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O PENSAMENTO MÉDICO RACISTA NA BAHIA E RIO DE JANEIRO

No documento marcelodossantoscampos (páginas 89-100)

4 A HISTÓRIA DA MEDICINA NO BRASIL

4.2 O PENSAMENTO MÉDICO RACISTA NA BAHIA E RIO DE JANEIRO

E MESTIÇOS

Tendo sido a primeira instituição de formação médica oficialmente instituída no Brasil, em 1808, a Escola de Medicina da Bahia, transformada em Faculdade de Medicina, em 1832, deixou um precioso legado à medicina brasileira, tendo como seu principal expoente o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues, que, em 1889, iniciou sua carreira como professor adjunto da cadeira de clínica médica dessa faculdade (CORRÊA, 1988).

Mesmo antes de terminar o curso de medicina, em 1888, e ainda recém-formado, Nina Rodrigues, em seus primeiros trabalhos, enfatizava a importância do comportamento de grupos sociais, indo para além das análises de casos individuais. Tinha como interesse principal, não somente as doenças que acometiam os indivíduos, mas sobretudo todas as manifestações que pudessem caracterizar uma “patologia social”. Dessa forma, dedicou-se a estudar, desde os

hábitos alimentares que considerasse nocivos à saúde da população, até moléstias endêmicas. Já explicitava também, nessa época, a sua visão da raça negra como elemento patológico na composição da população. Seus trabalhos, nesse primeiro período (1886-1892), mostravam também uma característica que se manteria importante ao longo de sua trajetória: a intervenção na realidade social de seu tempo (CORRÊA, 1988).

Nina Rodrigues foi autor de inúmeros artigos publicados na revista médica baiana Gazeta, estabelecendo uma correlação da questão racial com a degenerescência e o adoecimento. O argumento era o estabelecimento da diferença entre as raças e a condenação da mestiçagem. Partindo dos modelos social-darwinistas, fazia uma leitura da realidade nacional, sobre a qual recaía a degenerescência, consequência direta da mestiçagem, sendo, portanto, objeto de condenação (SCHWARCZ, 1993).

Segundo Schwarcz (1993), na obra O problema negro no Brasil (1933), Nina Rodrigues trouxe para o campo da cientificidade o pensamento de que os grupos negros eram um impedimento para a civilização branca, representando um dos fatores importantes da inferioridade do povo brasileiro. Tal fato, segundo as pesquisas de Rodrigues, assentava-se no extremado processo de miscigenação.

Fica evidente, portanto, que a racionalidade médica baiana, naturalmente influenciada pelas ideias e estudos de Nina Rodrigues, pensava a nação mais em termos raciais do que pelas perspectivas econômicas e culturais. Com isso, as epidemias deixavam de ser analisadas e combatidas dentro de uma lógica de adoecimento coletivo, para ter status de uma condição que tanto promovia o distanciamento da almejada perfectibilidade branca quanto denunciava a fraqueza e a inferioridade biológica que prevalecia no país. Fato muitas vezes retratado nas revistas científicas, cujas publicações correlacionavam as doenças com a mestiçagem, a partir de relatos médicos e estatísticas e de imagens e fotografias que expunham a população mestiça, acometida pelas moléstias infectocontagiosas (SCHWARCZ, 1993).

De acordo com Schwarcz (1993), tal pensamento era tão naturalizado que, em muitas produções científicas dos médicos baianos, fazia-se uma correlação da epidemiologia com a questão racial, estabelecendo-se vínculos inusitados entre as doenças epidêmicas e as raças, que eram compreendidas como fatores condicionantes para tais moléstias. A sífilis, por exemplo, era entendida como sinal de degenerescência mestiça e, para que pudesse ser analisada em profundidade, era preciso uma análise não só do indivíduo, mas também da raça a que ele pertencia. Tal exemplo não representa um caso isolado dessa correlação; era uma tendência geral autores e médicos fundamentarem na questão racial suas especulações e diagnósticos referentes ao destino da nação.

Nina Rodrigues também inaugurou na Bahia, no final do século XIX, os estudos da Medicina Legal, tendo sido sua orientação teórica mais duradoura, especialmente após ter tomado conhecimento das obras de Lombroso e seu grupo de trabalho, bem como de Lacassagne e sua equipe, aos quais dedicou o seu primeiro livro e aos quais teria visitado pouco antes de morrer, em 1906 (HERSCHMANN, 1994; CORRÊA, 1998).

Segundo Corrêa (1998), desde meados do século XIX, a craniometria, a craniologia e a antropometria tornaram-se áreas específicas do conhecimento médico e começaram a definir a antropologia como ciência do homem, seja no sentido de humano, seja no sentido de masculino. Nos Estados Unidos, a chamada “Escola Antropológica Americana” formou-se em torno de Samuel George Morton (1799-1851), que fez um estudo sistemático de milhares de crânios humanos, recolhidos na América do Norte, Egito e América do Sul, sendo, posteriormente, medidos e pesados, para que pudessem subsidiar uma pesquisa comparativa das medidas cranianas de vários grupos humanos. Tal pesquisa ofereceu o suporte empírico necessário ao naturalista Louis Agassiz (1807-1876) para a comprovação de sua teoria sobre o poligenismo, segundo o qual haveria uma origem múltipla das raças humanas, contrariamente à teoria do monogenismo, segundo a qual a raça humana teria originado de um casal bíblico.

Na França, Paul Broca (1824-1880), fundador da Sociedade Antropológica de Paris, em 1859 e da Escola de Antropologia, em 1876, aperfeiçoou os métodos de medida craniana, a partir da criação de inúmeros instrumentos precisos – o craniômetro, o craniógrafo, o cefalógrafo, o estereógrafo – centralizando sua pesquisa na análise do cérebro, que na escola americana não era analisado. Seu prestígio científico foi indubitavelmente um dos responsáveis pela disseminação da relevância atribuída ao peso e ao tamanho do cérebro, tanto das mulheres, quanto das raças não brancas, como critério definidor seja da incapacidade intelectual, seja de outras incapacidades (CORRÊA, 1998).

Porém, entre esses médicos antropólogos do século XX, o nome mais conhecido foi, sem dúvida, o do italiano Cesare Lombroso (1836-1909), uma das grandes influências de Nina Rodrigues e responsável pela criação da antropologia criminal. Diferentemente dos demais, Lombroso não se limitou, dentro de seus estudos dos biotipos criminais, à pesagem e medida dos crânios nem da análise de seu conteúdo. Avançou na criação de uma taxonomia de traços faciais e corporais, denominados estigmas, os quais permitiam, segundo ele, a detecção daquilo que pudesse subsistir de nossos ancestrais primitivos nos homens e mulheres contemporâneos, induzindo-os ao crime e à loucura (CORRÊA, 1988).

Corrêa (1988) aponta que, a despeito do destaque no cenário científico da época, as teorias de Lombroso não passaram incólumes de críticas referentes ao determinismo estreito

que carregavam, o que levou Nina Rodrigues a incorporar outras perspectivas teóricas em seus trabalhos, porém sem abandonar a suposição básica das pesquisas do cientista italiano a respeito da hereditariedade e seus desdobramentos, apreendidos como fatos inegáveis, o que, em maior ou menor grau, era compartilhado por quase todos os cientistas da época.

Corrêa (1988) também destaca que a consequência mais significativa para essas pesquisas, desta nova concepção política e penal, foi o deslocamento da questão da responsabilidade:

A liberdade de vontade, a intenção de atuar conscientemente de determinada maneira, em determinada direção, deixava de ser relevante no julgamento de um ato ou na análise de um acontecimento, uma vez que o comportamento de cada um estava predeterminado pela sua pertinência a certas classes biológicas que, se foram pesquisadas e definidas em prisões e hospícios, acabaram por ser utilizadas para a sociedade como um todo. A questão da responsabilidade deixava de girar em torno do ‘livre arbítrio’ como chamada da escola clássica de direito, e passava-se a investigar quais as medidas de ‘defesa social’ mais adequadas para lidar com aquelas ameaças. A necessidade de calcular precisamente qual o grau de periculosidade – noção, como a do estigma, devida ao grupo italiano – real ou virtual de cada um, deu também uma nova relevância à figura do perito, o especialista nesse cálculo (CORRÊA, 1998, p. 91). Nina Rodrigues, por sua vez, na definição da perícia médico-legal, invocaria como igualmente relevantes tanto as questões de evidência mais direta ou técnica, quanto as relacionadas à definição do estado psíquico de um acusado/paciente. Apesar da constante luta pela valorização da formação especializada do perito, este não era um especialista na acepção atual do termo. Diferentemente da França, onde, desde 1838, o perito médico estava incorporado ao procedimento penal, com a realização de autópsias ou exames toxicológicos, sendo o responsável pelo destino de criminosos loucos (CORRÊA, 1988).

Schwarcz (1993) aponta que, dentro dessa lógica, como o criminoso era um doente que se diferenciava dos demais apenas pelo tipo de moléstia, os médicos reivindicavam para si independência para o tratamento desses sujeitos. Tal reinvindicação era encabeçada por Nina Rodrigues e sua incansável defesa da medicina legal e da necessidade de sua autonomia. A partir desse movimento, consolidou-se um processo de afirmação profissional, do qual naturalmente se depreendeu uma defesa da medicina legal como saber médico diferenciado, mas, principalmente, obteve-se a criação de uma identidade de grupo, com a mudança da imagem social dos médicos, cuja prática, por muito tempo, havia sido menosprezada.

De acordo com Schwarcz (1993), o desenvolvimento e a capilarização dessas teorias no início do século XX representaram fortalecimento dos modelos raciais de análise no campo da

medicina, a qual, a partir da utilização mais direta dos modelos darwinistas-sociais, adquiriu destaque no cenário médico nacional. Nesse novo campo, o objeto principal de análise não era mais a doença ou o crime, mas o criminoso.

Assim, a maior parte das pesquisas buscava relacionar a criminalidade com a degeneração, de modo que, objetivando identificar as raças, refletir sobre o atraso a elas relacionado e problematizar a fragilidade dos cruzamentos, os estudos de frenologia ou craniologia17 foram os primeiros a serem aplicados. No entanto, tais estudos eram válidos somente para a identificação das raças e análise de suas responsabilidades, sendo inadequados quando se referia à análise do criminoso, uma vez que, supostamente, apenas marcavam o estágio mental evolutivo do delinquente (SCHWARCZ, 1993).

A medicina legal, portanto, adquiriu ascensão na hierarquia social e estabeleceu uma ciência brasileira dedicada aos estudos da degenerescência racial, segundo a qual determinados estados tidos como patológicos (embriaguez, violência, epilepsia, amoralidade) serviam de comprovação dos modelos do darwinismo social e consequente condenação do cruzamento inter-racial, indicativo da imperfectibilidade gerada por uma hereditariedade mista. Assim, a partir de justificativas evolucionistas e da consciência da amplitude de atuação, os profissionais médicos partiram para a disputa de novos espaços de poder, entre os quais o até então reservado aos profissionais do direito (HERSCHMANN, 1994; SCHWARCZ, 1993).

De acordo com Schwarcz (1993), na ótica médica, com base em um projeto médico eugênico, objetivava-se curar um país enfermo, eliminando os fatores responsáveis pela degenerescência, a fim de que a população se restringisse a uma grupalidade próxima a uma possível perfectibilidade. Nesse contexto, estabeleceu-se uma oposição entre dois campos: se, por um lado, ao perito médico, caberia diagnosticar, restando ao profissional de direito tão somente o papel de assessor para pôr sob a forma da lei o diagnóstico do perito, por outro lado, as faculdades de direito postulavam que cabia aos juristas a criação de códigos legais, numa tentativa de unificação do país, reservando-se ao médico o papel de técnico com a função de auxiliar o bom desempenho dos profissionais da lei.

17 Frenologia ou craniologia surge a partir dos estudos de Franz Joseph Gall e de seu discípulo Johann Kasper Spurzheim (1776-1832), no final do século XVII e início do século XIX, cuja ideia era de que a conformação da caixa craniana, de acordo com seu tamanho e suas protuberâncias, indicava diferentes aspectos da personalidade do indivíduo (MACEDO, 2014).

Essa querela entre os intelectuais da área médica e do direito fez com que, no final do século XIX, os médicos multiplicassem suas críticas ao Código Penal brasileiro, por julgarem que este priorizava o crime e não o estado mental do criminoso, de maneira a igualar os seres humanos sem nenhuma distinção. Com isso, embasados nas teses de Nina Rodrigues, que defendia a impossibilidade de se julgar da mesma maneira raças com níveis de evolução distintas, a intelectualidade médica baiana fazia coro ao combater a ideia de que a igualdade era produto da criação dos “homens de lei”, desconsiderando qualquer embasamento científico (SCHWARCZ, 1993).

Segundo Hofbauer (2006), Nina Rodrigues negava que entre as civilizações inferiores (como a negra) houvesse uma consciência do dever e do direito formal, condição essencial para a aquisição de uma responsabilidade penal. Isso justificava a defesa de um tratamento diferenciado dos criminosos segundo seu grau de desenvolvimento racial.

Schwarcz (1993) enfatiza que tal percepção dos intelectuais médicos baianos será aprofundada a partir da década de1920, com os estudos da medicina mental e da alienação. Nina Rodrigues, antes de sua morte precoce em 1906, deslocou sua atenção dos aspectos fisiológicos para as características psíquicas do comportamento humano, corroborando as ideias dos médicos dedicados à medicina legal, os quais defendiam sobremaneira a instituição dos “manicômios judiciários”. No entanto, tal defesa de uma medicina legal ajustada ao desenvolvimento das raças, ou a luta pela instalação de tais manicômios, não escondia o temor presente na época quanto ao futuro da nação. Afinal, tendo como fundamento as teorias poligenistas do darwinismo social, era natural a descrença no desenvolvimento de um país composto por raças subdesenvolvidas, como a negra e a indígena, fora os mestiços, que constituíam maioria absoluta em nossa população.

As concepções evolucionistas raciais de Nina Rodrigues fizeram-no sempre questionar a possibilidade de um desenvolvimento próspero do Brasil devido exatamente ao grande contingente de negros entre a população brasileira. Embora não tenha descartado radicalmente a possibilidade de alguma consequência positiva casual do processo de mestiçamento, Rodrigues manteve a radicalidade da ideia de que a raça negra seria sempre um dos fatores de nossa inferioridade enquanto povo (HOFBAUER, 2006).

Esse cenário de desesperança foi modificando-se no final da década de 1920, quando as teorias europeias passaram a dividir os mestiços em categorias de “bons” e “maus”, apontando que a degenerescência, produto da mestiçagem, não deveria ser compreendida como um fenômeno irreversível. Assim, as raças passaram a ser entendidas como passíveis de mutação e sujeitas a um processo contínuo de saneamento. Entram em cena as teorias eugênicas que

influenciaram a elite intelectual brasileira em geral e a médica em particular, rompendo, inclusive, com o radicalismo da Faculdade de Medicina da Bahia (SCHWARCZ, 1993).

Diante do estado de pessimismo e passividade instalado frente ao diagnóstico de inferioridade racial do Brasil, a construção de um ideal eugênico constituía-se no argumento central para a sobrevivência da nação. O objetivo era cuidar da raça branca e reverter o processo à total degeneração. Nessa lógica, apesar de permanecer o mal-estar relacionado à mestiçagem, o mestiço passava a ser objeto de uma possibilidade de saneamento ou regeneração (SCHWARCZ, 1993).

A preocupação dos médicos baianos, de acordo com Schwarcz (1993), instalava-se no segmento negro da população, considerado irremediavelmente enfermo. Sobre esse segmento, ao qual restava apenas a reprodução e condenado à progressiva decadência em virtude de sua própria inferioridade que o levaria à esterilidade e mortandade, deveriam recair medidas mais extremadas. Entre os mestiços havia também os considerados absolutamente enfermos – alcoólatras, loucos, epiléticos, doentes – para os quais a única solução seria o desaparecimento darwinisticamente esperado.

Em contrapartida, se, por um lado, as teorias eugênicas ajudavam a explicar a seleção natural e a extinção dos mais fracos, por outro, eram descartadas quando se tratava de pensar na perfectibilidade dos “bons mestiços” ou na homogeneização das raças, o que era incompatível com os modelos poligenistas. Dessa forma, a fim de garantir certa originalidade no caso brasileiro, percebeu-se uma adaptação dos modelos estrangeiros: as práticas eugênicas, no Brasil, promoviam uma condenação seletiva nos cruzamentos, poupando determinados seguimentos da população (SCHWARCZ, 1993).

Já os médicos cariocas passaram a ter a questão racial como objeto de análise somente após o movimento higienista, aproximando-se, com isso, dos interesses centrais da escola baiana. De acordo com Schwarcz (1993), para tais profissionais, as doenças teriam vindo da África, trazidas pelos escravos, ou da Europa e da Ásia, a partir da entrada de mão de obra imigrante. Havia, naquela época, um debate sobre a temática que opunha, de um lado, médicos que defendiam a noção de contágio e, de outro, aqueles que advogavam a ideia de infecção. De qualquer forma, o que ficava evidente era uma certa concepção que vinculava a doença a determinadas raças imigrantes. Consenso, também, era o fato de que o nosso enfraquecimento biológico seria resultado da mistura racial.

Em consonância com os modelos autoritários de atuação empregados pelos médicos cariocas nas campanhas higienistas, Schwarcz (1993) aponta que eles inovavam tanto ao advogar a seleção eugênica da imigração, quanto ao oferecer seus serviços ao Estado para a

criação de estratégias limitadoras da entrada de novos imigrantes não europeus no país. Havia uma intenção, por parte dos médicos, de curar as raças, da mesma forma que conseguiram, em grande parte, curar as grandes epidemias. Assim, a ideia era tanto a recusa de imigração de determinados tipos de imigrantes que representariam o “mal que vem de fora”, como a implementação de medidas que visassem à situação interna do país, considerada degenerada.

Um dos nomes de destaque nessa linha de pensamento foi João Batista de Lacerda (1845-1915): médico de formação e, embora partidário das teorias de Spencer e de métodos de pesquisa como a craniologia, não muito diferentes das utilizadas por Nina Rodrigues, chegou a conclusões opostas às dele, em suas análises do povo brasileiro. Apesar de compreender a evolução do homem como produto de uma influência decisiva das “leis da natureza”, Lacerda afirmava que a inferioridade das raças atrasadas se devia, em primeiro lugar, ao mundo de seus valores – considerados mais primitivos do que os das raças adiantadas. Em virtude de sua crença em Deus, o cientista pensava que o cristianismo era o único elemento da evolução que podia impedir a opressão e a destruição dos povos inferiores pelos superiores e, dessa forma, manipular o destino da seleção natural. Logo, em seu pensamento, a primazia da fé cristã opunha-se à exaltação da “razão pura” (HOFBAUER, 2006).

Embora, como Nina Rodrigues, Lacerda compartilhasse da ideia de que, no Brasil, o longo contato dos negros com os brancos, tenha levado estes a terem seus dotes morais prejudicados, absorvendo vícios peculiares daqueles, sua esperança no ideário de construção de um novo país teve grande influência em suas considerações sobre o cruzamento inter-racial. Como diretor do Museu Nacional, Lacerda foi nomeado pelo presidente da República para representar o país no primeiro Congresso Universal das Raças, em 1911, em Londres, no qual apresentou sua tese de que os produtos do casamento entre branco e negro não constituíam uma raça própria em razão de sua pouca estabilidade, tendendo a retornar ao tipo branco ou preto. Portanto, o mestiço aparece em seus estudos como sujeito em vias de transformação em branco (HOFBAUER, 2006).

De acordo com Hofbauer (2006), diferentemente de Nina Rodrigues, cujo discurso privilegiava, de certa forma, a “raça pura” e demonstrava desprezo à mistura inter-racial, Lacerda enfatizava as qualidades do mestiço em relação ao negro, ressaltando que havia entre os mestiços, poetas, escritores, músicos, escultores, artistas de todos os tipos, médicos, engenheiros e artesãos. Afirmava que, a despeito de os mestiços fisicamente serem mais fracos que os negros, intelectualmente, apresentavam incontestável superioridade. Segundo Skidmore (2012), Lacerda chegou a tais conclusões a partir da descrição dos efeitos do processo histórico

de miscigenação entre africanos e europeus no Brasil, afirmando que, em virtude de tal fenômeno, em um século, mestiços e negros desapareceriam do território nacional.

Lacerda acreditava que dois fatores seriam determinantes para transformar o Brasil em um dos principais centros do mundo civilizado: o primeiro consistia na imigração de europeus e a consequente seleção sexual, a partir de casamentos com os brancos, que iria, naturalmente, clarear a população; o segundo seria o consequente desaparecimento do mestiço e, posteriormente do negro, ao longo desse processo. Aqui, também diferentemente de Nina Rodrigues, a diferença entre brancos e negros não ganha destaque na análise. Os africanos e seus descendentes são concebidos, igualmente, como uma raça própria, que, por meio “de sua contribuição à construção da sociedade brasileira, é transformada em elemento nacional e, dessa forma, absorvida pela dominante cor/raça branca” (HOFBAUER, 2006, p. 210-211).

Conforme nos diz Skidmore (2012), o documento de Batista de Lacerda, que expunha a extinção dos mestiços em um prazo de 100 anos, foi criticado por brasileiros que se incomodaram com uma estimativa cronológica muito longa. Procurando responder a essas

No documento marcelodossantoscampos (páginas 89-100)