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Aspectos compositivos do De re rustica varroniano

II. O De re rustica de Varrão: aspectos da construção do texto, da linguagem e dos sentidos

2) Aspectos compositivos do De re rustica varroniano

Diversamente de seu principal antecessor na literatura agrária romana, pode-se dizer que Varrão, ao compor o De re rustica, insere-se no seio de uma tradição genérica bem documentada: referimo-nos ao fato de que se tenha, nesse caso, adotado a forma do diálogo para organizar e dar corpo aos temas. Como é sabido, o mais remoto exemplo de um autor dedicado à composição segundo esse modelo é Platão, responsável pela escrita de importantes diálogos filosóficos como o Hípias Menor, o Crátilo, o Górgias, o Sofista, o

Político e o Timeu. Não se deve com isso entender, como bem observa Calvo, que ele o

tenha "criado" por si, mas sim, na falta de testemunhos anteriores (em se tratando de obras

integralmente conservadas), que seus escritos são os primeiros "espécimes" do gênero

legados à posteridade pela cultura antiga.35

Ainda no contexto da literatura grega, importa mencionar a produção aristotélica, de que não se conservam obras intactas, mas apenas fragmentos. Tejera, assim, incluindo dois diálogos do autor na categoria de seus escritos "exotéricos",36 oferece-lhes as características essenciais. No tocante ao Eudemo, tratar-se-ia, talvez, de uma espécie de retomada do

Fédon platônico, com semelhanças temáticas e diferenças argumentativas;37 o De filosofia, segundo o mesmo estudioso, contava com três livros, respectivamente preenchidos pela história do "desenvolvimento ascendente" do ser humano, pelo tratamento da filosofia platônica e por suas próprias opiniões sobre a estrutura do universo.38

Em Roma, o mais significativo autor a adotar a forma dialógica para compor suas obras foi, indubitavelmente, Cícero: vários dos escritos teóricos (como o De oratore, o De

re publica, o De legibus o De natura deorum, o De finibus, o Brutus, o De senectute, as Tusculanae disputationes, o Cato Maior...) serviram-se dela, em evidente mostra de sua

crença na eficácia "pedagógica" desse meio expressivo.39 Embora não se pretenda entrar em detalhes a respeito dos temas e das particularidades formais de tais obras, julgamos necessário lembrar que Cícero, mantendo-se fiel à habilidade platônica no plano da elaboração literária dos textos (mesmo quando afastado do mestre pela presença de traços aristotélicos), obteve com sua composição um verdadeiro feito artístico, sem submeter a forma ao papel de mero veículo para transmitir os conteúdos intelectuais.40

A menção a esses antecessores de Varrão convida-nos, antes de adentrarmos propriamente a abordagem do De re rustica, a explicitar o que se tem em geral compreendido pelas características dos diálogos platônicos e aristotélicos: afinal, trata-se dos dois grandes modelos sobre os quais se baseiam as "leis" do gênero na Antigüidade. A princípio, observamos a presença das personagens em interação verbal a respeito de um tema qualquer (técnico ou filosófico) enquanto eixo imutável de estruturação dessa categoria compositiva.41 Em outras palavras, a despeito das diferenças específicas, os diálogos sempre se constroem com base no tratamento temático realizado pela recorrência

direta às palavras de seus participantes.

Somando-se de maneira específica a esse pressuposto básico, outros elementos vêm definir as ramificações genéricas a que nos referimos. Assim, Platão, vinculando-se sempre ao tratamento filosófico em seus escritos, passou de um modo de exposição "narrado"42 (inserindo o diálogo no contexto do relato duma conversação passada) a outro "direto" ou "dramático",43 em que esse artifício é substituído tão somente pela presença imediata da interação verbal entre os participantes. Além disso, sem jamais pôr-se em cena como personagem, o filósofo delega aos demais a função de tomarem parte nos debates com maior ou menor preponderância: é o que se dá através do conhecido modelo em que

Sócrates questiona seus interlocutores a fim de introduzir, pela ironia e pela capacidade de silenciá-los, posições-outras a respeito dos temas.44

Aristóteles, por outro lado, mantém do mestre a presença de interlocutores distintos em interação a fim de que se manifestem suas idéias, mas não hesita em pôr-se "em cena": passando a ser um participante direto, ele "domina" como protagonista (criticando sucessivamente as exposições seguidas dos demais) ou, de maneira "moderada", apenas surge como mais uma personagem.45 Também se devem ressaltar a alternância de discursos extensos, que resultam em sínteses teóricas nos casos de seu "domínio", e a presença de prefácios a dividirem partes distintas das obras como importantes princípios de construção do diálogo aristotélico.46

O modelo estrutural a que se vincula Varrão no De re rustica, deve-se dizer, corresponde sobretudo à forma aristotélica: os participantes de cada um dos três livros da obra (entre os quais sempre se conta o autor) não são direcionados por perguntas em suas exposições contínuas e, por vezes, longas, mas, ocupando-se a seu turno de especialidades teóricas variadas, dão curso aos dizeres até que os tenham esgotado. Convém, contudo, lembrar a esse respeito que, em contraste com os usos argumentativos nos autores helênicos a que nos temos referido, Varrão elimina sistematicamente a controvérsia dos horizontes de sua obra agrária:

Poder-se-ia esperar que uma tal apresentação dos fatos fosse justificada por um debate de idéias, pondo em cena várias concepções da economia rural e contrastando, por exemplo, os partidários da monocultura com os da policultura, os que apóiam as grandes propriedades com os que apóiam as pequenas, os defensores com os adversários do modo escravista de cultivo... Mas, de fato, não há nada disso: exceto a conversa geral que ocupa o começo do livro I e que diz respeito à definição da agricultura, os diálogos varronianos não contêm discussão verdadeira alguma: constituem uma obra dogmática e sistemática, onde todos os interlocutores estão de acordo entre si e onde os papéis são de alguma forma repartidos entre diversos "atores", cada qual desempenhando sua parte como um músico numa orquestra bem regida; nos livros I e III, há mesmo duas longas

"conferências", dois monólogos ditos por homens ocupando a cena sozinhos e apenas interrompidos de tempos em tempos - formalmente - por alguma observação eventual de um ou outro companheiro; o livro II é um pouco diferente: não encontramos nele duas personagens roubando a cena e relegando as outras à sombra, pois todos os interlocutores estão dessa vez em pé de igualdade e tomam a palavra a seu turno, com uma intervenção por capítulo. Mas, enfim, em todos os casos, vemo-nos diante de apresentações e não de debates: há apenas a divisão do tema entre locutores diferentes; isso torna o ensino mais animado e, do ponto de vista pedagógico, tem seus méritos; mas é só um artifício expositivo, e pode-se lamentar que Varrão não tenha francamente cedido ao jogo do confronto ideológico ou, ao menos, técnico.47

Por outro lado, o autor, em concessão menor aos usos platônicos no gênero a que nos referimos,48 adotou o procedimento de apresentar os diálogos sob a forma narrada: no prefácio inicial, ele se propõe relatar a Fundânia, sua esposa, "os diálogos sobre agricultura que tivemos há pouco";49 no segundo e no terceiro prefácios, respectivamente dirigindo-se a Turrânio Níger e a Pínio, o mesmo se dá, já que, enquanto aqueles a quem é dedicado cada livro, constituem os ouvintes privilegiados dos sermones apresentados a seguir. Afastando-se, pois, do modelo platônico do diálogo "dramático" nesse ponto, Varrão favorece um certo olhar à distância para os acontecimentos literariamente mimetizados nas partes alheias aos prefácios: por definição, não seria possível contar algo ocorrido no instante mesmo em que se fala a seu respeito; assim, evitando a síntese eodem tempore do intercâmbio comunicativo entre as personagens e do fragmento do real ilusoriamente criado por sua ocorrência, optou-se aqui pelo artifício didático de apresentar os conhecimentos oferecidos enquanto resultados de uma suposta experiência vital do autor.50

Isso dito, encontramo-nos em condições de afirmar que o De re rustica, composto segundo a forma dialógica (vindo cada livro a constituir um diálogo independente), organiza-se ininterruptamente de acordo com o padrão aristotélico, descontada a aquiescência supracitada a Platão. É importante dizer que a reunião numa única obra de três diálogos distintos constitui uma diferença da prática compositiva de Varrão quanto ao

observável, em geral, na produção dos filósofos gregos mencionados: dos exemplos a que nos referimos, apenas o De philosophia aristotélico se enquadra nesse molde; o mesmo, evidentemente, não se dá no caso da produção de Cícero, já que, em mais de uma ocorrência (caso do De oratore e das Tusculanae), o autor adotou a procedimento de reunir num só texto diálogos diversos.

Em contraste com um traço compositivo do De oratore, porém, Varrão modifica a cada livro não só os assuntos (correspondendo ao primeiro o tratamento da agricultura, ao segundo, o da pecuária de grandes e pequenos animais e, ao terceiro, o da criação diversificada na sede - de abelhas, peixes, aves ornamentais e alimentícias, lebres...), mas ainda a "ambientação", as datas de ocorrência, as personagens e, como observado acima por Gaillard e Martin na contraposição do segundo aos demais, o próprio modo construtivo do texto...

Ora, tem-se nessa preocupação em variar os elementos compositivos um inegável sinal do direcionamento da escrita para fins alheios ao meramente informativo: embora a fuga à monotonia seja por si mesma um artifício didático (já que, julgamos, evita-se assim a perda da atenção do leitor pelo cansaço), é preciso ressaltar elementos como a semelhança de alguns procedimentos construtivos dos diálogos varronianos com o universo criativo do teatro. Além da evidente afinidade da interação verbal direta entre as personagens com o modo constitutivo essencial dos textos dramáticos, o emprego de nomes agrupados por "zonas" (vegetal, pecuária ou da pequena criação) e evocativos das especialidades técnicas dos interlocutores representa um ponto de contato com a comédia.

Basta lembrarmos dos usos plautinos nesse domínio, com a adequação cômica dos nomes às características físicas ou psíquicas dos tipos: na Cistellaria, assim, a velha cortesã e sua filha são chamadas, respectivamente, de Syra ("a Síria", em rememoração de sua origem estrangeira e de sua antiga condição de escrava) e Gymnasium ("ginásio" ou "local para exercícios físicos"); no Miles Gloriosus, o protagonista, exemplo típico do covarde falador, é chamado Pirgopolinices ("que toma muralhas e cidades"); no Pseudolus, por fim, o protagonista (cujo nome coincide com o da peça e significa "o mentiroso") é um escravo a quem cabe, por meio de uma série de ardis, favorecer a conquista de uma mulher por seu amo...

Citando alguns dos exemplos varronianos, observamos que todos os participantes do primeiro diálogo, conforme o tema geral nele desenvolvido (a agricultura) são chamados em rememoração de aspectos dessa atividade: desse modo, Fundânio, o sogro de Varrão, deriva seu nomen da palavra latina fundus, "propriedade rural"; Ágrio e Agrásio, o primeiro um "cavaleiro romano e socrático", o segundo um "coletor de impostos", têm as raízes dos nomes em ager ("campo"); G. Licínio Estolão e Gn. Tremélio Escrofa, por sua vez, mantêm vínculos onomásticos com a designação do broto saído do caule no nível do solo (stolo, em latim) e os suínos (correspondendo scrofa a uma das denominações da porca nesse idioma); por fim, Varrão e Fundílio (o aeditumus ou "guarda do templo" de Tellus, responsável pelo convite dos demais a esse local mas ausente durante todo o diálogo) enquadram-se à sua maneira no mesmo padrão dos amigos por serem chamados de formas evocativas do "homem rude" (uarro, em latim) e, mais uma vez, de fundus. No segundo e no terceiro livros, sempre dedicados, como dissemos, à criação, ocorrem nomes como

Vaccius, Equiculus (das palavras latinas uacca, "vaca" e equus, "cavalo"), Merula, Pauo e Appius (de merula, "melro", pauo, "pavão" e apis, "abelha").

Ainda a respeito dos nomes, é curioso notar que, no caso das passagens mais bem organizadas nesse quesito,51 prestam-se ao papel de elementos ordenadores do discurso técnico: com efeito, à semelhança dos dizeres introdutores de seções no De agri cultura de Catão, a que, no capítulo anterior, chamamos "rótulos", indicam nelas os temas a serem desenvolvidos pelos interlocutores. Dessa maneira, surgindo no texto em meio às falas dos participantes, demonstram ao leitor a harmonização operada na escrita através da correta divisão dos assuntos entre os mais recomendados "especialistas" e, com os demais elementos (de fundo temático), acabam por delimitar partes exclusivas no corpo da obra.

Quanto ao fator de variação construtiva identificado com a mudança da "ambientação", também nos parece que as analogias com o universo da criação teatral são possíveis. Devemos esclarecer que, por esse termo, não nos referimos apenas à alternância dos espaços físicos em que se passa cada diálogo, mas a algo a que se agregam outros fatores: trata-se de uma espécie de "atmosfera" evocada pela própria seleção temática, pelas associações ideológicas passíveis de ocorrerem em cada caso (vinculando-se a agricultura sobretudo ao modo de vida "honesto" dos maiores, a pecuária em larga escala à "nova" riqueza daqueles dedicados a ela e as criações de pequenos animais ao requinte urbano),

pelos próprios nomes das personagens, pelos acontecimentos sociais em que se inserem os diálogos como quadros numa moldura...

Sabemos que, na comédia latina,52 havia algumas situações repetidamente presentes nas peças: trata-se, como é conhecido para o leitor do gênero, das pequenas crises domésticas, das intrigas passadas no mundo da prostituição, dos encontros resultantes do desfecho de mistérios...53 Correspondia a alguns desses desenvolvimentos uma série de traços que, em geral, não esperaríamos encontrar reunidos em outros; na Aulularia plautina, identificada com o universo das crises familiares (com a gravidez indesejada de uma adolescente como resultado da embriaguez de seu vizinho durante as festas de Ceres), então, tem-se elementos vinculados à domesticidade, a exemplo da casa paterna da moça como cenário da trama, dos escravos familiares, do importante papel desempenhado pelo deus Lar para a revelação do segredo dos avós, dos eventos muitas vezes banais surgidos com o desenrolar da peça...

O mesmo não se dá no Poenulus, em que a intriga, vinculada à desgraça de duas moças bem-nascidas nas mãos de um leno (agenciador de cortesãs) e, por fim, libertas após o reconhecimento de sua identidade pelo próprio pai, condiciona que deparemos um mundo com características bem distintas daquele: referimo-nos ao plano experiencial do comércio de escravos, da prostituição e do crime na Antigüidade, com sua carga emotiva característica.

Assim, constatamos um efeito semelhante no De re rustica varroniano pelos motivos referidos acima, de um modo simultaneamente compatível com a harmonia (no contexto interno de cada livro) e o contraste (considerando o todo da obra) de "tons". Tomando como exemplo a questão do espaço físico em que se passam os diálogos, nota-se o desenrolar do primeiro no templo de Tellus (a deusa Terra dos latinos), o do segundo, devido a uma lacuna no texto, num local desconhecido, e o do terceiro numa uilla publica situada em Roma, no Campo de Marte. Ocorre, com a escolha do primeiro e do terceiro local (o mesmo se daria com o segundo?), que o autor procurou harmonizar o assunto com os espaços físicos em que se reúnem os interlocutores de cada diálogo: no caso do livro I, é evidente que o templo dessa divindade (e a ocasião do banquete sagrado no tempo das

Feriae sementiuae, data tradicional do calendário agrícola romano) corresponde com

artificialismo motivado pela associação entre uma uilla urbana e o assunto da criação de pequenos animais nas uillae rusticae, não se pode deixar de dizer que a destinação dos itens de consumo assim obtidos à venda nas cidades (trata-se de produtos de luxo) contribui em parte para aclimatar o tema ao contexto.

Parece-nos que se poderiam ainda incluir entre os elementos de variação do De re

rustica outros fatores, também eles relacionáveis ao teatro:

Dito isso, os três diálogos varronianos constituem um autêntico feito literário: são verdadeiras comédias, com entradas e saídas imprevistas, notícias trazidas de fora, às vezes mesmo lances teatrais; os interlocutores têm nomes engraçados, em relação com a agricultura ou a criação; rivalizam nas brincadeiras, ridicularizam-se mutuamente: o mais completo bom humor não deixa de reinar, e a descontração desses diálogos faz um contraste espantoso com a aridez das demais obras latinas de agronomia.54

A sobreposição do assunto técnico (e, decerto, árido para a sensibilidade do público letrado) e dos fatores de atenuação elencados pelos críticos, pois, resulta diminuidora do efeito de "gravidade" do texto: tudo se dá, nesse sentido, de uma maneira favorável à ruptura momentânea das "lições" das personagens, permitindo-se que os olhos do leitor descansem do que os viera absorvendo até então. É importante dizer que esse tipo de variação,55 diversamente do que se dava com as demais formas de sua ocorrência a que nos referimos acima, não se faz de modo exclusivo, ou seja, apenas visível pelo contraste entre partes ou livros distintos: trata-se de algo que permeia saborosamente cada um dos três diálogos, vindo conferir seu toque de leveza ao que, em outras circunstâncias, poderia passar por desprovido de atrativos.

Como comentário adicional a respeito da face "dramática" dos sermones varronianos, julgamos de interesse fazer uma crítica à sua estruturação no tocante ao aspecto da verossimilhança: seria de fato concebível que amigos, encontrando-se em ocasiões informais, viessem a comportar-se como quem desse (ou recebesse) lições sobre técnicas agrárias? Não nos referimos aqui ao fato, mais facilmente aceitável, de que a

conversa eventualmente recaísse sobre esses temas, mas sim à presença de um desenvolvimento sistemático (e, até certo ponto, exaustivo) dessas questões.56

Muito além da extensão e do relativo detalhamento das falas, julgamos, contribui para o artificialismo dos diálogos o sistema de divisões meticulosamente posto em prática por Varrão. Em adoção desse sistema expositivo, que tem sido vinculado a certos usos filosóficos,57 o autor estabeleceu para cada diálogo uma espécie de grade de desenvolvimento temático58 a que se ajustam, curiosamente, todos os locutores, como se estivessem de pleno acordo a respeito dos itens a serem tratados no âmbito de cada grande domínio da economia rural (e, assim, oferecessem suas contribuições pessoais a fim de bem preenchê-la em conjunto). A grade chega à perfeição no livro II, em que não falta mesmo a total simetria numérica na distribuição dos tópicos:

O livro II, por exemplo, repartiu a "res pecuaria" em três grandes partes, gado miúdo, gado grande e "gado" improdutivo (mulos, cães e pastores), mas cada uma dessas partes é subdividida em outras nove, quatro de compra, quatro de criação e uma que, concernente ao número das cabeças de gado, é comum às precedentes: no total, oitenta e uma subdivisões. A importância de tal classificação é tal aos olhos de Varrão que ele lhe dedica seu primeiro capítulo (2, 1, 11-28): Tremélio Escrofa, invocado como especialista supremo, considera que seu papel se coaduna antes de tudo com expô-la. Depois, quando a consideração foi assim delimitada (2,2,1: "limitata est pecuaria quaestio"), deixa aos demais a incumbência menor de preencherem esses quadros traçados "a priori".59

Outro aspecto relacionado à espontaneidade construtiva dos diálogos diz respeito à questão da linguagem empregada por Varrão para exprimir os conteúdos técnicos nas situações de comunicação informal a que nos referimos: afinal, se nos vemos diante do registro de "conversas", seria esperado que algo da língua quotidiana viesse impor suas marcas sobre a dicção das personagens nelas envolvidas...

De um modo favorável à constatação desse efeito, têm-se apontado traços lingüísticos afins aos usos do sermo cotidianus (o latim falado diariamente pelos romanos,

desprovido de maiores restrições normativas) na tessitura compositiva do De re rustica: E. de Saint-Denis, num minucioso estudo sobre o tema, discriminou os recursos estilísticos e sintáticos empregados pelo autor e que lhe parecem corresponder a essa variedade do idioma.60

De início, observando o fato de que, como afirmamos acima, Varrão constrói os

sermones de modo "descontraído" (com interrupção das "lições" por acontecimentos

variados, presença do humor e dos jogos de palavras, rememoração de acontecimentos atinentes à experiência "vital" dos participantes...), o crítico menciona a ausência da estruturação oratória cerrada mesmo nos momentos de maior cumprimento da função