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Introdução: Varrão, sua trajetória vital e obras

II. O De re rustica de Varrão: aspectos da construção do texto, da linguagem e dos sentidos

1) Introdução: Varrão, sua trajetória vital e obras

Com a abordagem de parte da extensa produção varroniana, adentramos um ambiente intelectual dotado de características notoriamente particulares: referimo-nos ao fato de que esse autor se destaca, no quadro dos demais considerados neste trabalho, pela face da pesquisa erudita nos mais diversos ramos do saber (linguagem, "agronomia", história, filosofia, geografia, direito, retórica, dialética, geometria, aritmética, teatro...).1

É importante, a esse respeito, estabelecer algumas diferenças entre sua poligrafia e a de Catão, a que nos referimos no capítulo antecedente. Pelo que dissemos acima, deve ter- se esclarecido que a produção do Censor se destacou sobretudo pelo pragmatismo, manifesto não só pelo teor prático da maior parte dos escritos (vinculados a temas de medicina, de agricultura, de moral normativa, de táticas bélicas...), mas ainda pelo privilégio, na concepção de uma obra como o De agri cultura, do aspecto comunicativo da linguagem. Catão, portanto, sem desviar-se tanto para a especulação abstrata, procurou como que guiar a ação eficaz dos cidadãos em todos os ramos do saber humano de que se ocupou como autor.

O mesmo, apesar do valor prático de obras como o De re rustica e, presume-se, o

De iure ciuili,2 não se dá no caso de Varrão: esse autor, com efeito, furta-se ao pragmatismo estrito tocando em temas especulativos como a gramática e, ao abordar outros afins aos afazeres concretos, concedendo algum espaço a fins alheios à mera preceituação. Em outras palavras, tem-se aqui, em comparação com a iniciativa de Catão, o enriquecimento da prática compositiva nos planos do modo de tratamento dos conteúdos e de sua variedade, de um modo incompatível, mesmo no De re rustica, com a relativa rudeza do predecessor.

De modo semelhante ao que fizemos no capítulo precedente, passaremos em seguida a oferecer algumas coordenadas sobre a trajetória de vida de Varrão no intuito de, acompanhando-lhe os passos, delinear os traços essenciais de sua personalidade. Assim, buscaremos justamente, sob uma forma de apreciação que propomos comparativa, coligir

elementos para que se pense nele e em seus escritos sob uma ótica diversa, marcada não mais pela preocupação imediata com o fazer, mas pelo sensível refinamento de atitudes.

Antes, porém, deve-se dizer que, enquanto Catão soube imbricar profundamente sua experiência de vida e seus escritos (haja vista a coincidência aproximada entre a natureza de suas obras e os vários papéis por ele desempenhados em sociedade), Varrão estabeleceu uma fronteira mais nítida entre esses planos, privilegiando, em que pese a fatos como sua participação na política e nas guerras do tempo, a constituição de um corpus alheio à imediatez de seus gestos efetivos. Isso significa que ele, pela própria ênfase em destacar-se no campo da erudição, deu curso à escrita sob um impulso que não se identifica mais com o desejo de torná-la um prolongamento direto de suas atitudes "na vida real", mas concedeu importante espaço ao que se poderia chamar com cautela de composição "desinteressada", antes afim ao tratamento dos temas em si mesmo compreendido do que ao uso das obras como instrumentos ou ecos do vivido.

De início, é curioso notar que também ele teve origens até certo ponto parecidas com as do Censor, ambos originários de famílias detentoras de propriedades sabinas (apesar de enraizar-se provavelmente na ordem eqüestre e não na plebe, como aquele).3 Pode-se ainda atribuir razoável destaque a seu meio familiar.4

Da fase da primeira juventude do autor, interessa ressaltar o contato direto com a realidade dos usos de sua região natal:5 como observamos, associava-se a ela na Antigüidade forte aura de tradicionalismo, atribuindo-se a seus habitantes uma espécie de

pietas rústica em gradativo desaparecimento em outras partes da Itália. Os resquícios dessa

vivência, por sinal, fazem-se sentir em várias das obras do autor (incluindo o De re rustica), de um modo identificado com a apresentação de detalhes vivos,6 a constituírem evocações fragmentárias do passado.

Em contraste com a rusticidade completa da infância e adolescência de Catão (e apesar das lacunas que nos impossibilitam conhecer todos os detalhes dos primeiros anos do autor de que nos ocupamos presentemente), sabe-se que Varrão pôde instruir-se jovem7 com o mais célebre gramático da época. Referimo-nos a Élio Estilão, cujos conhecimentos teóricos herdados dos estóicos se aplicaram sobretudo a certa "filologia" etimológica8 e às antigüidades de Roma.9

Tem-se nessa iniciação intelectual, portanto, uma explicação possível para a vinculação das especulações posteriores de Varrão, em tantos casos, à busca do passado longínquo de Roma: mesmo em suas obras especializadas, como o De re rustica, notamos com freqüência a presença de desenvolvimentos temáticos afins a esse universo.10 A própria escolha do tema agrário e, como veremos, o modo de tratamento a ele conferido no

De re rustica, significam até certo ponto a aliança do autor com as tradições romanas.

Tendo-se afastado de Roma durante os anos da ditadura de Sila, encontramo-lo nessa época completando sua educação em Atenas, sob a direção do filósofo eclético Antíoco de Ascalão.11 Aos trinta e cinco anos, de volta a Roma para o retorno à vida pública12 através do desempenho de uma série de cargos, pôde aliar às obrigações cívicas a dedicação ardorosa aos estudos eruditos.13

Como é sabido,14 a fase mais brilhante da vida pública dessa personagem corresponde aos anos em que se ligou por elos de amizade e aliança política a Pompeu Magno. Poder-se-ia mencionar, portanto, como impulso inicial de sua carreira, a composição das obras identificadas com a Ephemeris naualis e um opúsculo sobre a arte de bem desempenhar o consulado (Isagogicum ad Pompeium); em ambos os casos, os conteúdos mantêm vínculos estreitos com as necessidades de Pompeu, destinando-se, respectivamente, a instruí-lo para uma boa viagem marítima às Espanhas15 e ao sucesso numa função política que nunca desempenhara antes.16

Durante as guerras civis, com a eclosão definitiva do confronto entre César e Pompeu, Varrão (a princípio, ainda vinculado ao segundo) encontrava-se no comando da Espanha Ulterior. É bem conhecida a história da total entrega dessa província a César após ter recebido a notícia de seus recentes sucessos: o próprio general narra em seu Bellum

ciuile, não sem ironia, que Varrão, naquele momento, se quoque ad motus Fortunae mouere coepit.17

Para um estudioso como Riposati, não haveria nesse gesto varroniano um sinal evidente de perfídia, mas algo que se coaduna com a prudência:

Amigo e conselheiro de Pompeu, devia aceitar tornar-se lugar-tenente na província da Espanha, onde, não obstante, aguardavam-no os mais dolorosos episódios até então vividos, onde o aguardava Farsália, que

marcou o fim do exército e do partido pompeiano, deixando também Varrão na perturbação mais desoladora. Mas a alta reputação de seu saber, seus sentimentos patrióticos, seu espírito de moderação e de sabedoria e seu respeito à autoridade da lei não só salvaram o prestígio de sua dignidade de magistrado romano, como ainda lhe deram um tom de independência e liberdade de ação, convencido de que, em tais circunstâncias, mais do que a homens, era preciso servir ao supremo ideal da pátria. Assim, passou-se a César porque viu nele naquele momento, como antes em Pompeu, o defensor supremo da ordem pública e da autoridade do Estado.

Bem sei que uma certa crítica histórica, de marca e inspiração positivista, não poupou, de Drumann e Mommsen em diante, críticas e condenações à linha de conduta de Varrão, acusando-o de uma flexibilidade interesseira e de incoerência partidária. Mas quem conhece Varrão, que em todas as circunstâncias de sua vida, marcada pela mais equilibrada retidão moral, militou sempre sob as insígnias da legalidade e da ordem, não pode deixar de justificar seu comportamento político nesse doloroso episódio, diante do qual - foi bem observado há pouco - "fez seu exame de consciência; recordou-se de que fora impelido a essa guerra, que não desejara, violando seu senso de moderação. Eis porque, vendo arruinado seu partido, entrega a César tudo o que tinha em seu poder. Não se importa com o modo pelo qual César entrou em seu território, nem com que direito detém presentemente o poder; o importante é que agora César representa a ordem, a lei, a continuidade do domínio romano."18

Também não se deve omitir que Varrão, partindo da Península ibérica, dirigiu-se imediatamente para o Epiro a fim de juntar-se aos demais pompeianos para a batalha final.19 Com a derrota dos exércitos do líder em Farsália, Varrão, tendo escapado com vida nessa ocasião funesta, seguiu para Corfu e a Itália, onde, proscrito pela primeira vez entre outros vencidos,20 obteve a clemência de César e a honrosa nomeação para o cargo de diretor da biblioteca greco-latina de Roma.

Por fim, após o assassinato do ditador nos idos de março de 44 a.C. e a formação do segundo triunvirato, foi novamente envolvido nas proscrições em circunstâncias misteriosas: os motivos de tal perseguição e o responsável por ela, aliás, têm-se constituído em temas de debate desde a Antigüidade.21 Independentemente das dúvidas suscitadas em todos os que se dedicaram ao exame da questão, é preciso lembrar o fato de que Marco Antônio, responsável direto pelo primeiro confisco dos bens de Varrão, ainda era um homem forte da república romana no momento da segunda ocorrência; além disso, a riqueza e o prestígio recuperados por nosso autor poderiam parecer provocativos para seus antigos rivais.

Com isso, não pretendemos um impossível fechamento da discussão, mas tão somente apresentar pontos de especial interesse para seu "mapeamento". Afinal, parece-nos pessoalmente difícil imaginar que, com o desaparecimento do antigo protetor, não se tenha tentado alguma forma de represália contra os privilégios de que Varrão se vira dotado por sua vontade.

De qualquer modo, ele escapou da morte com a ajuda de um certo Quinto Fúfio Caleno, homem a serviço de Antônio,22 e, excepcionalmente homenageado em reconhecimento por seus méritos com a exposição pública de um busto em 38 a.C., pôde dedicar-se por completo à escrita das obras finais (em que se inclui o De re rustica) até sua morte, quase aos noventa anos.23

No tocante ao vasto catálogo de suas obras, em sua maioria perdidas para nós,24 importa destacar, além do De re rustica, o De lingua Latina, os numerosos volumes das

Antiquitates humanas e divinas e as Sátiras Menipéias. Quanto ao De lingua Latina,

tratava-se originalmente de uma obra em vinte e cinco livros, repartidos em três grandes seções relativas à impositio uerborum (ou seja, ao modo inicial de nomeação dos objetos em latim),25 à morfologia26 e à sintaxe do idioma em questão.27 Nele, em conformidade com a "vanguarda" da discussão "lingüística" de sua época, o autor incorporou princípios teóricos e de análise oriundos de escolas filosóficas variadas, legando-nos, através dos livros conservados, uma fonte essencial para o conhecimento direto dessas especulações no mundo greco-romano.

As Antiquitates, por sua vez, incluindo-se no quadro dos demais trabalhos históricos

assuntos vinculados ao passado romano e aos cultos tradicionais, no último caso sob impulso dum gesto que tem sido interpretado enquanto tentativa de "salvação" da religiosidade pátria. Como se sabe, tolerantes com os cultos estrangeiros29 (ou gradativamente céticos),30 os latinos foram pouco a pouco divergindo dos costumes dos

maiores nesse setor da vida social; assim, ao apresentar copiosos dados concernentes aos

usos genuinamente nacionais, Varrão contribuiu para evitar o esquecimento de práticas que ainda lhe pareciam indispensáveis à estabilidade da república.31

Por fim, antes de passarmos ao tratamento do De re rustica, deve-se relacionar as

Sátiras Menipéias com a face filosófica de Varrão:32 trata-se de uma obra de juventude, cuja importância foi a introdução nas letras latinas de um gênero misto (em que se mesclavam a prosa e a poesia), destinado à iniciação ligeira do público romano na filosofia grega.33 Desse modo, com as demais obras aqui examinadas de passagem ou apenas citadas, as Sátiras dão testemunho da prolificidade e da contínua inquietude intelectual de Varrão, eruditissimus Romanorum.34