195
Além do mercado, a mídia e a religião, cada uma a sua maneira, também contribui
para reproduzir estes conceitos sobre o lugar da mulher. A mídia constantemente destaca a
vitória da mulher moderna que consegue conciliar os afazeres do lar com as responsabilidades
de ser uma profissional de sucesso. Este constante apelo às conquistas das mulheres nos induz
a aceitarmos os ganhos como absolutos, parecendo que não há mais nada a discutir.
O discurso midiático decreta o fim do feminismo e camufla as diferenças que se
reforçam no cotidiano, principalmente na vida privada.
Dessa forma, se o discurso da mídia em seu dialogismo com o rumor social
decreta o fim do feminismo, o campo conotativo do que é dito e do dizível
indica a recuperação e/ou atualização de representações binárias, excludentes
e hierarquizadas sob novas roupagens. Mulheres e homens continuam a
ocupar lugares tradicionalmente traçados segundo sua ‘natureza’ feminina
ou masculina, esta mesma ‘natureza’ desconstruída pelo feminismo
contemporâneo. Longo é o caminho trilhado pelos feminismos plurais em
suas estratégias e argumentações desde Simone de Beauvoir, quando a
pretensa essência da mulher é desconstruída em uma simples frase que
vincula o ‘ser mulher’ ao ‘ser social. (SWAIN, 2001, p. 69)
Deste modo, as discussões sobre relações de gênero ficam em segundo plano também
na Rede de Economia Solidária, pois, ao que parece, a mulher que ganha algum dinheiro já
conquistou grande parte do almejava.
As instituições religiosas também colaboram para o posicionamento da mulher na
sociedade. Sua função enquanto mãe está acima de qualquer outra participação em âmbito
social. Abdicar de uma participação pública e política é absolutamente necessário para a
manutenção de sua categoria enquanto mãe.
Nesta construção histórica sobre o papel das mulheres, as definições biológicas do “ser
mulher” foram aclamadas pela igreja, cujos conceitos e determinações foram e são aceitos
sem questionamentos pela maioria de seus membros.
Todavia, devemos mencionar a importância de determinados setores da igreja católica
que, na história política do Brasil contemporâneo, destacaram-se como forças de resistência
ao regime militar. Lideranças religiosas foram reconhecidas pela luta por direitos humanos e
pela restauração de direitos civis. A Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de
Base ficaram caracterizadas como os setores “de esquerda” da igreja. No período ditatorial, a
importância desses grupos deve-se em razão de compor naquele período histórico a única
instituição que podia “dar voz pública” a alguns grupos no regime militar. (ROSADO-NUNES,
2008)
196
A participação das mulheres neste processo de resistência no interior da igreja foi
significativo, ainda que na elaboração de propostas, no discurso teológico prevalecessem os
homens. Mas na formação das comunidades eclesiais, na construção dos ideais de justiça
social oriundo destas, a participação das mulheres foi fundamental. (ROSADO-NUNES, 2008)
Esta formação contribuiu para o estímulo às reflexões sobre direitos, que levaram as
mulheres a discutirem outras questões específicas sobre sua condição, tanto no âmbito público
quanto privado. Conflitos surgiram quando as discussões alcaçaram o âmbito privado.
Segundo Rosado-Nunes,
[...] foi o cruzamento de matrizes distintas, e até opostas, de pensamento –
religiosas e feministas –, possibilitado pela mesma ação da Igreja, que
propiciou a mulheres das camadas pobres a assunção de uma posição que
poderia ser denominada ‘feminista’, ainda que não assim compreendida por
todas, no sentido da luta pelo reconhecimento de direitos no âmbito da
sexualidade, da reprodução e da domesticidade. (ROSADO-NUNES, 2008,
p. 72)
A Rede de Economia Solidária de Dourados-MS sofre grande influência de
instituições religiosas. Por parte dos/as gestores/as, verificamos a presença majoritária da
igreja católica. No entanto, a maioria das empreendedoras é protestante. Desta forma, ainda
que ocorram discussões sobre relações de gênero no âmbito da Rede, estas acabam se
direcionando para um fortalecimento da “essência feminina”, ligada ao casamento, família,
maternidade, fruto de concepções judaico cristãs.
Rosado-Nunes afirma que
A civilização do controle e do medo instaurada pelo cristianismo, associada
à repressão do prazer e à suspeita sobre o sexo, é inseparável da
desvalorização simbólica e social das mulheres. Mesmo se nos lembrarmos
de que no matrimônio cristão, instituído no século XII pela Igreja, são os
noivos que realizam o sacramento, havendo portanto um reconhecimento da
capacidade das mulheres tanto quanto dos homens de expressarem sua
vontade, a atribuição às mulheres de uma natureza própria cuja “essência” é
a maternidade é um continuum no pensamento eclesial. As diferenças
biológicas, constantemente invocadas, validam a atribuição das mulheres à
esfera doméstica, reafirmando a legitimidade de sua exclusão da esfera
pública e reiterando sua inferioridade social e política. (ROSADO-NUNES,
2008, p.72)
A ordem natural dada por Deus através da biologia determina para as mulheres
enfaticamente sua função como esposas e mães. O poder eclesiástico, hierárquico e
masculino, fortalece as desigualdades e diferenças entre os sexos, em que a vontade individual
não tem valor, pois o poder divino já destinou o papel de cada um na sociedade.
197
O ideário cristão, que atribui às mulheres características de uma suposta natureza
feminina, como delicadeza, fragilidade, sensibilidade, capacidade de doar-se e esquecer-se de
si mesma em prol da família, contrapõe-se muitas vezes aos princípios de igualdade propostos
pela Economia Solidária. No entanto, nos empreendimentos solidários, os ideais cristãos e
portanto “divinos” sobrepõem-se a qualquer proposta que vise transformar a realidade destas
mulheres.
A Economia Solidária pode ser uma oportunidade diferenciada, principalmente por
trabalhar em rede, ou seja, através de uma união de esforços. Assim, as mulheres participantes
conseguem vislumbrar uma estratégia de sobrevivência, pois tanto o mercado formal de
trabalho quanto as exigências sociais do que se espera das mulheres, dificultam sua ascensão.
Em entrevista realizada em 2007 com a presidente na época da ONG Mulheres em
Movimento, Lenita Gripa, aponta a participação feminina na Rede de Economia Solidária em
Dourados-MS. Em sua entrevista, ela conta como surgiu o Banco Pirê e a moeda social, que
são controlados e mantidos pela ONG. Durante a narrativa, a presidente trata das mulheres
provedoras de família.
A maioria são mulheres. Noventa por cento são mulheres, provedoras de
família, a gente fala, porque os maridos desempregados abandonaram a
família e as mães com os filhos têm que arrumar a auto-sustentação. Então
essa geração de renda, através da Economia Solidária, é o sustento da
família.
21O termo “mulheres provedoras de família” merece uma reflexão. Retomamos aqui a
referência oculta à dominação masculina e de que maneira é possível perceber isto? No fato
de quê o sustento da família é de responsabilidade do homem, mas a responsabilidade pela
família em si, pelos/as filhos/as, cabe a mulher. Desta forma, é comum encontrarmos famílias
em que somente a mãe cuida das crianças e os maridos e/ou pais sentem-se muito livres para
saírem de casa ou abandonarem a família em caso de desemprego, de falta de renda, gerando
conflitos diversos no lar. Nesse contexto, é “natural” que a mãe fique com os/as filhos/as.
Assim, quando a presidente da ONG faz esta referência à “mulheres provedoras de
família”, temos um dado concreto: a desvalorização do trabalho da mulher. Elas contribuem
ou são responsáveis sozinhas pelo sustento da casa. Afirmar e reconhecer este fato causa
estranheza, pois não está no seu “destino” ser a provedora do lar, mesmo que a
responsabilidade pela família ainda seja sua.
21 Entrevista concedida em 04/05/2007.
198
Consideramos que há um longo caminho a trilhar na transformação social das
mulheres participantes da Rede de Economia Solidária de Dourados-MS. A camuflada, a
oculta dominação masculina, presente nas ações dos/as gestores/as, nas ações das entidades
parceiras e na família das empreendedoras, dificulta a absorção e entendimento do que seja
uma outra economia.
A Economia Solidária, vivenciada de acordo com princípios conservadores, ao não
observar que as transformações devem ocorrer nas raízes dos conflitos, desde a educação
básica até o modo de viver, não há que se falar em “um outro mundo possível”.
Se mantivermos os anseios de atendimento do imediato, a ânsia do mercado, não será
possível estruturar um processo de conscientização sobre como ser cidadão/ã. Discutir as
problemáticas teoricamente não exclui as práticas reais do cotidiano. Estas, permeadas por
conceitos da família patriarcal e de representações do que seja feminino e masculino, não irão
consolidar a Economia Solidária como uma real alternativa, mas apenas caracterizá-la como
mais um projeto falido, mais um braço de caridade do capitalismo.
Em Dourados-MS, aliado a todas essas dificuldades, atualmente temos um poder
público omisso e equivocado quanto à grandeza de estimular um projeto como a Economia
Solidária. Se esta for apoiada por políticas públicas, há possibilidade de construir um caminho
realmente diferente do que o capitalismo propõe, e a solidariedade será vivida com
consciência da história frente ao que construímos, não como algo caritativo.
199
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, analisamos a participação feminina na Rede de Economia Solidária
em Dourados-MS, no período compreendido entre 2000 e 2008, tendo em vista uma
perspectiva de gênero. Abordamos também o conceito de Economia Solidária, sua história no
Brasil, sua relação com o capitalismo e a globalização, quando se coloca como alternativa
para a geração de trabalho e renda. Para as mulheres em especial, as experiências solidárias
têm se mostrado como um caminho possível para o empoderamento, mas, por enquanto,
percebemos que no habitus dos empreendimentos solidários há uma oculta dominação
masculina que precisa ser discutida e repensada por empreendedores/as e gestores/as.
Neste sentido, no âmbito dos empreendimentos solidários e nas ações dos/as
gestores/as há uma reprodução das relações sociais que perpetuam o patriarcado e dificultam a
emancipação de mulheres e homens. Os princípios da Economia Solidária não são totalmente
compreendidos, e o sentido de igualdade limita-se ao viés econômico. Percebemos que a
preocupação de gestores/as desde o surgimento da Rede no município relaciona-se a um
atendimento imediato às necessidades de sobrevivência de grupos em situação de exclusão.
Assim, outras discussões que demandam tempo e transformações lentas ficaram em segundo
plano.
Por fim, a partir dessas discussões teóricas, verificamos as especificidades da Rede de
Economia Solidária de Dourados-MS que, apesar das dificuldades, permitem sua
continuidade como ferramenta de combate à exclusão social na cidade e tem conquistado
respeito por diversos setores da sociedade. A seguir, apontamos tópicos que demonstram os
principais temas discutidos e as conclusões resultantes das reflexões sobre eles, ou seja,
optamos por registrar e destacar aspectos relevantes em forma de itens para melhor
visualização e síntese:
1) A escrita da história desprezou por muito tempo a história das mulheres.
Pesquisadores/as preocupados/as com os grandes feitos da humanidade não tinham interesse
por temáticas que envolvessem o cotidiano, sendo apenas os grandes acontecimentos
protagonizados por homens eram interessantes para análise.
A ausência dos feitos femininos marcou profundamente os registros históricos, tanto
que reivindicações, conquistas, resistências, sofrimentos e lutas de mulheres foram
desprezados pelo fato de serem produzidos e vividos por elas. Mediante uma transformação
No documento
TECENDO A IGUALDADE: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E TRABALHO NA REDE DE ECONOMIA SOLIDÁRIA EM DOURADOS-MS (2000-2008)
(páginas 195-200)