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1.1. Do mundo ao local

1.1.6. Recife: o sentimento de uma cidade

Nos idos da década de 1860, Recife era a cidade mais cosmopolita do norte do Brasil. Mesmo antes dos holandeses, a cidade tinha se tornado um centro comercial, graças ao seu porto, sendo um posto de intermediação de capitais e circulação de mercadorias. Junto com estas, chegavam às ideias e os sentimentos vindos de outros cantos, criando uma cidade rica no intercâmbio e na troca de ideias, cristalizando a ambição cosmopolita de uma cidade portuária.

Recife sempre foi uma cidade que se destacou no cenário nacional por sua vanguarda cultural, pelas agitações políticas, mas também pela nostalgia diante das tradições perdidas. Por isto, ela é uma cidade que pulsa no ritmo das contradições. Nela, o embate entre o antigo e o moderno se transforma simbolicamente, em riqueza de adaptações, e em criatividade e rearranjos. Ao mesmo tempo em que, a cidade tinha a experiência de vivenciar a modernidade, chegando a ser conhecida como a “Paris brasileira”, ela sempre resguardou certa tradição e espírito de nostalgia, que veio junto com a aristocracia, quando esta deixou o engenho, com suas casas grandes, para os sobrados da capital. Assim como os filhos da aristocracia nordestina, que iam estudar fora e adquiriam os símbolos modernos, mas resguardavam a nostalgia dos tempos de engenho.

Um ponto importante em sua história foi o mandato de Francisco de Rego Barros, o famoso Conde da Boa Vista, que assumiu a presidência da província de Pernambuco, em 1837, permanecendo no cargo até 1844. Tendo como objetivo a modernização da cidade, Rego Barros transformou a estrutural material e cultural da cidade. Da França, o governador importou engenheiros, arquitetos e artistas famosos, para trazer ao Recife os conceitos modernos das grandes metrópoles da época. Além do incentivo as artes e ciências, ligadas aos símbolos modernos, foram feitas diversas obras, como a construção de estradas que ligavam capital às áreas produtoras de açúcar; diversas pontes e canais; o teatro de Santa Isabel; iluminação a gás; e, sistemas para abastecimento da cidade com água potável.

Dos franceses trazidos pelo Conde de Boa Vista, um merece destaque: o engenheiro urbanista de Paris, Luiz Leger Vauthier. Entre 1841 e 1848, ele elaborou diversas obras que marcaram a cidade, como: o teatro de Santa Isabel, a ponte pênsil de Caxangá, e o Mercado de São José. Diz Rezende:

“A vinda de Louis Vauthier, chefiando uma missão de engenheiros, trouxe efetivamente mudanças significativas no setor das obras públicas, além da circulação de idéias socialistas através da revista Progresso. Destacam-se, com certeza, as construções do Teatro de Santa Isabel, nos moldes do estilo neoclássico europeu, e do palácio presidencial, atualmente conhecido como Palácio do Campo das Princesas. Além dos engenheiros franceses, operários alemães, como pedreiros, marceneiros, também foram contratados para trabalhar nas obras públicas (REZENDE, 2002: p. 76)”.

Recife tomou um banho de cultura europeia do Século XIX, sendo introduzidos novos gestos, novos hábitos, a etiqueta do vestir e do costume. Além de engenheiros, vieram para Recife, viajantes, artistas, modistas, médicos, alfaiates, cozinheiros, cabelereiros, parteiras. Recife também foi a segunda cidade no Brasil, depois Rio de Janeiro, a operar locomotivas a vapor em suas ruas. Dando continuidade a saga da modernização, em 1870, foi construída uma nova estrada de ferro, dessa vez ligando Olinda ao Recife.

É neste Recife, cidade portuária com espírito cosmopolita, modernizando-se e com intensa vida cultural e intelectual, mesmo com um traço marcante de tradição, que chega Sílvio Romero em 1868. Este ano marca a cidade do Recife, pelo surgimento de diversos jornais e revistas, repletos de críticas políticas; divulgando novas ideias, combatendo as tradições de outrora. Sílvio Romero ingressa na Faculdade de Direito do Recife, mergulhando nesta atmosfera de agitação intelectual. Sobre as influências intelectuais do tempo de Recife, Romero nos fala:

“No Recife, onde aportei em janeiro de 1868, e onde permaneci até 1876, levei os dois primeiros anos calado, no estudo das disciplinas que, até aos dias atuais, me têm preocupado mais. As influências ali recebidas não fizeram senão desenvolver o que em mim já existia, desde os tempos do engenho, da vila, da aula primária e dos preparatórios. As três primeiras leituras que fiz no Recife, por um feliz acaso, me serviram para abrir definitivamente o caminho por onde já tinha enveredado, fortalecendo as velhas tendências.

Foram um estudo de Emílio de Laveleye acerca dos Niebelungen e da antiga poesia popular germânica, um ensaio de Pedro Leroux sobre a Gothe e um livro de Eugênio Poitou sob o título — Filósofos Franceses Contemporâneos. O primeiro meteu-me nessas encantadas

regiões de folclore, crítica religiosa, mitologia, etnografia, tradições populares, que me têm sempre preocupado. O segundo nas acidentadas paragens da crítica literária moderna, que tanto me tem dado que fazer.

O terceiro no mundo áspero e movediço da filosofia, em que me acho nas mesmas condições. Mas tudo isso já vinha de trás. Aí ficam as várias cenas do 1º ato — As Origens — de minha vida espiritual. Como, depois, me orientei de tudo isso, por entre as leituras e estudos que tenho feito por quarenta anos ininterruptos, o que aprendi dos mestres, o que tirei de mim próprio, isto é, o 2º ato do drama — A Formação — deixo de indicar, porque já me vou tornando secante. A crítica indígena que o procure por si mesma descobrir e refazer, se achar nisso algum interesse.” (ROMERO, 1905 apud Do Rio, João, 1905, p. 29-38).

O cenário montado sobre o qual Sílvio Romero andou e construiu sua obra está formado: em blocos. Quando alguém vem ao mundo, já o encontra um pronto e, ao mesmo tempo, em construção. Reconstituímos o mundo em sua volta, em suas estruturas e cotidiano. É sobre ela que ele andará, mas isto não significa que sua obra seja determinada por este cenário, tão-somente de que este dialoga com ela, com o mundo que lhe inquieta ao fornecer a experiência sobre o que pensar, e as suas escolhas até ajudam a modificarem. O intelectual – como qualquer outra pessoa - vive em sociedade, convive com outras pessoas, está integrando a um mundo e um local. Isto não significa que sua obra se reduza as práticas ou as estruturas. Mas, Romero, de certa forma, é um símbolo condensado das ambiguidades desta época. Tanto na realidade prática quanto nas ideias. E o conteúdo da sua obra não é resultado de nada exterior a ela, mas se comunica com este exterior e o ajuda a forma-lo. O próximo passo é compreender a criação desta elite letrada nacional, das suas instituições e o que representou a geração de 1870 e a Escola do Recife nela.