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Introdução: as Geórgicas, a poesia didática e seu estatuto genérico na literatura greco-latina

II. O De re rustica de Varrão: aspectos da construção do texto, da linguagem e dos sentidos

1) Introdução: as Geórgicas, a poesia didática e seu estatuto genérico na literatura greco-latina

Dizer que as Geórgicas pertencem ao gênero didático da literatura antiga significa situá-las no interior de uma tradição compositiva marcada por certos traços bem definidos. Como se sabe, ela remonta à literatura grega arcaica, em que encontramos Hesíodo, no século VIII a.C., como seu mais antigo realizador.1

Ao longo dos séculos em que tal forma de composição foi praticada (com especial vitalidade durante os períodos helenístico, com autores como Arato e Nicandro de Cirene, e romano, com autores/ tradutores como Cícero, Manílio, Lucrécio, Ovídio e o próprio Virgílio das Geórgicas),2 características internas como a onipresença da postura de "ensinamento", o tratamento até certo ponto sistemático de temas técnicos ou científico- filosóficos, a "voz" de um magister didático uno e a viva evocação da presença dos ouvintes (discipuli) contribuíram para a constituição de uma família textual sui generis.3

Portanto, será nossa tarefa ao longo das páginas seguintes a definição dos contornos relacionados à natureza peculiar das Geórgicas diante desse pano de fundo comum. Através da abordagem de pontos como a caracterização da figura do magister didático, o discipulus e sua relação com o público romano real, os temas e sua forma de tratamento por Virgílio, esperamos reunir os elementos necessários para a compreensão das características desse poema diante de outros do mesmo gênero.

De início, julgamos necessário justificar a própria proposição da existência de uma categoria de textos a que se possa chamar didática: longe de se constituir numa evidência metodológica, essa tomada de posição implica optar por uma via condizente com anseios interpretativos direcionados por nossas necessidades teóricas.4 Isso significa que, considerando a questão do modo de organização discursivo-formal um fator de grande importância para a determinação dos sentidos em quaisquer produções lingüísticas (literárias ou não), encontramos na teoria dos gêneros um instrumental de análise capaz de definir com clareza os princípios estruturadores dos textos.

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No caso da poesia didática ou das demais produções literárias antigas, é fundamental não confundir a atuação concreta de tais princípios com o sentido da vigência de leis rigidamente seguidas: como o contato com as obras dos vários autores vinculados a uma mesma classe compositiva comprova, é sempre possível um vasto espectro de realizações, de modo que os arcabouços estruturadores gerais (definidores de classes específicas) são fluidos, passíveis de adaptar-se e sujeitar-se aos propósitos de cada poeta. Isso não impede, porém, como dissemos há pouco, que a noção mais abstrata do gênero e de suas "leis" possa prestar-se à análise acurada de obras antigas, já que consideramos a aproximação parcial com outros textos afins do ponto de vista discursivo-formal um meio útil para a compreensão das próprias particularidades de cada um.

No tocante, em específico, à presença do gênero "didático" na literatura greco- latina, adotaremos as posições expressas por Volk: segundo a autora, basta-lhe constatar a existência de evidentes semelhanças constitutivas entre um certo conjunto de obras antigas que depara para que a abstração de tais características se preste a definir o arcabouço genérico comum.5 Assim, procedendo indutivamente, ela parte de sua experiência prática de leitura para a teorização e a análise, sem basear-se desde o início na proposição de um conceito mais refinado de gênero a que devessem corresponder em suas especificidades os textos de todas as famílias compositivas existentes. Em outras palavras, bem mais do que teorizar em geral sobre a noção considerada, interessa-lhe instrumentalizá-la para a análise, limitando-se conceitualmente a pensar nas categorias genéricas como "famílias de textos" constituídas conforme dissemos.

Um fator de grande importância para a sustentação dessa postura crítica diz respeito à consideração da atitude dos poetas antigos para com seus antecessores na tradição didática: Dalzell observou a presença nas Geórgicas de um efeito de sentido convencionalmente indicador da inserção dos autores num dado veio compositivo. Trata-se do que apresenta, ao rememorar a definição virgiliana das Geórgicas como "canto de Ascra", como uma espécie de saudação cordial a Hesíodo e, simultaneamente, de um indício da adoção desse autor, em certo sentido, como um parâmetro fundador para o poeta latino:

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Havia códigos literários que marcavam essa distinção genérica. O mais óbvio deles era recorrer à autoridade de Hesíodo, o "prôtos heurêtês" do gênero. Arato é louvado por Calímaco por seguir o tema e o modo de Hesíodo (Epigr. 29.1). Virgílio descreve as "Geórgicas" como o "canto de Ascra" (2.176), e suas palavras são posteriormente ecoadas por Columela (10.436). Nicandro invoca o testemunho de "Hesíodo de Ascra" perto do início de seu poema sobre serpentes venenosas. Era uma prática comum entre os poetas latinos indicar suas filiações literárias no início das obras com um aceno cordial para seus predecessores. Manílio abriu a "Astronomica" com a tradução da primeira linha da "Teogonia" de Hesíodo. Estas referências sugerem uma sucessão apostólica de poetas conscientes de seus elos genéricos comuns e que se vêem como continuadores de uma tradição que remonta a Hesíodo. Não seria verdadeiro, então, dizer que a literatura clássica não reconhecia a existência da poesia didática como um gênero distinto.6

Vários estudiosos têm ressaltado o relativo silenciamento dos comentadores antigos a respeito das particularidades do gênero de que nos ocupamos aqui.7 No caso do Aristóteles da Poética, por sinal, as rígidas posições do autor sobre o que seria a poesia fazem com que chegue a negar tal estatuto à obra de um Empédocles, já que os conteúdos por ele abordados em versos (relacionados à física) evidentemente não se enquadram na clássica definição da mímese.8

Se, então, exceto de uma maneira "marginal",9 os comentadores antigos não destacaram a existência autônoma da classe compositiva a que nos referimos, mas, movidos por razões essencialmente formais (como o metro e o emprego de figuras como o símile), tenderam em certas ocasiões a considerá-la como algo assimilável à épica, temos motivos para nos questionarmos a respeito da legitimidade da iniciativa "taxonômica" moderna. Seria o caso de incorrermos num anacronismo injustificado, totalmente estranho à compreensão dos textos ditos "didáticos" pelo público coevo à sua produção?

Diante dessa dificuldade, julgamos útil atentar para o alcance das palavras de Dalzell transcritas acima (já que parecem indicar a compreensão da existência de uma

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classe didática "fechada" pelos próprios autores dedicados a compor alguns dos textos que modernamente consideramos como tais) e destacar a especificidade histórica dos procedimentos críticos atuais. Como se sabe, a moderna crítica literária, consolidada como disciplina universitária ao longo do século passado e tributária de pressupostos cientificistas,10 caracteriza-se pela necessidade de afirmar-se institucionalmente através da proposição de bases metodológicas "objetivas" e precisas para a análise dos textos. Dos formalistas russos,11 passando por correntes como a psicanálise e a teoria da recepção, sua breve história tem sido marcada pela busca contínua dos mais acurados princípios interpretativos, como se não houvesse mais o direito de ignorar nenhum dos fenômenos relacionados ao que consideramos "obras literárias" e de desistir de enquadrá-los no interior de teorias "absolutas".

Esse não era, evidentemente, o modo antigo de proceder em relação à arte da composição verbal: conforme se tem observado, a única teorização possível naquele momento coincidiu com a preceituação retórica (e poética), a qual jamais se pretendeu um mero lugar de emissão de juízos valorativos a respeito de textos quaisquer, mas ocupava-se de codificar o dizer com vistas ao favorecimento da persuasão nas mais variadas circunstâncias. Dito diversamente, a finalidade última da retórica antiga não era comentar e julgar os discursos, mas, ao fazê-lo, favorecer a prática eficaz de sua composição, submetida às contingências de cada momento de produção oral ou escrita.12

Dessa maneira, o fato de que um Horácio ou um Aristóteles não se tenham ocupado de descrever as obras segundo nossos parâmetros de análise e sequer tratado a fundo da existência de um gênero como o da poesia didática não justifica de imediato que se interprete essa atitude como sinal inequívoco da ignorância de suas especificidades por todos os leitores antigos. Considerando ainda, no encalço das observações de Dalzell, que os poetas greco-latinos pautavam-se ao compor inclusive pela prática de outros autores do passado13 e que, nesse diálogo, também operavam uma forma particular de leitura, parecem-nos eliminadas as barreiras para a aceitação da existência da poesia didática enquanto categoria genérica no mínimo parcialmente autônoma entre os antigos.

A consideração do tema sob esse viés, acreditamos, possibilitaria compreender os motivos da aparente arbitrariedade classificatória adotada por um Quintiliano14 em relação a todas as produções poéticas em hexâmetros, unidas sob a rubrica da épica: isento do

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espírito cientificista moderno levado a extremos, o autor não aprofunda a "taxonomia" e apenas cede a um procedimento distintivo importante para os antigos.15 Por outro lado, a coexistência de tipos poéticos tão diferentes sob essa categoria (a exemplo da poesia bucólica, da épica em sentido estrito e da própria poesia didática) torna impossível pensar que ele simplesmente não se tenha dado conta das feições particulares de cada um e, portanto, não se diferenciasse em sua época o bucolismo da produção hesiódica, por exemplo.

Uma vez estabelecidas as bases necessárias à diferenciação em algum grau da poesia didática diante das demais formas poéticas greco-latinas, resta-nos observar que os críticos modernos oscilam entre incluir a ela, e somente a ela, na mesma compartimentação classificatória da épica mítica ou histórica16 ou em estudá-la por si, tão somente levando em consideração os parâmetros compositivos próprios de sua peculiaridade:17 no primeiro caso, ao lado da épica convencional, haveria uma outra "didática"; no segundo, é evidente, há circunscrição da teoria a seu exame particular e restrito.

Com exceção de eventuais momentos de indicação de afinidades (sobretudo estilísticas) entre poesia didática e épica, não nos vincularemos aqui à primeira posição: uma vez que nos interessa para os propósitos deste trabalho a análise dos diversos modos de ensinamento favorecidos pelos textos de cada um dos "agrônomos" latinos estudados, preferimos considerar o fator da instrução poeticamente favorecida em sua face mais restrita, isto é, sem levar em conta algo como o papel formador atribuído a um Homero18 ou, em seguida, a um Virgílio.19 Desse modo, ao dizer que nos poemas didáticos "se ensina", não entenderemos simplesmente que, a partir de sua leitura, possam-se extrair modelos ideais de conduta ou eventuais informações relativas à geografia, à história, aos mitos ou às técnicas humanas, mas que o próprio impulso constitutivo dessas obras nasce do gesto de estabelecimento do contato ininterrupto entre "mestre" e "aluno".