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3.1. O Combate ao Romantismo

3.3.2. As fontes da literatura nacional: poesia popular e folclore

Em 1878, Sílvio Romero elaborou textos críticos a respeito da poesia popular e da formação da literatura no país. Dez anos depois, ele transformou tais textos num livro,

Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil. Neste livro, a partir da análise do folclore

brasileiro (com poesia, teatro, oração, jogos, festas, cantos populares), ele faz uma espécie de sistematização das fontes da literatura oral.

Esta poesia popular revelaria o “caráter” dos povos, apresentando nossa base étnica original, na junção de três raças: negro, índio e branco. O genuíno nacional é buscado nessas origens. O brasileiro não seria o branco, o negro ou índio, mas a mistura destes três elementos.

Ao escolher o folclore para realizar a ciência sociológica, na crítica literária, Romero abriu um campo de estudo ainda pouco observado no país, e muito desprezado nas elites letradas. Para isto, ele fez uma ampla colheita de dados e material sociológico. Tendo como

principais influências: os estudos de Alessandro D’Ancona e Domenico Comparetti, a respeito das lendas, cantos, e mitos da cultura italiana, coletando diversos dados, e observando vários aspectos; os estudos do português Almeida Garrett, em Romanceiro e Cancioneiro, analisando a cultura popular portuguesa; e por fim, os trabalhos de Teófilo Braga, sobre o cancioneiro popular em Portugal.

Romero constata inicialmente que há um preconceito contra a poesia popular mais genuína, já que os românticos voltaram ao natural, e dele fez-se idealizações, esquecendo o povo real. Este misticismo criou dois problemas por ele já apontados, desde a juventude: a criação de um povo em mesma condição dos civilizados, e o excesso de arbitrariedade da vontade popular, como se não tivesse irrerrância, e fosse impassível a críticas.

Ao contrário, para ele, falta originalidade e profundidade a nossa poesia popular; porém, esta constatação longe de diminuí-la, a tornava de extremo interesse para ciência contemporânea. Pois, ela teria a capacidade de revelar nossa formação, mentalidade e cultura. E uma das primeiras questões observadas por Romero é a inclusão do negro. Os românticos, em seu ímpeto pela originalidade nacional, tornou o índio mítico e idílico o nosso instinto nacional; enquanto o português representava nossa relação com a civilização. Nisto, esqueceu-se do negro. Sobre este esquecimento, nos diz Romero:

“Creio ter descoberto o motivo histórico e moral deste silêncio voluntário. É evidente que durante os tempos coloniais os índios e os negros eram considerados bestas-feras ou animais de carga; só o português era homem no melhor sentido. Daí sua glorificação e os esconjuros às outras duas raças. Mais tarde, no tempo da independência, o prestígio do português decaiu e, em nosso esforço para encontrarmos a raça privilegiada que nos representasse, tiramos o índio do seu olvido para poetizá-lo por todas as formas com o romantismo nacional. Assim explica-se o fato de dedicarem os psicólogos de nosso povo algum tempo de seus estudos ao branco e ao caboclo, e nem um minuto ao negro. O estado de escravidão deste último conserva-o além disto em afastamento, e existe até certa repugnância da parte dos escritores em ocuparem-se dele, pelo receio de serem havidos como eivados de casta, segundo a linguagem vulgar. Entretanto o autor destas linhas, sente-se com a mais completa isenção de espírito para fazer justiça a todos, e particularmente fará convergir os seus esforços para vingar o negro do esquecimento a que malevolamente o atiraram” (ROMERO, 1977: p. 60).

Enquanto a escravidão transcorria imaculada e intocável depois da independência, os românticos buscavam no índio um elemento de originalidade. Com o decorrer do Segundo

Reinado, ao mesmo tempo em que, na política e na sociedade, discutiam-se os problemas morais, ou mesmo, econômicos, da escravidão, e criou-se uma série de movimentos a favor da abolição, mostrando que havia uma insatisfação em busca de mudanças estruturais na sociedade; e a literatura e a crítica vão acompanhando isto. Romero pede a inclusão do negro em nossa formação, criticando o estatuto da escravatura, num ambiente letrado já dominado por estas discussões. E ele cristaliza muito deste movimento, ao reafirmar a existência do brasileiro, enquanto categoria sociológica, num mistura das suas grandes três raças formadoras.

Ainda se fala muito da formação do “caráter” nacional tratado das três raças em separados. Mas, só há sentido para falar em brasileiro, quando os três elementos foram misturados de maneira indiscernível, criando outra cultura daquelas que possuíam em separado. É nesta incorporação que se formam as crenças, hábitos, e a poesia popular, de nosso povo.

O sergipano afirma também que havia três categorias de população mundial: a) os povos que viviam na barbárie (África, América, Oceania); b) os povos das primeiras civilizações (hebreus, persas, assírios, hindus, gregos, romanos); c) os povos civilizados da cultura moderna (França, Itália, Alemanha, Europa Ocidental). Nesta época, o tom da superioridade das raças ainda é muito forte na obra de Romero. Apesar das várias influências de outras raças, o “fator português pesa-lhe com mais força”. (ROMERO, 1977: p.34).

Os brancos possuem um estatuto diferente nessa mistura, pois impuseram a superioridade de sua identidade através do predomínio da língua e da religião. A língua portuguesa foi mediadora em nossa experiência de formação híbrida. Entretanto, os brancos portugueses, autores da colonização, fizeram isto quando estavam em plena decadência, ocorrendo à inquisição. Por consequente, a poesia popular definhava em Portugal antes daqui chegar. Por isto, a esperança de uma colonização bem dirigida vem do sul do país, por suas características raciais, como o arianismo (no futuro, ele retroagirá nessa posição).

Devido a esta característica de importação das ideias, imigração e trânsito demográfico, com elementos de outras terras misturando-se com os nativos; foi a saudade do lar que formou nossa poesia popular. Por isto, a nossa formação ainda não está plenamente completa, e as crenças e tradições ainda estão se misturando e formando, ficando isto, bem claro, nos cantos e orações populares.

Sílvio Romero estabelece quatro tipos de povos básicos no país: a) os que vivem na capital, b) os que vivem perto dos mares, c) os que vivem no mato, d) e os que vivem nos sertões. O sergipano define a maneira como cada povo lida com o ambiente e o clima, se estabelecem no espaço, e forma a partir disso, suas experiências, com crenças, hábitos, cânticos, festas populares, etc.

Propondo uma análise científica, Romero começa a analisar este amplo material sociológico, que, em muito, envolve o folclore a partir do papel da religião em nossa poesia popular. Benzedeiras, feitiços, pronomes, santos, curandeiros: tudo vira alvo de observação. Um dos exemplos dados:

“Corre, corre, cavaleiro Vai na porta de São Pedro Dizer a Santa Luzia

Que me mande seu lencinho Para tirar esse argueiro” (ROMERO, 1877: p. 43).

Romero observa esta mistura na formação do povo brasileiro, no canto das taieiras, mulatas, vestidas de branco e enfeitadas de fitas, que vão à procissão cantando e dançando tais versos:

“Virgem do Rosário, Senhora do mundo, Dai-me um coco d’água Senão vou ao fundo... Inderé, rê, rê, rê... Ai! Jesus de Nazaré! Meu S. Benedito Não tem mais coroa Tem uma toalha Vinda de Lisboa... Inderê, rê, rê, rê... Ai! Jesus de Nazaré!” (ROMERO, 1977: p. 48).

Com este canto, observamos vários elementos dos diferentes povos em nossa formação, imbricados, criando algo novo. Neste sentido, as modinhas possuem grande importância nessa apresentação popular do caráter de nosso povo. As massas se apropriaram da cultura legada, e a recriaram. O romantismo não entendia as canções e lendas populares. Diz o sergipano:

“O fato parece exagerado, porquanto no século passado, época a que se referem os críticos portugueses, ao passo que nossa literatura aproximava-se da natureza com Dirceu, Basílio e Durão e com as modinhas, as literaturas da metrópole era toda postiça e contrafeita. Os ouvidos lusitanos foram surdos à lição dada por nossos poetas, verdadeiros percussores do romantismo nas raças neolatinas, e que eram tidos por bárbaros para aqueles pretendidos civilizados e o nosso influxo benéfico deixou de ser uma realidade. Ao contrário, sofremos nós outros a impressão deletéria da língua portuguesa”. (ROMERO, 1977: p. 53).

Assim, o crítico defende a primazia da poesia popular brasileira sobre a portuguesa, que era decadente. E nestes povos tidos como “bárbaros”, poder-se-ia ver uma antecipação do próprio romantismo, momento de sua época. Romero irá analisar, ainda, quatro estudos de poesia popular feitos no país. Os autores são: Couto de Magalhães, José de Alencar, Téofilo Braga, Carlos de Koseritz.

Neste capítulo, tratei de um dos pilares deste período formativo de Romero: o embate ao romantismo. O embate e os seus significados intelectuais na elite letrada e o que simbolizava da época, a partir de suas ambiguidades. A partir da possibilidade de concepção à possibilidade de ação, a literatura pode se apresentar como reveladora da construção do imaginário nacional, na formação da jovem nação brasileira. A ambiguidade de nossa formação e das elites letradas consistia nesta relação entre se afastar do passado colonial, como um adolescente que busca distância dos pais, e mostrar independência; mas, no mesmo passo, ter que voltar as nossas origens para buscar uma originalidade.

A partir disso, formou-se uma cultura letrada, com escritores e leitores constantes, numa esfera pública, dotada de capacidade de reflexão e diálogo próprio. O romantismo estabilizou um sistema literário nacional, utilizando a literatura para pintar o imaginário nacional, e os seus símbolos. Este processo acompanhava também as dificuldades práticas de construção da ordem saquarema, e da identidade nacional através do Estado.

É contra este establishment da elite letrada e da vida literária que Romero se volta. Influenciado pela base filosófica que já comentamos, ele esforçou-se para modernizar o pensamento, porque esta seria a chance de orientar o país em direção a “intuição crítica moderna”. É neste sentido que ele dirige seus estudos sociológicos e, de certa forma, funda a análise científica nos estudos culturais. E essa fundação é feita com o viés das ideologias do progresso, do materialismo, do historicismo, do evolucionismo. Por isto, foi pioneiro no uso da poesia popular, do folclore, como material para compreender o país.

Analisando toda nossa formação poética, e conjuntamente, a do nosso povo, e de como esses elementos de misturas entre as três raças apareciam pela própria voz popular, em suas criações, Romero abriu um vasto campo de estudos sociológicos a respeito, e influenciou gerações posteriores. Se, por um lado, havia encanto com o progresso da civilização e defesa da mentalidade materialista trazida pelo mundo moderno; por outro, havia uma valorização genuína das tradições populares, de seu passado, até mesmo em forma de nostalgia. De tal modo que, este caminho aberto para etnografia, antropologia, filologia, sociologia, tendo como base a busca pela verdade científica de seu tempo, irá influenciar bastante as próximas gerações intelectuais, como Gilberto Freyre.

CAPÍTULO IV

INTEPRETAR O BRASIL NAS VEREDAS DA CIÊNCIA