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Introdução: Catão, sua trajetória vital e obras

I. O De agri cultura de Catão Censor: aspectos da construção do texto, da linguagem e dos sentidos

1) Introdução: Catão, sua trajetória vital e obras

Tratar do De agri cultura catoniano é uma tarefa vinculada a significativo grau de responsabilidade: tocamos, aqui, na produção de um autor cujas características pessoais o definem como uma espécie de consagrado ícone da latinidade. De fato, essa personagem histórica se reveste de um papel fundamental na história de Roma devido a fatores de peso como seu envolvimento incessante na vida pública do tempo, sua proverbial disposição para manter-se próximo dos paradigmas do mos maiorum, a própria variedade de sua atuação prática no cenário da vida contemporânea, a extensão, riqueza e, por motivos específicos, importância de seus escritos.

Quanto à obra de que nos ocupamos, trata-se de um testemunho de grande valor para o conhecimento das técnicas, crenças, instituições, costumes e do imaginário associável à experiência rural dos latinos do segundo século a.C., além, evidentemente, de um manancial para estudos relacionados a questões lingüísticas ou literárias. De fato, sendo o De agri cultura a mais antiga obra em prosa integralmente conservada que a latinidade nos legou, é prática comum dos historiadores da língua latina1 reportar-se a esse texto com fins de obtenção de dados que lhes fundamentem as considerações sobre o estado do latim e de seu uso social em épocas um tanto recuadas da trajetória dos romanos.

Catão e sua obra, é importante frisar, inserem-se na cultura latina enquanto representantes do arcaísmo que a caracterizou até a decisiva abertura de Roma para os refinamentos do Oriente: considerados em conjunto, ambos, de uma maneira que tem sido nuançada pelos estudiosos,2 harmonizam-se com certos traços intrinsecamente vinculados à velha face itálica dos romanos. Isso significa que, mantendo-se em estado de relativa "pureza" em relação a práticas e costumes externos nos mais variados domínios da existência, o autor pôde, sem o exclusivismo absoluto, dar curso a modos de pensar e agir cujas bases se encontram enraizadas em princípios oriundos das mais características tradições pátrias.

A própria trajetória de vida dessa personagem, ilustrativa em vários aspectos de elementos valorizados pela cultura romana, passou a revestir-se no imaginário dos pósteros duma aura evocativa de "saudável" arcaísmo, de modo a resultar num verdadeiro modelo de conduta.3 Houve no pensamento dos latinos a respeito da própria história cultural uma espécie de ambígua melancolia pelo passado perdido: irrevogavelmente transformados (e enriquecidos!) pela assimilação maciça da cultura helenística após o término das guerras púnicas, não se esqueceram, porém, dos antigos valores dos maiores, cuja presença contínua e mais ou menos intensa em setores da vida social como a religião, o direito, a estrutura familiar e o vínculo com a terra propiciou o surgimento de elos de identidade a unir passado e presente. Em outras palavras, a evolução cultural da sociedade romana não se deu pela troca completa das idéias e costumes antigos, mas, processando-se paulatinamente através da prática de muitos, ocorreu como aclimatação moderada do novo ao tradicional.4

Ora, a eleição de modelos "heróicos" consagrados pela ideologia5 nesse âmbito identifica-se com o gesto de manter viva a chama do passado histórico dos latinos, com vistas ao esboço de imagens em que pudessem, supostamente, espelhar-se ou buscar "inspiração" para dar prosseguimento ao futuro. Nesse sentido, Catão, associado a traços de conduta positivos como o civismo e a enérgica disposição para servir aos interesses comuns, veio a ser uma das peças-chave para que se traçasse a figura do romano "à moda antiga".6

Nascido em Túsculo, modesto vilarejo situado a poucas milhas de Roma, no ano de 234 a.C.,7 Catão mostrou-se desde a mais tenra juventude um assíduo cultor dos princípios de industriosidade e disciplina tão caros ao ideário tradicional: de origem plebéia e sem nomes de destaque entre os parentes próximos, ele se entregou, antes do início de sua brilhante carreira pública, ao cultivo do solo da propriedade paterna no país sabino. Importa aqui lembrar que esse povo, amalgamado aos latinos desde tempos muito recuados, vinculava-se no pensamento antigo à ciosa conservação das tradições culturais romanas, o que lhe justifica a atribuição da frugalidade e do trabalho enquanto características distintivas.8

Certo testemunho de Catão, fragmentariamente conservado, oferece-nos uma idéia aproximada da ambientação em que o autor nasceu e se viu inserido durante os anos da primeira mocidade:

Ego iam a principio in parsimonia atque in duritia atque (in) industria omnem adulescentiam meam abstinui agro colendo, saxis Sabinis, silicibus repastinandis atque conserendis.9

"Quanto a mim, desde o princípio resguardei toda minha juventude na parcimônia, no rigor e na atividade cultivando os campos, rochas sabinas, recavando e semeando o cascalho."10

Posteriormente, durante a guerra hanibálica na Itália, Catão ingressou na vida militar como simples soldado em favor da defesa da pátria contra os invasores e, tendo-se destacado por sua atuação, viu-se aos vinte e quatro anos como tribuno militar na Sicília. Além da agricultura e da participação bélica, é preciso associar à sua juventude, como observa Della Corte, a "estréia" na pequena política regional: então, pôde exercitar-se numa espécie de oratória forense regrada por princípios de tradicionalismo e gravidade de julgamento, bem como por um estilo que, se não deixa de parecer eficaz, manifesta traços de rudeza expressiva.11

Tendo, daí, direcionado sua carreira para a vida pública na Capital, foi empossado questor e, mantendo-se fiel a idéias conservadoras, entrou em confronto com a família aristocrática dos Cipiões, difusores do helenismo e de reformas políticas na sociedade romana.12 Pouco depois, aos trinta e um anos, foi eleito edil da plebe e, cinco anos mais tarde, pretor da Sardenha, onde se destacou pela honestidade e por um modo de vida austero, ajustado a seus princípios pessoais.13

Aos trinta e nove anos, beneficiando-se de sua fama de incorruptibilidade, coube-lhe o consulado e o início de um período em que buscou a moralização da sociedade (com a proposição malograda do retorno da lex Oppia, destinada a coibir os gastos pessoais dos cidadãos) e refrear os crescentes avanços dos grandes financistas, protegidos dos Cipiões, sobre o poder estatal.14 Concomitantemente, com o levante dos nativos nas Espanhas

Citerior e Ulterior, foi preciso que liderasse uma expedição contra os revoltosos, do que resultou a prostração dos inimigos e sua entrada triunfal em Roma no ano de 194 a.C.;15 conta-se ainda, no tocante a seus feitos bélicos, uma hábil vitória contra Antíoco, rei da Síria, sob a condição do tribuno encarregado pelo senado de debelar o soberano e seus aliados no oriente.16

Nos anos subseqüentes, já empenhado em obter a censura, Catão concentrou ataques oratórios virulentos nos integrantes do círculo cipiônico, a que se podiam imputar senões como a corrupção e a ilegalidade no governo de províncias orientais: assim, com a vitória do inimigo, Públio e Lúcio Cipião, desmoralizados perante a opinião pública e punidos, retiraram-se da política republicana num gesto que significou um certo ofuscamento de sua família.17

Embora a tendência para a rigidez moral tenha sido uma marca constante da vida dessa personagem,18 acentuou-se com sua eleição como Censor morum. As atribuições do cargo previam um tipo de cerrado policiamento dos costumes dos cidadãos, cabendo-lhes castigos mais ou menos severos conforme a natureza das faltas (libertinagem, luxo demasiado, desrespeito aos deuses e tradições pátrias...); dessa maneira, em firme adesão ao esperado de um bom censor, ele não hesitou em punir com energia delitos como o do senador Manílio, culpado por abraçar a própria esposa na presença da filha.19

Não se pode, por outro lado, omitir suas iniciativas de composição escrita: além dos discursos, plenamente inseridos no contexto maior de sua atuação política em Roma, e do

De agri cultura, de que trataremos com detalhes, ele se dedicou a compor as Origines, obra

de cunho histórico destinada a resgatar e valorizar o passado romano desde tempos longínquos, duas outras "monografias" técnicas especializadas (o De re militari e um compêndio de direito civil), o Ad filium, identificado, na visão de Astin,20 com uma provável coletânea de preceitos práticos variadíssimos, o chamado Carmen de moribus e uma compilação de ditos moralizantes.

Sem termos esgotado o considerável "catálogo" de seus feitos e escritos, reiteramos que ele, em evidente postura de diligência e combatividade, manteve-se por ambos os meios bastante "engajado" na causa da promoção de certos valores tipicamente associáveis à cultura romana. Se considerarmos que, privilegiando a atividade intelectual nos anos posteriores ao final da censura (caracterizados por certo abrandamento em seu

envolvimento com a política),21 ele assim complementou até a velhice os trabalhos bélicos, políticos e militares que lhe tinham cabido até então, teremos bons parâmetros a respeito da medida em que se bateu por suas idéias.

Tem-se aqui, de fato, um intenso comprometimento com valores como o trabalho, a persistência e a austeridade não só pelo caráter praticamente contínuo dos gestos pessoais afins à sua manifestação, mas ainda pelo próprio teor dessas iniciativas: enquanto agricultor e soldado, Catão combateu fisicamente as agruras da guerra e das ameaças naturais; enquanto cidadão no real sentido da palavra, ou seja, participante ativo da vida política de Roma, buscou coibir certas forças contrárias ao ideário conservador; ao compor, por fim, um conjunto extenso de obras relacionadas a assuntos de grande importância para a vida prática dos antigos (a exemplo da guerra, da moral, da agricultura, da medicina, do direito...), ele favoreceu, com os méritos de um verdadeiro pioneiro, o desenvolvimento nascente das letras latinas:

As motivações e propósitos que levaram Catão a escrever, a gama, as formas, a qualidade e mesmo a natureza básica de suas composições podem sujeitar-se em conjunto ao debate; mas a grandeza de sua realização está fora de questionamento. Ele foi virtualmente o fundador da prosa literária romana. E suas realizações não são diminuídas pelo reconhecimento de que, como todos os que produzem contribuições originais, não trabalhava no vazio e seus escritos eram relacionados e derivados do que outros fizeram. Outros romanos tinham escrito obras históricas em prosa, mas em grego, não em latim. Outros romanos tinham criado obras literárias em latim, mas em verso, não em prosa. Outros romanos podem ter anotado informações práticas e compilado "livros" para uso particular, mas Catão foi o primeiro a preparar tais livros com vistas à circulação, a seu uso por um "público". E, se o alcance e sofisticação de suas composições foram às vezes superestimados, eles ainda mostram sem sombra de dúvida uma notável amplitude de interesses e variedade.22

As palavras do crítico tocam em pontos de fundamental importância para o entendimento da obra de que nos ocupamos neste estudo: no De agri cultura, em que pese à sua inegável relevância histórico-cultural, ao maior detalhamento expositivo de algumas das partes quando contrapostas ao De re rustica e às Geórgicas, à manifestação de uma saborosa aura de arcaísmo por influência da mentalidade do autor e à eventual estilização da linguagem, não se tem algo afim à extraordinária elaboração intelectual e da forma. Assim, deixam-se trair pelas feições do texto tal como se nos apresenta senões como o forte contraste estilístico entre o prefácio da obra (em que se vêem usos provavelmente herdados da retórica) e seu corpo subseqüente, a relativa desordem (ou, em parte, redundância) na apresentação dos tópicos e a retomada exaustiva dos mesmos traços de linguagem (sem, portanto, a adoção da uariatio como um princípio-mestre da escrita).

Em vista dos fatores limitantes do perfeito acabamento da obra, tem-se proposto, por sinal, uma série de interpretações não consensuais para explicar o trajeto formador do texto até o estado atual: referindo-se à questão, Astin23 e Goujard,24 entre outros, mencionam aquelas relativas à idéia básica de sua forte adulteração por editores subseqüentes ou à interferência no processo de elementos vinculados à própria atuação catoniana (seja pela inexperiência compositiva do autor,25 seja pela incompletude da obra

no momento de sua morte).

Na impossibilidade do fechamento teórico dessa discussão, limitar-nos-emos em seguida a considerar o De agri cultura no estado em que se encontra, sem elucubrações a respeito das causas profundas pelas quais o vemos enquanto somatória de faces "positivas" e "negativas". Tem-se, aqui, sobretudo um caso favorável à descrição do que se percebe concretamente pela leitura, em seus aspectos variados de significado, forma e composição; nesse sentido, admitindo ainda que a atribuição da autoria do que há de essencial na obra a Catão facilita discutir, adotaremos sempre o procedimento de considerá-lo, enquanto único emissor da "voz" textual, o responsável pela escrita. Ao longo do percurso assim constituído, pois, espera-se delinear o panorama dos pontos propícios à obtenção de uma imagem aproximativa da obra.