foucault (2010a), já no século XVIII, observou-se o fenômeno do deslocamento progressivo dos procedimentos de assistência, o qual se deu a partir de críticas de economistas e administradores da época, que, ao reexaminarem o modo de investimento e capitalização das fundações, verificaram que estas mobilizavam somas importantes para o cuidado de indivíduos “ociosos”, que, dessa forma, permaneciam fora dos circuitos de produção. Tal fato levou a um processo de esquadrinhamento da população mais carente, destinatária da caridade, com o objetivo de categorizá-la em distinções funcionais: quais eram os bons e os maus pobres; quem eram os ociosos voluntários e os desempregados involuntários; os que podiam fazer um determinado trabalho e os que não podiam. Assim, em certa medida, tentava-se tornar a pobreza útil, seja fixando-a ao aparelho de produção, seja tentando aliviar, o máximo possível, seu peso para a sociedade. Inaugurava-se, nesse período, o início do problema específico do adoecimento dos pobres e sua relação com o trabalho, bem como a necessidade de produção nas sociedades capitalistas ocidentais.

É importante ressaltar também outro aspecto, que é o surgimento, na mesma época, da saúde e do bem-estar físico da população em geral como um dos objetivos fundamentais do poder político. O interesse desloca-se do apoio a uma parcela particularmente frágil da população para a busca de possibilidades de se elevar o nível de saúde do corpo social em seu conjunto. Seria de responsabilidade dos diversos aparelhos de poder encarregar-se dos corpos, não somente para deles exigir o serviço de produção ou extorquir as rendas, mas para ajudá-los a garantir sua saúde (FOUCAULT, 2010a).

Assim, segundo Foucault (2010a), a medicina do século XVIII ganhou uma súbita importância, na medida em que os procedimentos mistos de assistência foram decompostos e delimitados em sua especificidade econômica. Com isso, o problema da doença dos pobres se inscrevia no problema geral da saúde e bem-estar das populações e se transformava em um objetivo político assegurado, ao lado das

regulações econômicas, pela “polícia do corpo social”. Tal transformação ancorou-se nos efeitos econômicos e políticos do grande crescimento demográfico do ocidente europeu no século XVIII e da necessidade de coordená-lo e de integrá-lo ao desenvolvimento do aparelho de produção, bem como controlá-lo mediante dispositivos de poder mais adequados e rigorosos.

Concomitante ao surgimento de uma nova racionalidade médica na Europa, no século XVIII, a “nosopolítica”14, sob a prescrição de novas regras, passou, então, a ser submetida a um novo nível de análise, de maneira mais explícita e sistematizada. No entanto, isso não se traduziu, naquele período, em uma intervenção uniforme do Estado na prática da medicina. À proporção que a saúde e doença emergiam no corpo social como problemas que requeriam, em certa medida, um encargo coletivo, a “nosopolítica” não representava apenas o resultado de iniciativas verticais de organização e controle dos aparelhos de Estado, mas também produto de questões de origens e direções múltiplas, cujo estado de saúde da população era um objetivo geral (FOUCAULT, 2010a). Com a ascensão do capitalismo industrial, a sociedade disciplinar passou a deslocar seu foco de atuação da organização da territorialidade para os corpos individuais e individualizantes, com o objetivo de deles extrair maior produtividade e força, bem como, ao mesmo tempo, gerar docilidade, potencializando competências e minimizando os riscos de resistências. Diferentemente do que ocorria com a sociedade de soberania dos séculos XVII e XVIII, cujo interesse era a submissão absoluta dos súditos ao poder do soberano, na sociedade capitalista industrial interessava a captura dos indivíduos, seus corpos e trajetórias, numa perspectiva de construir mecanismos disciplinares que percorressem o corpo individual e o coletivo, a fim de gerir equilibradamente a própria vida, extraindo dele irrestrita submissão política (FOUCAULT, 1990).

O corpo individual, o corpo máquina foi, essencialmente, o primeiro polo dessa gestão da vida, a qual buscava considerar o indivíduo ao nível do detalhe, aumentando suas forças, multiplicando aptidões e produzindo efeitos individualizantes. Essa manipulação meticulosa do corpo majorava suas energias em termos econômicos de utilidade e, ao mesmo tempo, diminuía-as em termos políticos de obediência. A vida, então, entrou em um maquinário do poder que a articulava e a recompunha, individualizando corpos que deveriam ser constantemente vigiados, utilizados, adestrados e, eventualmente, punidos. Esse poder

14 Nosopolítica, de acordo com o filósofo francês Michel Foucault, é o termo que expressa uma associação entre as instâncias do poder estatal europeu, no século XVIII, as quais se dirigem às questões da saúde da população e à emergência da compreensão das doenças como problemas políticos e econômicos. A nosopolítica resulta da conjugação da questão saúde/doença produzida pelo poder político e econômico, de maneira que a medicalização do social passa a ser um programa de intervenção estatal fundado em práticas micropolíticas de administração da vida (ZORZANELLI; CRUZ, 2018).

disciplinador forjou uma mecânica própria que visava acompanhar o homem-corpo desde o seu nascimento até sua morte, por meio das escolas, das fábricas, dos asilos, dos hospitais, etc. Isso promovia uma capilarização desse poder em todas as instâncias da sociedade, anotando, esquadrinhando, deslocando, utilizando e vigiando os indivíduos em todos os momentos de suas vidas (FOUCAULT, 2007).

Nessa nova modalidade de poder, de acordo com Foucault (2010a), o governo passa então a ser definido como uma maneira de dispor das coisas, conduzindo-as em favor do bem comum, isolando-se problemas específicos da população, desenvolvendo suas forças produtivas e gerindo de forma racional os indivíduos e seus fenômenos próprios.

Na passagem do século XVIII para o século XIX surgiu, então, o esboço de um projeto de uma tecnologia da população, de forma que esta se tornou o objetivo final do governo, no sentido de aumentar suas riquezas, sua duração de vida, sua saúde e produtividade, por meio de técnicas específicas que agiam diretamente sobre os indivíduos e suas relações com o meio: campanhas que atuaram diretamente sobre o biológico, permitindo que a produtividade fosse aumentada; controle sobre as taxas de natalidade e morbidade; sobre o tempo de sobrevida; sobre as fronteiras e sobre a produção de alimentos. Mecanismos estes que buscavam prolongar e acentuar a existência humana de forma calculada, ou seja, uma gestão racionalizada – da política e da economia – sobre a vida (FOUCAULT, 2010a).

Nessa perspectiva, como enfatiza Foucault (2010a), os corpos individuais e coletivos surgiram como portadores de novas variáveis: não mais apenas como ricos ou pobres, válidos ou inválidos, fortes ou fracos, mas, sobretudo, se seriam mais ou menos utilizáveis, mais ou menos suscetíveis a investimentos rentáveis. Nesse ponto, os traços biológicos de uma população passaram a configurar-se como elementos pertinentes para uma gestão econômica, o que impôs a necessidade de organizar junto à população um dispositivo para assegurar tanto a sua sujeição quanto o constante aumento de suas utilidades.

A política médica que se delineou no século XVIII, em todos os países da Europa, teve como desdobramento a organização da família, mais especificamente do complexo família- filhos, como consequência primária da medicalização dos indivíduos, com vistas à saúde do corpo social. Ela foi o veículo para a construção de uma ética da boa saúde, bem como de sua articulação com um controle coletivo da higiene e uma técnica científica de cura, assegurada tanto pelas demandas individuais e familiares, quanto por um corpo de médicos qualificados recomendados pelo Estado. Os médicos ensinavam aos indivíduos as regras fundamentais de higiene, que deveriam ser respeitadas em benefício da própria saúde, bem como em respeito a dos outros, como incitavam tratamento em caso de doença (FOUCAULT, 2010a).

Os direitos e os deveres dos indivíduos concernindo à sua saúde e à dos outros, o mercado onde coincidem as demandas e as ofertas de cuidados médicos, as intervenções autoritárias do poder na ordem da higiene e das doenças, a institucionalização e a defesa da relação privada com o médico, tudo isto, em sua multiplicidade e coerência, marca o funcionamento global da política de saúde do século XIX, que entretanto não se pode compreender abstraindo-se este elemento central, formado no século XVIII: a família medicalizada- medicalizante (FOUCAULT, 2010a, p. 201).

A medicina, então, mais do que um serviço de cura voltado para as doenças e doentes, assumia um lugar importante nas estruturas administrativas e na maquinaria de poder que, no século XVIII, cresceu sobejamente. O médico penetrava em diferentes instâncias de poder no campo administrativo, o que lhe permitia, desde a realização de grandes inquéritos sobre a saúde das populações, até atividades fixadas pelo poder delegado por determinados cargos. Assim, os conhecimentos agregados acerca da sociedade, das condições de saúde e doença da população, das condições de vida, de habitação, dos hábitos, todos somavam para a formação de um saber médico administrativo, que serviu de base para o surgimento da economia social e da sociologia do século XIX (FOUCAULT, 2010a).

Além disso, potencializava-se, cada vez mais, uma ascendência político-médica sobre uma população sujeitada a uma série de prescrições medicalizantes que diziam respeito não somente à doença e à saúde, mas às formas gerais de existência e de comportamentos. Havia uma regulação sobre a alimentação e a bebida, sobre a sexualidade e a fecundidade, sobre a maneira de se vestir, bem como sobre o habitat ideal. Esse excesso de poder de que se beneficiou o médico desde o século XVIII era comprovado na sua presença cada vez mais numerosa nas academias e nas sociedades científicas, junto aos representantes do poder, na tomada de decisões e de medidas autoritárias, bem como no papel de programadores de uma sociedade bem administrada - reformadores de política e economia no século XVIII (FOUCAULT, 2010a).

No documento marcelodossantoscampos (páginas 66-71)