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As Geórgicas como poema didático: tradição e inovação

II. O De re rustica de Varrão: aspectos da construção do texto, da linguagem e dos sentidos

2) As Geórgicas como poema didático: tradição e inovação

A configuração desse poema virgiliano, do ponto de vista das macro-estruturas de sustentação dos preceitos agrários oferecidos, pode ser descrita da seguinte forma: utilizando os hexâmetros datílicos, o autor distribuiu ao longo de quatro livros de extensão

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variável (mínimo de 514 e máximo de 566 versos) um conjunto de "ensinamentos" relacionados aos trabalhos rurais: no primeiro, trata-se propriamente da lavoura, no segundo, da arboricultura (com destaque para a viticultura), no terceiro, da pecuária de grandes e pequenos animais (cavalos, bois, ovelhas, bodes...), no quarto e último, da apicultura.

Há que se notar, além da presença da preceituação metrificada, a destacada participação nesse texto de partes de natureza até certo ponto distinta: referimo-nos às chamadas "digressões" ou trechos de fuga à abordagem meramente técnica dos assuntos. Tem-se por vezes evitado considerá-las como "elementos estranhos" ao preceituar dos poemas didáticos,20 pois se trata de passagens em que, em absoluto, não se interrompe a postura formadora do magister: apesar da mudança do modo instrutivo nesses casos (com sua realização através de narrativas míticas e fábulas, de elogios aos bons e críticas aos maus, do esboço de imagens...), é evidente que podem harmonizar-se com a função geral de "instruir". A adoção do posicionamento contrário, por outro lado, significaria talvez falsear nossa interpretação segundo a idéia de que as características essenciais da poesia didática dizem respeito unicamente a adotar a forma métrica mencionada para a transmissão de conteúdos despidos de atrativos, a que se juntam partes decorativas mais ou menos extensas, destinadas apenas a conferir dignidade momentânea a temas banais e a variar pelo contraste da secura expositiva com a beleza poética.

Nas Geórgicas, de acordo com o princípio usual de integração das digressões à

economia interna dos poemas didáticos, observamos que certos temas de fundamental e difundida importância no todo, a exemplo da necessidade do trabalho constante como um fator de que não se pode fugir na Idade de Ferro e da sobrevivência como luta, encontram ressonâncias em algumas delas (como é o caso da chamada "teodicéia do trabalho", no primeiro livro da obra).21 Então, poder-se-ia dizer que, por intermédio de uma digressão como essa, Virgílio não só ilustra miticamente os motivos das atuais condições de vida disponíveis aos homens como ainda, ao enraizá-las nos desígnios de Júpiter, oferece ao

discipulus motivos de ordem sagrada e religiosa para que se conforme piamente a elas da

melhor forma possível, sem rebelar-se contra o que nos é apresentado à maneira de uma intervenção providencial.22

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Desse modo, as digressões e os trechos de "ensinamento" agrário conjugam-se no poema de que nos ocupamos para oferecer ao discipulus todo um programa formador. É importante, porém, notar a esse respeito que a própria natureza conteudística das digressões impede que isso se dê de forma idêntica em ambos os momentos: ao narrar ou esboçar a bela imagem de sua terra natal (caso do que se dá nas laudes Italiae em II 143-176), Virgílio convida com sutileza à adoção de certos valores. Isso significa que, sem preceituar com rigor, encontra em tais passagens o espaço privilegiado para expandir temas abstratos esboçados quando da abordagem direta das técnicas.

Tal funcionamento distributivo faz-nos lembrar de uma questão evocada com alguma freqüência pelos estudiosos da poesia didática: trata-se da existência de uma certa divisão dos assuntos tratados pelos autores em dois planos distintos. Essa idéia encontra sua formulação clássica nas análises de Effe, segundo o qual preencheriam a estrutura dos poemas dois tipos de conteúdos, denominados respectivamente "der Stoff" e "das Thema".23

Corresponderiam ao primeiro os temas ostensivos da poesia didática, vinculados, portanto, aos sentidos mais superficiais do texto; o segundo, por sua vez, identificar-se-ia com o que se deseja "de fato" dizer, podendo ocorrer que coincida ou não com "der Stoff", a depender do modo de condução empregado por cada poeta.

As categoria temáticas definidas por Effe, assim, abrem espaço para a repartição dos diversos poemas didáticos entre categorias distintas: se o tema "profundo" e o superficial coincidirem (caso do que encontramos no De rerum natura de Lucrécio, em que nenhum conteúdo se aborda a não ser aqueles subordinados à defesa do epicurismo), haveria o tipo "ideal"; se coincidirem mas houver "falta de comprometimento" do autor em relação a ambos (com o desvio dos interesses para o aspecto do mero virtuosismo da linguagem), haverá, caso da Therriaca e da Alexipharmaca de Nicandro de Cirene, o tipo "formal"; finalmente, caso divirjam (embora relacionados entre si), produz-se uma certa sobreposição conteudística nos textos e a adoção de "das Thema" como o foco central da constituição semântica das obras.

Nessa última categoria ("transparente") se enquadram as Geórgicas: muito embora se possa dizer que as preencham num certo sentido (superficialmente) os conteúdos relacionados às técnicas agrárias tratadas em cada um de seus quatro livros, não há como

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ignorar o que anunciamos acima como uma espécie de "expansão" temática do texto. A própria possibilidade do estabelecimento de vínculos entre o tema rural e certos assuntos de fundamental importância para os antigos romanos (ou para o leitor de todas as épocas) favorece, por sinal, que Virgílio enriqueça semanticamente a obra, fazendo-a reverberá-los sem cessar.24

Não pretendemos com isso dizer que estejamos em condições de reduzir esses temas mais abstratos a um corpo significativo uno e coerente no caso do poema de que nos ocupamos aqui: como intentaremos demonstrar no capítulo seguinte, destinado justamente ao exame dessa questão, Virgílio comporta-se "polifonicamente" no tocante a tal aspecto.25 Apesar da constatação geral de que, de fato, a busca dos sentidos finais das Geórgicas deve efetuar-se num plano distinto do da mera transmissão dos preceitos agrários,26 há que se notar nesse texto a extrema complexidade do que seriam tais "significados-outros": exceto o que nos parece corresponder a uma certa angústia em relação à fraqueza humana diante da Ordem universal, há poucas chances de se chegar a alguma estabilidade.

Para que se tenha uma idéia aproximada desse grau de indeterminação de sentidos, basta lembrar que nem sequer em relação ao aspecto da "melancolia" virgiliana, pela qual nos decidimos teoricamente em razão do que julgamos corresponder com menos falhas às feições da obra, há a concordância absoluta dos críticos. Assim, ao lado de um Ross27 e de um Thomas,28 tipicamente vinculados a leituras "pessimistas" das Geórgicas em escalas de intensidade variável, há o surgimento de vozes como a de Morgan, inclinada para a consideração de uma espécie de Virgílio "estóico" (e propagandista inequívoco de Augusto), avesso, portanto, a deixar-se impressionar pelo que normalmente corresponderia aos males da vida.29

Uma breve passagem de olhos pela história do gênero didático permite-nos observar que n'Os trabalhos e os dias Hesíodo também se comportara semelhantemente no que se refere à composição da obra, sobrepondo à eventual abordagem das técnicas agrárias certo conteúdo ético-moral alçado ao primeiro plano, como o verdadeiro núcleo dos ensinamentos que desejou comunicar por intermédio de sua fala a Perses.30 Referimo-nos, evidentemente, a suas recomendações de justiça e trabalho como normas a serem seguidas por todos os que desejam conformar-se aos desígnios divinos e obter respeitabilidade diante de deuses e homens.

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Em Hesíodo, contudo, vincular-se pelo modo compositivo à categoria "transparente" da poesia didática, nos termos de Effe, não significava necessariamente ser obscuro: é bem verdade que havia dificuldades em relação ao significado exato de algumas partes da obra (caso típico da fábula do falcão e do rouxinol),31 mas o conjunto de seus preceitos conduzia sem dúvida alguma para a recomendação de uma única postura diante da vida.

Assim, Virgílio, tributário do poeta grego num ponto tão importante quanto a adoção do mesmo "ambiente" rural (com sua indelével aura de tradicionalismo) e, em se tratando ele de ninguém menos que o "fundador" do gênero didático, por manter traços formais como as digressões, o metro e a variação de modo e "tom" expositivos, diferencia- se do mestre ao favorecer de uma maneira jamais vista antes a dispersão ideológica dos temas abstratos.

Ainda em relação a certas divergências de Virgílio quanto à conformação usual dos poemas didáticos na literatura greco-latina, é importante ressaltar sua ousada iniciativa de preencher aproximadamente quarenta e três por cento dos versos do quarto livro das

Geórgicas com a narrativa entrelaçada do episódio de Orfeu e Aristeu. Em postura de

"afinação" do termo técnico epyllion,32 por vezes utilizado distintamente para descrevê-la, Morgan observou:

Dois comentadores recentes das "Geórgicas", por exemplo, usam o termo "epyllion" para descrever dois artefatos um tanto distintos, o elíptico, patético "Orfeu", e o "Aristeu" em sua totalidade, enleados entre duas definições do termo "epyllion" que, embora à primeira vista aparentemente complementares, são na verdade - enquanto aplicadas a "Aristeu" - mutuamente exclusivas: como um tipo de poema consistindo em moldura e quadro e como uma forma que é tipicamente helenística. Dos dois, o segundo emprego é preferível. Como se tem reconhecido desde há muito, o "Orfeu" é mais aparentado estilisticamente com as produções curtas em hexâmetros dos neotéricos, como o "Peleu e Tétis" de Catulo, a "Esmirna" de Cina, a "Io" de Calvo e o pastiche de seus trabalhos representado pela "Ciris". Se escolhermos empregar o termo "epyllion" (e isso tem suas

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utilidades) é, portanto, ao "Orfeu" que deveria ser aplicado. Tradicionalmente, no entanto, o termo "epyllion" tem sido usado para a totalidade do "Aristeu", e ajudou a fomentar a idéia de uma moldura descosida (homérica) circunscrevendo um quadro neotérico.33

Se, pela extensão e indisputada posição de destaque (ao final do último dos livros das Geórgicas), tal entrelaçamento narrativo já desafia os padrões usuais da poesia didática, sua complexidade compositiva e as dificuldades de se encontrar uma solução final para seus sentidos não significam menor "desvio" em relação ao usual.34 Lembrando que se trataria, no conjunto dos recursos formais dessa classe textual, de uma "digressão", deve-se ressaltar que o poeta optou por valorizá-lo muito além do mínimo requerido pelos usos do gênero.

Sobre o assunto, seria talvez proveitoso apresentar em poucas palavras o que Morgan e outros críticos têm apontado como uma significativa variação estilística entre o relato do mito de Aristeu e a tocante história de Orfeu, a ele narrada por um deus. Num minucioso estudo dessa célebre passagem, Otis observou que, enquanto a "moldura" identificada com os fatos que concernem diretamente apenas a primeira personagem segue de perto a dicção épica homérica (com emprego de longos discursos, descrições, epítetos, anáforas, disposição expressiva de membros com fins de favorecimento da amplificação...), correspondendo ainda à sua categoria de "estilo objetivo" (sem qualquer empatia do narrador),35 o mesmo não se dá com o relato do mito de Orfeu. Nesse caso, o próprio patético da situação de fúria amorosa da personagem por uma esposa duas vezes morta favorece significativa proximidade entre o narrador e o relato, deixando-se transparecer algo como a compaixão pela desgraça do casal:

te, dulcis coniunx, te solo in litore secum, 465

te, ueniente die, te decedente canebat36

Eurídice é diretamente endereçada pelo narrador como Ariadne é por Catulo, Cila pelo autor da "Ciris" e Io por Calvo. Na verdade, esses versos implicam não só um apelo feito a Eurídice pelo narrador, mas sua

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identificação empatética com Orfeu, de modo que vacilam, por assim dizer, na iminência da citação direta - o próprio Orfeu chamando Eurídice.37

Interessa notar a respeito desse relato do mito órfico que contribui para envolvê-lo numa aura de profunda beleza o fato de se tratarem os grandes temas da morte e do amor, de partir de Proteu, a divindade marítima, como uma espécie de revelação iniciática a Aristeu38 e de problematizar a questão do poder do artista sobre o mundo. Afinal, ao que tudo indica, a espantosa habilidade dessa personagem como cantor (suficiente para comover até os deuses infernais e vencer a morte) resultou inútil diante de uma fúria passional responsável por sua queda definitiva.

No tocante à dificuldade interpretativa dessa digressão virgiliana, remetendo o leitor à discussão mais detalhada do assunto ao final do capítulo seguinte, limitamo-nos por ora a lembrar as opiniões de Thomas, expressas nos termos seguintes:

A questão do significado desses versos e de seu vínculo com a primeira metade do livro e das "Geórgicas" como um todo é talvez o problema exegético mais difícil da poesia latina, e é decerto aquele sobre o que mais se escreveu (...).39

Um outro aspecto de constituição de sentidos que não se poderia omitir na presente discussão diz respeito à funcionalidade das Geórgicas enquanto fonte de informações técnicas. A esse respeito, as opiniões dos críticos têm em geral, com raras exceções,40 pendido para a consideração da obra enquanto produto de uma iniciativa de instrução agrária ficcionalmente construída.41 Isso significa que, devido especialmente a) à seletividade dos assuntos abordados pelo poeta e b) ao modo de tratá-los, costuma-se pensar nas Geórgicas como um texto poético destinado acima de quaisquer outros propósitos à elaboração artística da palavra.

Quanto à seletividade, já foi observado à exaustão que, ao lado da omissão de certos assuntos de fundamental importância para os agricolae romanos, Virgílio dá ênfase aparentemente injustificada a outros desprovidos do mesmo peso prático.42 Assim, o caso do completo silenciamento a respeito da suinocultura ou das edificações rurais (celeiros,

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casas, despensas, salas de prensagem...) exemplifica o primeiro aspecto e o longo e estilisticamente destacado tratamento da criação de eqüinos, o segundo.

Quanto aos porcos, sabemos que sua criação extensiva se constituía no principal meio disponível aos camponeses itálicos para a obtenção da carne: destinando-se o gado bovino sobretudo ao transporte e os ovinos e caprinos a usos secundários (extração do leite e das fibras provenientes da pelagem), cabia aos suínos prestarem-se a um papel de grande utilidade alimentícia pela própria extensão da utilidade de seus corpos.43 Ocorre, porém, que não se trata de animais facilmente assimiláveis a temas poéticos: associados a atributos indesejáveis como a grosseria, tendem a permanecer às margens do universo representativo focalizado por esse poema didático.44

Conforme esclareceremos adiante ao proceder à análise minuciosa dos textos dos "agrônomos", verificam-se reticências semelhantes quando da abordagem de outros temas "menores", considerados de certa forma "indignos" pelo poeta: é o que se dá no tratamento da construção da eira (I 176-186) e da adubação com esterco animal (I 79-81, II 346-348). Em ambas as circunstâncias, o magister didático oferece claros sinais de que, na verdade, há algum embaraço em abordar essas questões (como evitar ferir a sensibilidade do público?), de maneira a fazer-se necessária a sutileza e a habilidade expositiva para minimizar o problema.

A completa omissão da criação de porcos, porém, diferencia-se desses exemplos porque seus motivos mantêm vínculos com a necessidade de evitar-se não só o repulsivo ou o banal, mas ainda o elemento do humor: é importante lembrar que o terceiro livro das

Geórgicas, em que se concentra toda a abordagem da pecuária, é marcado por um tom

trágico, do mais negro pessimismo, em razão do enorme potencial destrutivo do amor e da peste.45 Nesse mesmo livro, conforme se tem em geral observado, Virgílio estreita decisivamente a proximidade entre os seres humanos e os animais (já que os abatem as mesmas forças nefastas),46 de modo que, a não ser com propósitos paródicos impensáveis no contexto, seria injustificado baixar ao tratamento chão de um tema tão avesso à nobreza.47

No tocante ao descuido do tema das edificações rurais, abordado por Catão48 e Varrão49 com algum destaque, consideramos tratar-se de mais um indício da literariedade das Geórgicas, como se de fato o poeta não estivesse interessado em "afinar" a função

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informativa do texto. A leitura de passagens semelhantes nos demais "agrônomos", pelo contrário, revelava neste ponto o desdobramento do discurso num sentido essencialmente sujeito a intentos referenciais: por motivos óbvios, esse é um aspecto importante da vida diária no campo e os autores, conformando-se às necessidades práticas do público, ofereciam informações detalhadas, à maneira de verdadeiros manuais de consulta. Isso significa que, menos preocupados com o "entretenimento" dos leitores, não encontravam obstáculos para a apresentação de seqüências inteiras de operações construtivas, em que se incluíam dados miúdos relacionados a medidas, ao modus operandi, ao custo das construções e da mão-de-obra e até mesmo à maneira de contratá-la.50

A criação de cavalos, embora não ausente da economia rural na Itália antiga, destinava-se sobretudo, como observou Robert, ao mercado urbano:51 era, por exemplo, com fins militares e de exibição nos espetáculos circenses que esses animais constituíam objeto de interesse para potenciais compradores; nas uillae romanas, como dissemos, cabia em geral aos bois (ou aos burros) o papel de se prestarem a bestas de tração ou carga. Assim, pensar nos eqüinos como um elemento tipicamente associável à realidade dos trabalhos e da vida nos campos romanos é um erro, não só pela atribuição a eles de uma participação maior do que a devida neste âmbito, mas também pela generalização excessiva da presença de sua criação na Itália: afinal, essa atividade se concentrava em certas áreas específicas do Império.52

Não se pode, porém, ignorar o significativo potencial poético vinculado aos cavalos: suas qualidades de força, vigor e beleza, bem como a existência de várias lendas da mitologia que os têm como elementos de interesse, permitem encontrar nessa espécie um tema de grande rentabilidade literária. O episódio mítico das éguas de Glauco, por exemplo, evocado por Virgílio para exemplificar o alcance imbatível do ímpeto sexual desses animais,53 favorece sem dificuldades o estabelecimento de elos entre a postura admonitória do magister agrário (ocupado em mostrar os perigos do descontrole amoroso dos animais) e a prática letrada dum poeta cujas necessidades incluem matizar o dizer e impressionar a imaginação do público.

Tendo oferecido esses exemplos a respeito dos motivos pelos quais Virgílio inclui ou elimina tópicos do texto, devemos passar ao breve comentário da questão da "elocução" do poeta. Como esperaremos demonstrar em seguida, no capítulo destinado a cotejar alguns

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trechos de afinidade temática das obras dos "agrônomos", a diferença essencial neste aspecto entre ele e os demais autores considerados diz respeito à escolha da poesia para dar vazão aos conteúdos: é sabido que o discurso poético, marcado pela elaboração expressiva da linguagem, resulta na produção de sentidos "condensados", mais, por assim dizer, próximos da apresentação direta dos temas do que de sua mera veiculação.54

Recorrendo a um vasto conjunto de recursos possíveis (sons, ritmos, disposição de palavras, seleção e combinação de elementos, repetições, imagens, metáforas, comparações...), o poeta encontra na linguagem os meios para unir harmonicamente a forma de expressão aos conteúdos, do que resulta uma espécie de intensificação do dizer: o que de outra maneira se dissiparia na banalidade da língua quotidiana adquire aqui contornos de algo posto em evidência. Esse é, portanto, o modo de emprego da linguagem responsável por todos os efeitos potencializadores encontrados nas Geórgicas: procedendo habilmente, Virgílio não só dosa com cautela o grau de tecnicidade de seu discurso "instrutivo" (tratando com brevidade de certos detalhes, por exemplo)55 como ainda, valendo-se de várias estratégias semântico-formais, torna a preceituação agrária uma espécie de suporte para a produção de sentidos que a ultrapassam largamente.

Não se deve com isso entender que uma espécie de leitura simbólica ou "alegórica" da obra seja a única possível, mas que a vivacidade de apresentação do mundo nela encontrada favorece, além do contato aproximado com o que se coloca diante de nossos olhos, uma postura afim à apreciação da beleza, desvinculada, portanto, da mera busca utilitarista de preceitos. Dito diversamente, apesar de manifestar algum grau de instrução com seus "conselhos" (e de poder ser lido em superfície nesse aspecto), o Virgílio das

Geórgicas direciona a linguagem para a inquietante riqueza de associações característica da

poesia.

Pelo que temos dito, é fácil ao leitor compreender por que, em certas ocasiões, referimo-nos à postura educativa do magister agrário das Geórgicas como uma ficção: