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As Geórgicas de Virgílio e a assimilação transformada da temática agrária

Em relação às obras de seus predecessores temáticos na literatura agrária latina, caso de Catão Censor e Varrão de Reate, pode-se dizer que o Virgílio das Geórgicas expandiu as reverberações de sentido associáveis a esse conteúdo através de substancial enriquecimento em vários aspectos constitutivos do poema. De fato, apesar da já mencionada presença de elementos vinculados a influxos ideológicos e à busca de alguma elaboração do texto (no caso de Varrão) no De agri cultura e no De re rustica, as

Geórgicas representam o alcance de um grau de complexidade e ampliação de

possibilidades expressivas que ultrapassa largamente o mero intento de informar, submetendo ao plano técnico fatores indicativos de sua assimilação pela cultura ou pelas interpretações dos autores. Em outras palavras, parece-nos que Virgílio, a despeito da manutenção superficial da face de instrução técnica que caracterizava por excelência as obras de Catão e Varrão, deslocou a linha de força da constituição dos sentidos em seu poema para planos identificados com o de questões de maior alcance, social1 ou filosoficamente pertinentes.

Por uma espécie de processo caracteristicamente associável à dicção poética e que tem relação com a possibilidade de comunicar num mesmo momento (através de um mesmo verso ou passagem, por exemplo) sobre coisas distintas, o poeta obtém nas

Geórgicas um meio de estabelecer nexos entre o quotidiano rural e contextos mais

abrangentes. Referimo-nos, evidentemente, à dimensão simbólica da poesia e à sua face polissêmica, fatores importantes à re-significação de temas mesmo quando se identificam com algo passível de tratamento apenas literal:2

seminibus positis superest diducere terram

saepius ad capita et duros iactare bidentis, 355

aut presso exercere solum sub uomere (...)3

"Tens posta a bacelada; agora se te segue,

a dura enxada a amanhe, ou co'o rompão do arado se arregoe por fundo (...)."4

Nos versos acima (II 354-356), em que Virgílio tematiza as atividades a serem conduzidas no cultivo do parreiral logo após o plantio das toras/ mudas de videira no local definitivo, introduzem-se, especialmente através das expressões destacadas no trecho latino, claros indícios que apontam para a necessidade de sua interpretação em níveis diversos do da superfície. Assim, a leitura atenta do poema como um todo revela que uma palavra como

durus ("duro", "rude"...), caracteristicamente associável ao mundo do rusticus e à sua forma

de atuação sobre a natureza, ocorre com alguma freqüência ao longo do texto e indica uma certa violência na interação entre o homem e a terra;5 mutatis mutandis, o mesmo se dá no caso da expressão presso (...) sub uomere, já que o adjetivo empregado para qualificar o arado ("pressionado") pressupõe a idéia do uso da força. Por fim, o advérbio saepius ("com bastante freqüência") contribui para construir uma imagem do trabalho não apenas como uma atividade de "luta" contra as dificuldades naturais, mas ainda como algo repetitivo, com provável desgaste mútuo para o rusticus e a terra.

Isso significa que, embora não se possa negar o oferecimento de algum grau de instrução técnica na passagem, as reverberações de sentido obtidas neste caso pelo emprego de expressões evocativas de eixos temáticos subjacentes aos "ensinamentos" técnicos e que perpassam todo o poema acabam por favorecer-lhe o enriquecimento das possibilidades de leitura. Eis o que justifica a interpretação de um adjetivo como durus para além da mera associação com a qualidade física da rigidez...

A própria repartição dos livros das Geórgicas entre as atividades da agricultura/ arboricultura (I e II), da pecuária (III) e da apicultura (IV), ocorrendo a concentração dos esforços do homem sobretudo nos três primeiros e das abelhas no último, favorece que os temas do trabalho e de seu papel na Ordem universal se constituam numa espécie de fio condutor da integridade do poema. Importa, aqui, considerar as implicações resultantes do tratamento por Virgílio desses temas na passagem tradicionalmente conhecida como "teodicéia do trabalho".

Como se sabe, nela o poeta aborda a questão da introdução do trabalho no mundo sob os auspícios de Júpiter, insatisfeito com a indolência em que se encontrava a

humanidade na Idade Áurea (caracterizada, na versão hesiódica6 e na seguida aqui por Virgílio, pela produtividade abundantemente espontânea da terra). Curiosamente, porém, Virgílio não mantém em sua versão a face do encerramento dessa era mítica enquanto castigo divino aos homens, apresentando-o nos termos de um plano maior em favor da transformação de sua forma de existência: movida pela nova realidade de uma natureza não mais tão generosa, a raça humana pôde desenvolver as técnicas necessárias à sua sobrevivência e, por fim, habituar-se a ganhar seu sustento com o suor do próprio rosto.7

Ao menos de início, então, poder-se-ia pensar na atuação do Pater (Júpiter) como sinal da atuação da Providência no mundo, com o sentido de algo que contribuiu para a melhoria (moral e no que se refere ao desenvolvimento da inteligência) de nossa espécie. Ocorre, porém, que, já na versão hesiódica, o final da Idade Áurea correspondia a um estado de necessária diminuição da felicidade sobre a Terra, de maneira que a vida de trabalho, embora enobrecedora e afinada com a justiça divina, identificava-se apenas com o

melhor possível na atual fase da existência humana.8

De maneira um tanto paradoxal, Virgílio parece indicar aqui que as implicações do fim do estado "edênico" para nossa raça são complexas, já que se prestam a visões mais ou menos centradas no "bem" daí resultante. Na verdade, não é possível, apesar de nosso impulso inicial de nos inclinarmos pelo que parece ser uma visão "otimista" de Virgílio a respeito da atuação de Júpiter nesta ocasião, desconsiderar que tal atuação se caracteriza antes de mais nada pelo oferecimento de dificuldades que têm de ser superadas com grande empenho.

Desse modo, já nessa espécie de etiologia do trabalho, Virgílio ressalta basicamente dois pontos que perpassarão os quatro livros das Geórgicas como eixos temáticos centrais: por um lado, tem-se a apresentação da realidade atual identificando-a à aspereza das condições em que é necessário interagir para sobreviver; por outro, o fato de que quase nada mais se pode obter sem esforço obriga o homem à adoção de uma postura combativa diante do mundo. Esse é, aliás, o fundo temático a que se vincula a passagem virgiliana citada há pouco: se é preciso lavrar com "enxadas duras" e submeter ao "arado

pressionado", é porque foi preciso desenvolver a técnica em "luta" contra uma natureza

No livro II, porém, Virgílio não só aproxima a vida atual dos camponeses italianos da mítica Idade Áurea (fase de reinado de Cronos entre os gregos ou de Saturno entre os latinos), como ainda indica que, naquele período ideal, os homens trabalhavam a terra e coabitavam com o deus nos campos.9 Em aprofundado comentário ao significado dessa redefinição (pois, na teodicéia, vigorava na Idade Áurea o automatismo absoluto da produção da terra e os homens não trabalhavam), Barchiesi ressaltou a influência das concepções de Arato a respeito do tema sobre esta passagem das laudes ruris10 e seu caráter de proposição do que seria uma visão não cerradamente cronológica de tal estado de bem- aventurança. Assim, recolhendo um conjunto de traços que julgou passíveis de associar a uma conduta humana ideal (trabalho, frugalidade, religiosidade, justiça...), Virgílio pôde contrapor como pólos opostos neste trecho os vícios urbanos ao valor dos camponeses de sua época, apresentados como equivalentes atuais dos homens que viveram sob Saturno.11

Disso resulta uma espécie de incoerência entre as visões associáveis ao trabalho no livro I e no livro II das Geórgicas: no primeiro caso, como dissemos, apesar da menção ao final da Idade Áurea (e ao início das dificuldades de sobrevivência para o homem) como resultado da atuação da Providência, o teor hesiódico da teodicéia impedia-nos o esquecimento de que o estado anterior à queda (em que não se trabalhava) era caracterizado pela ausência de conflitos entre o homem e a natureza. Em contrapartida, a imagem da agricultura esboçada nas laudes ruris não só se apresenta como herdeira de uma outra tradição que incluía essa atividade no estado de plenitude inicial mas também opera pela transposição desse modo de existência ao seio do universo rural contemporâneo a Virgílio.

Apesar dessa aparente mudança de paradigmas e das observações de Barchiesi a respeito de certa reelaboração "corretiva" do conceito de Idade Áurea nas laudes ruris,12 parece-nos difícil rejeitar a noção central do trabalho enquanto reação (muitas vezes brutal) às dificuldades de um meio hostil:13 no próprio livro II, apontado, como dissemos, como espécie de contraponto do "pessimismo" do livro I pela prodigalidade da natureza apresentada ao leitor e pela imagem da "cooperação" entre os seres humanos e as árvores, podem-se encontrar indícios da persistência da necessidade de manter a alto custo os esforços pelo sucesso.

Citando um exemplo passível de ser depreendido pela própria leitura do texto, na longa passagem em que Virgílio se dedica ao tratamento do tema do cultivo das videiras (II

259-419) deixa-se entrever em alguns pontos que, longe de se sujeitarem sem resistir aos intentos do homem, devem ser submetidas pelo trabalho intenso em razão, curiosamente, de sua própria vitalidade natural. Nos versos em que se tematiza a questão da poda, por exemplo, nota-se certa alteração das atitudes do rusticus para com as plantas:

ac dum prima nouis adolescit frondibus aetas, parcendum teneris, et dum se laetus ad auras palmes agit laxis per purum immissus habenis,

ipsa acie nondum falcis temptanda, sed uncis 365

carpendae manibus frondes interque legendae. inde ubi iam ualidis amplexae stirpibus ulmos exierint, tum stringe comas, tum bracchia tonde (ante reformidant ferrum), tum denique dura

exerce imperia et ramos compesce fluentis.14 370

"Enquanto a vide é nova, e está no crescimento, poupa-lhe a tenra folha; após, quando o sarmento se lança ao ar sereno e à rédea solta, ufano, mas não adulto, arreda o teu podão profano;

esparra, mas à mão, e de onde em onde. Em sendo 435 que extenso ao tronco aperte, embora; condescendo

em que desfolhes franco, e hásteas afouto podes; já não no assusta o ferro; usá-lo alfim já podes; és dono, anda sem dó: guerra ao pompaear sobejo."15

Assim, o momento de manifestação do vigor nas videiras marca o ponto decisivo para a mudança drástica da forma de interação entre o homem e a natureza: da grande delicadeza do início, passa-se a exercer a força bruta a fim de evitar o domínio do descontrole natural; a exuberância e a prodigalidade da natureza na era corrente, tipicamente manifestas no livro II das Geórgicas através de imagens como a da grande variedade arbórea (II 83-108) e a do sucesso com que se praticam os enxertos (II 63-82),

não eximem o rusticus da necessidade de impor-se com vistas à obtenção de bons resultados.16 Nos versos transcritos acima, pois, é importante notar o tratamento das videiras mais desenvolvidas como um subjugar apresentado em termos antropomorfizantes: tais plantas "indisciplinadas" têm "braços" (bracchia - v. 368) e "cabeleira" (comas - v. 368) que é preciso cortar e devem ser debeladas (como "ameaças") de um modo, para um comentador como Thomas, evocativo de nuanças bélicas ou mesmo políticas.17

Acreditamos que a relativa variação de tom ocorrida ao longo dos quatro livros das

Geórgicas justifica que Virgílio "atenue" em parte a imagem do que se descreve nos livros

pares do poema (caso do II e do IV). Essa variação superficial, porém, ocorrida através da apresentação das faces mais ou menos risonhas da integração entre o homem e a Ordem estabelecida, não basta para desfazer o que temos destacado como ênfase no aspecto da luta árdua pela sobrevivência.

Ainda no contexto do cultivo do parreiral, os últimos versos dedicados ao tratamento desse trabalho podem lançar alguma luz sobre as questões tratadas até o momento:

est etiam ille labor curandis uitibus alter,

cui numquam exhausti satis est: namque omne quotannis terque quaterque solum scindendum glaebaque uersis

aeternum frangenda bidentibus, omne leuandum 400

fronde nemus. redit agricolis labor actus in orbem, atque in se sua per uestigia uoluitur annus.18

"A lida num vinhal absorve o ano e os meses:

o solo há de se abrir três vezes, quatro vezes; 480 desfazer-se os torrões co'a enxada eternamente;

aliviar da rama o bosque, embora ingente. Inda não se acabou, já se reprincipia; é na roda anual suar de dia em dia."19

iam uinctae uites, iam falcem arbusta reponunt 416

iam canit effectos extremus uinitor antes sollicitanda tamen tellus puluisque mouendus et iam maturis metuendus Iuppiter uuis.20

"Já vês a vinha atada, a poda feita, e cantas, 505 cansado, à orla enfim das alinhadas plantas;

mas vais entrar de novo em luta co'o terreno e revolver o pó. Vês o ar limpo e sereno, e inda estás a tremer que às maduradas uvas

(Jove é pronto em mudar) não sobrevenham chuvas."21

Ora, surpreende-se neste, que é por vezes considerado o mais "luminoso"22 dos livros das Geórgicas, a declaração de que os esforços do viticultor, sucedendo-se cumulativamente de ano a ano, não chegam jamais (numquam - v. 398) a um termo. A segunda passagem citada acima, por sua vez, contribui para o agravamento das dificuldades com que o rusticus tem de haver-se em sua lida: nesses versos, exatamente coincidentes com o término da seção dedicada ao cultivo do parreiral (introduzindo-se a partir do verso 420 o breve tratamento do tema das oliveiras),23 paira a ameaça de que Júpiter venha a destruir com as chuvas o resultado final de todo o cultivo.

Um aspecto significativo para que se compreenda a questão do "otimismo" ou do "pessimismo" de Virgílio nesta obra tem relação com o que a crítica por vezes denomina as "mentiras"24 do poeta. Típico representante dos que se pautam pelo princípio de que Virgílio, mesmo quando voltado em aparência para o enaltecimento da vida agrária, na verdade estaria posicionando-se em favor do mais negro pessimismo, Ross ressaltou a presença de vários elementos perturbadores da visão identificada com a "luminosidade" plena dos livros pares das Geórgicas.

Assim, o trecho em que se recomendam enxertos tecnicamente impossíveis entre as árvores frutíferas e certos elementos contraditórios presentes numa passagem tão destacada quanto a das laudes Italiae25 fazem com que ele se incline pela interpretação de ambos enquanto indícios do inequívoco posicionamento do poeta. No primeiro caso, o próprio

desacordo entre uma suposta e exuberante produtividade obtida através da técnica de cultivo descrita e o que se comprova corresponder a uma flagrante falha técnica (por sinal, dificilmente ignorada por Virgílio)26 fundamenta-lhe a leitura.27

Quanto às laudes Italiae, o crítico ressaltou a presença do enaltecimento inicial da terra como espécie de contraponto de algo que se segue na mesma digressão e se caracteriza pelo esboço de uma imagem menos idealizada:

Essa sucessão de mentiras, então, tem o óbvio propósito de estabelecer a Itália como uma terra ideal, comparável à Idade Áurea de Saturno ou às Ilhas dos bem-aventurados. Dizer que a Itália desfruta de uma primavera eterna e abundância contínua, isenta de todos os males (animais selvagens, plantas venenosas, serpentes), é um modo aceitável de estabelecer essa analogia - licença poética, enfim, e só o mais terra-à-terra dos ingênuos insistiria na botânica verdadeira ou na história natural. Mas o que se segue é o que chamaríamos de mentira de segunda circunvolução: o tipo italiano, como sugerido antes, nada é a não ser versado na guerra.28

Desse modo, apontando a presença de novas "mentiras" no intervalo correspondente aos v. 155-176 (a exemplo da menção à existência de verdadeiros "rios" de prata e cobre na Itália - v. 165 - e de uma imaginária investida militar de Otávio contra os longínquos hindus - v. 170-172), Ross baseia-se nas mesmas para reiterar a recomendação de cautela com a adesão irrestrita às palavras do poeta. Além disso, observa, de maneira dificilmente conciliável com a imagem inicial da Itália enquanto terra pacífica (contraposta à belicosidade do Oriente, apresentada nos versos que antecedem sem pausa essa digressão),29 Virgílio introduz a partir do verso 167 o tema da pujança militar de seus filhos.30 O conjunto desses fatores, por fim, leva-o a considerar a saudação final à terra [salue, magna parens frugum, Saturnia tellus,/ magna uirum (...) - "salve, grande mãe de searas, terra Satúrnia,/ e grande de homens (...)", v. 173-174] como a derradeira falsidade da digressão.31

Em que pese às objeções possíveis às leituras do crítico (apontando, por exemplo, que não seria explicável a detração completa da Itália numa obra a que, sem dúvida,

incorporam-se vários temas vinculados à defesa das tradições pátrias),32 não se pode deixar de reconhecer em seu esforço interpretativo o mérito de contrapor-se às leituras mais ingênuas do texto. Com isso, referimo-nos à necessidade de que se evite a consideração linear da obra, mera aceitação de sentidos literal e superficialmente oferecidos como equivalentes satisfatórios à "mensagem" do texto: uma leitura mais atenta do todo do poema acaba, de fato, por revelar a presença difundida de ambigüidades contextualmente condicionadas que não se pode ignorar.

Um dos momentos em que o modo de leitura adotado é decisivo para que se determinem os sentidos parece-nos corresponder à seguinte passagem:

non tamen ulla magis praesens fortuna laborum est quam si quis ferro potuit rescindere summum ulceris os: alitur uitium uiuitque tegendo,

dum medicas adhibere manus ad uulnera pastor 455

abnegat et meliora deos sedet omina poscens.33

"(...). Sim; mas banhos, mas ungüentos com terem contra o mal bastante de virtude, não valem o que val a restaurar saúde

o ferro, se houver mão que cercear não tema 665

a cabeça entreaberta à sórdida apostema. Alimenta-se e atura o mal quando encoberto. Um pastor que não sabe, assenta-se, mui certo de que basta implorar a proteção divina,

e descura em seu gado usar da medicina."34 670

Nesses versos do livro III da obra, Virgílio recomenda como solução necessária para combater a doença de pele que ataca as ovelhas (scabies, espécie de sarna) o emprego de uma medida rude: trata-se de usar um instrumento cortante para abrir as chagas dos animais e permitir, segundo suas instruções, a saída do mal. É inútil, pois, esperar pela ajuda divina como solução para o problema sem agir concretamente.

Esse último ponto leva-nos a perguntar o que se pressupõe ao negar nesses termos a validade do pedido de ajuda aos deuses: estaria o poeta apenas indicando que a prece sem ação não asseguraria o sucesso nas circunstâncias específicas dessa passagem ou, de maneira mais radical, sugerindo que eles não auxiliam aqui porque não o fazem jamais? Apesar do estranhamento que a completa concepção da "surdez" divina diante dos pedidos humanos poderia causar, considerando sua presença num poema em que a religião tradicional é por vezes ortodoxamente tematizada em seu aspecto de culto, não se pode deixar de, ao menos, aventar a hipótese de influxo do pensamento materialista nos versos citados. Como se sabe, entre os epicuristas, cujo expoente máximo nas letras latinas foi Lucrécio, negava-se a acessibilidade ao divino através das formas tradicionais de culto: retirados nos intermundia, os deuses tinham existência completamente alheia ao mecanismo do mundo material, entregue a suas próprias leis de forma irrevogável.35

Curiosamente, ecoa-se aqui o verso IV 1068 do De rerum natura de Lucrécio (ulcus

enim uiuescit et inueterascit alendo - "pois a ferida se desenvolve e se instala alimentando")

e o tema da inutilidade do culto ressurge em Geórgicas IV 486-493, como nova alusão ao poema lucreciano e ao episódio em que, diante da barbárie do sacrifício de Ifigênia, o filósofo manifestou seu repúdio à religião tradicional.36 No primeiro caso, Lucrécio tratara do tema da paixão como doença e, no segundo, Virgílio trata da impossibilidade de obter uma resposta divina na ocasião da peste entre os nóricos.

Ocorre, porém, que a menção a Lucrécio nesses contextos potencialmente propícios para o diálogo entre autores não parece oferecer-nos uma solução definitiva para o problema interpretativo que nos propusemos a confrontar há pouco: é certo apenas que o ecoar do verso lucreciano a respeito do mal amoroso no contexto da doença das ovelhas (acrescido do fato de que, no mesmo livro III das Geórgicas, Virgílio o apresente como