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O cuidado como ato político

No documento marcelodossantoscampos (páginas 107-113)

5 UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE

5.2 O CUIDADO COMO UMA POLÍTICA SOCIAL

5.2.1 O cuidado como ato político

Para que possamos refletir a respeito da produção do cuidado em saúde, sobretudo no que se refere à influência da branquitude de médicos de família nessa produção que acontece nas relações cotidianas do trabalho, julgo importante dedicar-me, mesmo que brevemente, à

exploração dessa temática para além do que se encerra no senso comum, dada a complexidade inerente ao processo de cuidar.

Leonardo Boff (2017) apresenta o cuidado não somente como um ato restrito a um momento de atenção, mas como uma atitude que envolve ocupação, preocupação e responsabilização numa perspectiva de envolvimento afetivo com o outro. Da atitude cuidadora se desdobra uma série de atos de cuidar, os quais podem estar localizados nos campos material, pessoal, social, ecológico e espiritual. Buscando o filósofo alemão Martin Heidegger (1889- 1976), o autor analisa o cuidado para além do ato e da atitude, reconhecendo-o como “um modo- de-ser essencial, sempre presente e irredutível à outra realidade anterior. É uma dimensão fontal20, originária, ontológica, impossível de ser desvirtuada” (BOFF, 2017, l.362 – E-book Kindle). Segundo o autor, o cuidado, sem o qual o humano deixaria de existir já que a ele é imanente, é um fenômeno que fundamenta as possibilidades de existência.

Partindo desse pressuposto, presente nas inúmeras experiências humanas, o cuidado molda nossa prática e se estrutura em nós, representando um modo de ser singular. Com isso, realidades essenciais, como o desejo, somente emergem como realização do humano a partir da dimensão do cuidado, já que nele estão profundamente enraizadas. Fato que naturalmente constatamos ao buscar, filologicamente, as duas significações existenciais relacionadas com a origem da palavra cuidado e que estão intimamente ligadas entre si: atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro; preocupação e inquietação, visto que o cuidador está envolvido e afetivamente ligado a esse outro, objeto do cuidado. Dessa forma, o cuidado estará sempre acompanhando o ser humano, já que este nunca deixará de amar e desvelar-se por alguém, nem deixará de preocupar-se com a pessoa amada e por ela inquietar-se (BOFF, 2017). Embora a palavra “amar” esteja na centralidade dessa reflexão de Leonardo Boff sobre a imanência do cuidado no humano, julgo importante transcender os entendimentos atribuídos ao amor pelo senso comum, a fim de explorarmos outras possibilidades de significados que o “amar” pode adquirir como elemento motivador para a emergência desse cuidado, ou seja, como um modo de ser, uma forma como a pessoa se estrutura e se realiza no mundo em relação a todas as coisas. Assim, amor pode ser compreendido como qualquer afeto que nos motive a explorar essa dimensão cuidadora que nos faz ser-no-mundo, “de existir, coexistir, de estar presente, navegar pela realidade e de relacionar-se com todas as coisas no mundo” (BOFF, 2017, l. 1067 – E-book Kindle). Nesse jogo de relações, o ser humano vai construindo seu próprio ser, sua autoconsciência e sua própria identidade (BOFF, 2017).

Quando tal percepção sobre o cuidado é deslocada para o campo da saúde, em particular da medicina, observa-se o surgimento de tensionamentos e conflitos entre esse cuidado proposto por Leonardo Boff e aquele aprendido e praticado nos cotidianos dos exercícios profissionais em saúde. Isso porque essa dimensão cuidadora, compreendida como imanente ao ser humano, foi sendo ressignificada, no processo sócio-histórico de construção da medicina moderna, a partir de inúmeros agenciamentos resultantes de um novo paradigma científico sobre a assistência em saúde, como também de inúmeras subjetivações produzidas nos profissionais de saúde sobre esse processo de cuidado.

Segundo Luz (2004), até o Renascimento, por volta do século XVI, a concepção da medicina na cultura ocidental fundamentava-se na ideia de inter-relação entre os sujeitos, ou seja, naquilo que atualmente se denomina intersubjetividade. A partir dessa perspectiva relacional, certo sujeito, acometido por determinada doença, poderia ser curado por um “artesão” da medicina. A cura, portanto, era vista como produção de uma espécie de “arte médica”, apresentando um grande peso para a cultura daquele momento histórico. Com a paulatina ascensão da ciência no Ocidente, houve não propriamente uma ruptura, mas uma descontinuidade nessa concepção de medicina, em que a arte terapêutica foi, progressivamente, sendo subsumida pelo campo da racionalidade científica.

Até o final do século XVIII, o saber médico era determinado pela medicina clássica, que seguia, conforme proposto por Lineu (1707-1778), o modelo da história natural a partir da qual todos os seres vivos deveriam ser classificados em nome, teoria, gênero e atributos. Dessa forma, as doenças eram organizadas por taxonomia e compreendidas como entidades ideais, com suas características naturais próprias, ou seja, o adoecimento era resultado da inserção nos organismos vivos de “entidades patológicas”, desestabilizando-os e provocando as morbidades (BRANCO, 2018).

Desse modo, o diagnóstico era realizado a partir de um processo no qual a doença era decifrada, classificada e localizada em um quadro nosológico. Nesse processo, o doente deveria ser abstraído como um acidente na expressão da doença a ser decifrada, e o médico tinha sua atenção centrada não no corpo concreto do doente, mas em um dado sintoma que deveria ser situado em uma doença e, esta, dentro de um conjunto específico a partir do qual era possível reconhecer a configuração essencial da morbidade, bem como o momento certo de atuar sobre ela. O corpo do doente, portanto, era tão somente o repositório onde a doença singularizava-se. Dessa forma, a medicina clássica caracterizava-se por fundamentos demasiadamente abstratos, que promoviam uma dissociação entre a doença e o doente (BRANCO, 2018).

Michel Foucault (2008), como já explicitado na seção em que discorro sobre o nascimento da clínica no ocidente, demonstra como se deu a transformação da medicina clássica para a medicina moderna nas sociedades ocidentais. Essa transformação ocorreu a partir de uma ruptura que se processou no saber médico no século XVIII: menos pelo aprimoramento conceitual ou pela utilização de instrumentos técnicos mais potentes, ela se localizou particularmente em mudanças no nível de seus objetos, conceitos e métodos. A medicina moderna passou a ter um tipo de configuração que implicou o surgimento de novas formas de conhecimento e novas práticas institucionais, as quais exerceram profundas influências em aspectos essenciais da construção das sociedades modernas (FOUCAULT, 2008).

Segundo Foucault (2008), nos últimos anos do século XVIII, a medicina moderna marcou sua própria data de nascimento. Tal fato não se deu pelo abandono por parte da medicina, dos sistemas, das combinações heterogêneas ou incongruentes dos diversos elementos que dela faziam parte, ou da redescoberta dos valores absolutos do visível. Ocorreu, sobretudo, a partir da reorganização de um espaço manifesto que se desvelou diante do olhar médico, o qual, naquele momento, direcionava-se ao sofrimento humano: “No início do século XIX, os médicos descreveram o que, durante séculos, permanecera abaixo do limiar do visível e do enunciável” (FOUCAULT, 2008, p. 10).

Essa relação entre o visível e o invisível teve uma mudança em sua estrutura, promovendo o aparecimento, seja sob o olhar, seja na linguagem, de elementos que estavam dentro e fora do campo do domínio médico. O espaço de configuração da doença, bem como o de localização do “mal” no corpo passaram a ser superpostos em uma experiência médica que era pautada na anatomia patológica. A medicina, dessa forma, instrumentalizava-se por um olhar qualitativo e sensível à complexa comunicação entre a entidade patológica e o corpo (FOUCAULT, 2008).

De acordo com Foucault (2008), as dimensões da racionalidade médica passaram a penetrar no espaço da experiência, o qual passou a identificar-se tão somente com o domínio do olhar atento e da vigilância empírica de conteúdos visíveis: “O olhar não é mais redutor, mas fundador do indivíduo em sua qualidade irredutível. E, assim, torna-se possível organizar em torno dele uma linguagem racional” (FOUCAULT, 2008, p. 18). O sujeito passava, com isso, a ser objeto do discurso médico e, mais do que o abandono das teorias antigas e dos velhos sistemas, essa profunda reorganização criou a possibilidade de uma experiência clínica dentro de uma estrutura científica positiva. Tal fato promoveu uma mutação essencial no saber médico na passagem do século XVIII, seja pela possibilidade de reorganização dos conhecimentos médicos, seja pela criação de um discurso sobre a doença.

Esse processo de criação de uma nova racionalidade médica fez com que cuidadores reconhecidos como médicos, em vários países europeus, instituíssem e institucionalizassem suas práticas a partir da lógica de que o processo saúde e doença é localizado no corpo biológico. Este, ao ter uma “lesão” no seu nível mais basal, manifestará disfunções que serão flagradas pelos sinais e sintomas, possibilitando o acesso aos quadros lesivos patológicos (MERHY, 2007).

No início do século XX, o médico americano Abrahan Flexner (1866-1959), produziu o relatório “Medical Education in the United States and Canadian: a report to the Carnegie Fundation for the advancement of teaching”, resultado da coordenação de um processo de avaliação das escolas médicas nos Estados Unidos. Tal trabalho, para além da avaliação do ensino médico, reorientou a educação médica norte-americana, colocando-a no centro da pesquisa biológica e de seus paradigmas científicos, resultando numa clínica focada no corpo anátomo-fisiológico. A partir daí, toda promessa do cuidado e da cura no campo da saúde, passou a associar-se às ações consideradas científicas, voltadas para um corpo manipulado e pensado cientificamente (MERHY; FRANCO, 2015).

Estabelecia-se, portanto, a partir de uma profunda reorganização da estrutura da formação médica, uma referência mundial de como o processo de trabalho em saúde deveria ser. Ou seja, articulava-se a ideia de que uma competente intervenção científica sobre o corpo, tido como lugar e depósito de processos mórbidos, seria a melhor alternativa para se alcançar a cura das doenças. Com isso, criou-se o mito do profissional autossuficiente e cientista, para o qual os fatores socioambientais e o universo das subjetividades, que interferem potencialmente no processo saúde e doença, não eram considerados nas análises diagnósticas e terapêuticas. Assim, o trabalho médico, reduzia-se a um corpo biológico, subtraído do meio social e das relações e vivências constitutivas de sua história de vida, fortalecendo o modelo que se gestava, a partir do discurso da excelência da clínica (MERHY; FRANCO, 2015).

Esse paradigma biomédico, que se caracteriza pela centralidade na doença, classificada da mesma forma que outros fenômenos naturais e vista como algo independente da pessoa por ela acometida e de seu contexto social, ainda se faz hegemônico na produção do cuidado em saúde. A doença é determinada por um agente causal específico, que será o objeto de investigação do médico, para diagnóstico e terapêutica direcionados à remoção da causa ou diminuição dos sintomas. Para chegar a tal diagnóstico, o médico tem uma ferramenta intelectual, que é o método clínico conhecido como diagnóstico diferencial, no qual ele é um observador distanciado e a pessoa doente um receptor passivo (MACWHINNEY, 2010).

Construiu-se, com isso, um processo social, prático e discursivo que, ao longo do tempo, foi instituindo-se como forma hegemônica de se produzir o cuidado em saúde e de se compreender o processo de saúde e doença. Tal modelo, além de ter produzido (e ainda produzir) intensas subjetivações nos vários grupos sociais, formou os profissionais de saúde, em particular médicos e enfermeira(o)s, que contribuíram, segundo Merhy (2007), para conformação de uma sociedade medicalizada, a partir de um processo de mútua constituição entre as sociedades capitalistas europeias e essa nova forma de cuidar da saúde e da doença.

No entanto, a despeito da construção desse processo e de sua instituição como hegemônico, seja na forma discursiva, seja na prática, observam-se rupturas que promovem, em que pese a permanência das bases fundantes desse modelo, possibilidades de se compreender o campo do cuidado de maneira diferenciada. Assim ocorre com a medicina de família e comunidade, cujos princípios orientadores da especialidade fundamentam-se em um paradigma que busca romper com a lógica biomédica, a qual não abarca, em suas possibilidades resolutivas, problemas que não se encaixam dentro de um repertório de diagnósticos nosológicos, ou que formam um complexo que inclui a experiência com a doença e várias questões da vida cotidiana que influenciam na saúde.

Assim, de acordo com o Manual de Medicina de Família e Comunidade, de Mcwhinney (2010), essa especialidade médica adota o Paradigma Goldstein, em homenagem a Kurt Goldstein (1878-1965), um cientista, neurologista, psicólogo e pioneiro na abordagem holística da medicina. A essência desse paradigma pode ser entendida a partir do que nos fala McWhinney (2010):

Entender a pessoa como um todo, um ser integrado com sua história, um presente e um futuro em que se alinham um número infinito de realidades, relacionamentos sociais e desafios ambientais contra um pano de fundo de propensões genéticas. Nessa estrutura ontológica, os sintomas são considerados como uma manifestação dos organismos tentando alcançar uma nova adaptação às circunstâncias trazidas por uma doença ou acidente. Por vezes, essas adaptações podem ir muito além do problema ou doença original. Para entender por completo um complexo de sintomas, deve-se adotar uma visão holística. Observações meticulosas e o entendimento da pessoa em relação a si mesma são necessárias para o médico atender a pessoa ao longo de um período de caos até um novo equilíbrio (MACWHINNEY, 2010, p. 83). É dentro dessa lógica que as práticas de cuidado devem ser produzidas pelo médico de família, afirmadas em termos de relacionamento e não por meio de doenças e tecnologias. A relação com o outro deve ser tecida a partir de um compromisso incondicional e precedendo qualquer experiência desse outro com a doença. Deve-se também alimentar o desejo de se

resolver qualquer problema, em especial os de ordem clínica não diferenciados, o que é potencializado pela possibilidade de relações duradouras com as pessoas e suas famílias, viabilizando acesso privilegiado à vida delas, sempre a partir de uma escuta qualificada e empática. No entanto, somente isso não significa a substituição paradigmática na prática médica, já que é fundamental que se estabeleça um novo método clínico centrado na pessoa (STEWART; et al., 2010), e não na doença. Além disso, é essencial que esse novo método clínico seja, além de institucionalizado, sistematicamente investido de esforços para a sua manutenção nas práticas cotidianas de cuidado realizadas pelo médico de família (MCWHINNEY, 2010).

Embora seja esse o paradigma desejado para a prática da medicina de família e comunidade, observa-se que essa distinção não abala a base fundante do modelo biomédico, que segue gerando implicações para a conformação social do campo de práticas em saúde, inclusive levando outras racionalidades que operam no cuidado de forma pretensamente distintas a se assentarem no mesmo universo instituído pelo saber biomédico, produto do eurocentrismo e de relações de poder hierarquizadas, em que a branquitude, historicamente, exerce protagonismo na produção e manutenção desse modelo. Aqui, a medicina de família e comunidade não se faz exceção.

Nesse sentido, a medicina de família e comunidade, embora efetivamente seja compreendida como uma potente possibilidade de contraposição ao modelo biomédico, pelos princípios que a rege, ainda, nos cotidianos da prática, ações e discursos, revela-se sua vulnerabilidade frente às inúmeras forças que advêm das intencionalidades políticas, econômicas e sociais do paradigma biomédico. Fato constatado nos encontros com os médicos de família participantes desta pesquisa que demonstrarei no momento das discussões.

No documento marcelodossantoscampos (páginas 107-113)