2.4.1 A Usina Catende
90
Um exemplo de sucesso de autogestão tendo como base a Economia Solidária é a
experiência da Usina Catende, na Zona da Mata de Pernambuco. A Usina, instalada em vinte
e seis mil hectares de terra, incluindo as instalações industriais, empregava trabalhadoras e
trabalhadores de seis municípios vizinhos: Catende, Jaqueira, Palmares, Água Preta, Xexéu e
Maraial.
11
A Usina Catende existe desde 1892, e foi construída no antigo engenho Milagre da
Conceição, fundado em 1829. Desenvolveu-se com o cultivo da cana-de-açúcar na Zona da
Mata em Pernambuco, que remonta ao século XVI, como marca da “[...] sociedade colonial,
com suas relações de trabalho tendo por base a figura do senhor de engenho que, detentor do
poder, subordinava escravos, empregados e moradores da região.”
12
No final do século XX, a concorrência imposta por outras colônias produtoras levou
ao aperfeiçoamento técnico dos antigos engenhos, transformados em usinas. A Usina Catende
surge então neste contexto. A partir deste momento, foi expressiva a expansão usineira no
estado, atingindo, entre 1917 e 1918, cerca de 46 usinas de açúcar, chegando a 54 em décadas
posteriores.
13
Após a crise mundial de 1929, o governo criou o Instituto do Açúcar e do Álcool -
IAA – uma autarquia federal, responsável por formular políticas públicas, pelos subsídios,
pela comercialização interna e pelas exportações. O IAA atuou por 60 anos na
regulamentação do setor sucroalcooleiro, sendo extinto em 1990.
14
Na década de 1970, o governo brasileiro lançou o Programa Nacional do Álcool –
Pró-Álcool, visando a redução do consumo dos derivados do petróleo e a busca por novas fontes
energéticas. Até este momento, os usineiros da Zona da Mata eram os maiores produtores
nacionais. Após o Pro-Álcool, a região Nordeste passou a perder espaço para São Paulo, que
possuía melhores solos, áreas mecanizáveis e fortes investimentos em pesquisa.
15
Desta forma, a perda de competitividade é inevitável, mas é apenas a consequência da
realidade da região, onde a “[...] concentração fundiária, os índices de analfabetismo
alarmantes e um dos mais baixos IDHs do Brasil, compõem um cenário estreitamente
11 Disponível em http://www.catendeharmonia.com.br. Acesso em 26/05/07.
12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 Ibidem.
91
relacionado a uma herança social do período colonial.”
16 O entendimento desta estrutura
social ajuda a compreender a região e os seus desdobramentos econômicos e sociais futuros.
As crises no setor sucroalcooleiro, a partir da década de 1990, foram acompanhadas
pelo aumento das reivindicações dos movimentos sociais no campo que ocorriam no Brasil.
17
Em 1993, a Usina Catende demitiu 2.300 trabalhadoras/es da área rural, gerando uma
grave crise na região. Com isto, as trabalhadoras e trabalhadores se uniram na luta pelos seus
direitos trabalhistas, contra a ameaça de destruição de suas casas e pela permanência na terra.
Após várias tentativas frustradas de negociação com a empresa para o pagamento das
indenizações, ocorreram greves e manifestações dos/as demais trabalhadores/as
empregados/as, exigindo o cumprimento dos direitos trabalhistas de seus/suas colegas
demitidos/as. Para desarticular o movimento de protesto dos/as trabalhadores/as e não ceder à
pressão destes/as, os usineiros encontraram uma resposta ofensiva, o que gerou medo e
insegurança naqueles/as que permaneciam empregados/as. Anunciaram que a Usina iria falir.
No final de 1994, a Usina atrasou o pagamento dos salários e não pagou o 13º. Isso
mobilizou novamente os/as demitidos/as de 1993 e deu força a 1.500 trabalhadores/as que
ainda detinham o emprego, para ingressarem na luta para assumirem a empresa. Já em 1995,
surge o projeto Catente-Harmonia, como consequência dos enfrentamentos judiciais entre
empresários/as e sindicatos de trabalhadores/as rurais. (NASCIMENTO, 2005, p. 116 apud SÁ,
2005, 24)
Em uma experiência inédita no Brasil, a organização dos/as trabalhadores/as
conseguiu a saída dos usineiros donos da empresa, impedindo seu fechamento definitivo e a
dilapidação do seu patrimônio, com a manutenção de 2.800 empregos diretos.
18 Além disso, a
empresa foi recuperada nos moldes da diversificação industrial e agrícola das culturas, com a
construção da Companhia Agrícola Harmonia em 1998, uma empresa em processo de
autogestão, que deu início a uma ruptura com o regime secular da monocultura e do
latifúndio. (SÁ, 2005, p. 24)
No sítio eletrônico da Usina Catende Harmonia, relata-se que ao longo de oito anos de
existência desta nova estrutura da Usina, os/as trabalhadores/as foram introduzindo novas
práticas administrativas, baseadas na autogestão, visando não só o lucro, mas a consolidação
16 Disponível em http://www.catendeharmonia.com.br. Acesso em 26/05/07.
17
Ibidem.
92
de uma empresa economicamente autosustentável.
19
Os/As autogestores/es vêm desenvolvendo também parcerias com várias organizações
em diversas áreas, como na capacitação dos/as trabalhadores/as do campo e da indústria em
seminários educativos, na implementação de ações com a finalidade de diversificar a
produção e gerar renda aos/as trabalhadores/as e suas famílias. Estas ações têm como objetivo
[...] a alteração no quadro social e ambiental herdado da monocultura
canavieira, atuando na construção de práticas sociais mais democráticas,
onde a autogestão e a Economia Solidária constituem as bases para se
alcançar o pleno desenvolvimento dos direitos humanos.
20
O relato da história da Usina Catende mostra positividade em ações coletivas. O
sucesso da Usina Catende, que tem como um de seus eixos estruturais a Economia Solidária,
aponta para a imensa dimensão que este modelo econômico pode atingir. Isto pode ser
comprovado com os dados citados acima, em que, por exemplo, tem-se um número
expressivo de cerda de 12.000 moradores/as vinculados/as direta ou indiretamente à Usina.
Apesar das dificuldades encontradas, nota-se que esta foi a melhor alternativa
encontrada por os/as trabalhadores/as ao buscarem construção de uma empresa realmente
produtiva, na qual não há separação entre patroas/patrões e empregados/as, e todas as pessoas
que nela trabalham são donos/as por igual. O crescimento da empresa é um processo
contínuo, no qual trabalhadores/as atuam efetivamente como cidadãos/ãs sujeitos de sua
história.
2.4.2 A Cresol – Sistema de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária
Segundo Bertucci, as primeiras experiências de Economia Solidária no Brasil
aconteceram com o apoio de políticas públicas de um governo popular do Rio Grande do Sul,
ligadas aos movimentos rurais. “Lá se desenvolveu o Cresol, maior sistema de crédito voltado
para o apoio de cooperativas solidárias do Brasil e a Teia Esperança,
21 em Santa Maria.”
19Disponível em http://www.catendeharmonia.com.br. Acesso em 26/05/07.
20
Ibidem.
21 A Teia Esperança é a rede dos empreendimentos solidários associados ao Projeto Esperança/Cooesperança.
Foi criada no dia 14 de janeiro de 2003, com o objetivo principal de articular os Empreendimentos Solidários,
associados ao Projeto para um maior escoamento da produção em Santa - RS. É uma forma eficaz e muito
promissora de fortalecer os grupos, consolidar a Formação, a articulação e construir Políticas Públicas
articulados em Rede de Economia Solidária, fortalecendo o Comércio Justo, Ético e Solidário. Disponível em
http//www. diocesesantamaria.org.br. Acesso em 02/06/07).
93
(BERTUCCI, 2005, p. 57 apud SÁ, 2005, p.23)
O Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária é
resultado da luta de famílias agricultoras das regiões Sudoeste e Centro-Oeste do Paraná, por
acesso ao crédito rural. É um sistema integrado de cooperativas de crédito, amparadas por lei
federal e devidamente autorizadas pelo Banco Centro para movimentação financeira e
conveniadas ao Banco do Brasil. Estas cooperativas de crédito são administradas por
agricultores/as familiares e se articulam com organizações populares. (BITTENCOURT, 2000)
No final da década de 1980, as famílias agricultoras tinham dificuldades para financiar
experiências alternativas da agricultura, pois o sistema de crédito rural, baseado na rede de
bancos comerciais, não atende às necessidades das pequenas famílias agricultoras.
Os bancos comerciais não têm vocação para trabalhar com agricultores que
movimentam pouco dinheiro e tomam empréstimos de pequenos valores,
apresentando custos de operação elevados para os seus padrões. Mesmo o
Banco do Brasil, que desempenhou um importante papel no crédito rural nos
anos 1970 e 1980, tem diminuído significativamente sua atuação como
banco de desenvolvimento, em especial quanto às operações consideradas
menos vantajosas do ponto de vista puramente comercial. (BITTENCOURT,
2000, p. 193)
Essas necessidades de recursos financeiros levaram os/as assentados/as da reforma
agrária destas regiões a estruturarem um fundo de financiamento para a agricultura familiar –
o Fundo de Crédito Rotativo - FCR. Este é fruto do convênio entre a Misereor (Alemanha) e a
Assesoar (ONG sediada em Francisco Beltrão, criada em 1966). (BITTENCOURT, 2000).
No final de 1994 e início de 1995, realizaram-se dois importantes seminários sobre
fundos rotativos e cooperativismo de crédito, que contribuíram para consolidar o projeto de
um sistema de cooperativas de crédito independentes e autônomas, gestionadas pelas próprias
famílias agricultoras, com crescimento horizontal e inclusão social. (BITTENCOURT, 2000)
Em 1995, criaram-se as primeiras cooperativas do Sistema Cresol e uma base de
serviços encarregada de “[...] dar suporte a essas cooperativas nas áreas de formação,
normatização, contabilidade, informática, organizando ainda a interlocução com outras
organizações, bancos, governos e entidades de apoio.” (BITTENCOURT, 2000, p. 193)
De acordo com o sítio eletrônico da Cresol, em 1998, são constituídas as primeiras
cooperativas do Sistema Cresol nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No ano
2000, por orientação do Banco Central, a Cresol Baser foi transformada em cooperativa
central, com sede em Francisco Beltrão/PR. Hoje, seguindo o princípio da descentralização e
crescimento horizontal, a Cresol Central tem filiadas as cooperativas do Rio Grande do Sul e
94
de Santa Catarina.
22
O objetivo do Sistema Cresol é a promoção do desenvolvimento local com base na
agricultura familiar o que, de acordo com Bittencourt, requer seu próprio fortalecimento como
agente deste desenvolvimento. (BITTERNCOURT, 2000)
Suas ações articuladas com outras entidades como associações, cooperativas, pequenas
agroindústrias, casas familiares rurais, escolas comunitárias, sindicatos, organizações
profissionais etc facilitam a aproximação com o poder público, para exigir o atendimento
necessário às suas demandas, numa interação democrática. Por meio destas estruturas, os/as
agricultores/as familiares têm melhores condições de cobrar do poder público maior apoio
para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar no Brasil. (BITTENCOURT, 2000)
2.4.3 A ANTEAG - Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão e
Participação Acionária
Outro exemplo de autogestão é a trajetória da Associação Nacional dos Trabalhadores
e Empresas de Autogestão e Participação Acionária – ANTEAG. Esta foi criada a partir da
falência de uma empresa produtora de calçados em Franca, SP, em 1991, quando “[...]
trabalhadores e o sindicato da categoria reabriram a empresa, reiniciaram a produção e
recuperaram 450 postos de trabalho.” (SÁ, 2005, p.24)
No entanto, Nakano enfatiza que esta ação pró-ativa dos/as trabalhadores/as não deve
ser compreendida apenas como tentativa desesperada de manter os postos de trabalho. Ela
deve ser entendida como uma busca autônoma por parte dos/as trabalhadores/as e sindicado
de novas formas de agir e de enfrentar questões do mundo do trabalho, ultrapassando os
limites da reivindicação de melhores salários e das relações patrão e empregado. (NAKANO,
2000)
Somente em 1994 a ANTEAG foi constituída oficialmente durante no seu 1º Encontro
Nacional, por trabalhadores/as de empresas autogestionárias. Surge como uma associação sem
fins lucrativos que congrega tanto cooperativas de trabalhadores/as em empresas de
autogestão quanto associações. (NAKANO, 2000) De acordo com o sítio eletrônico oficial da
entidade, sua missão é:
Promover a construção, divulgação e desenvolvimento de modelos
autogestionários que contribuam para criar/recriar trabalho e renda
desenvolvendo a autonomia e formação dos trabalhadores, estimulando
95
ações solidárias e fraternas e representando as empresas/empreendimentos
autogestionários.
23
Após dezesseis anos da criação formal desta entidade, sua importância não se limita
apenas ao combate ao desemprego, mas sim pelas “[...] ações que desenvolve em torno da
autogestão, que marca profundamente sua identidade.” (NAKANO, 2000, p. 65)
Sobre isso, Sá salienta que
A partir daí, a ANTEAG se desenvolveu e se estabeleceu como referência
nacional no assessoramento de empreendimentos visando a viabilidade do
negócio a partir das perspectivas dos próprios trabalhadores, sendo que nos
últimos dez anos, relacionou-se com 672 empresas falidas e em situação
pré-falimentar. Tal experiência se dissemina hoje em diversas regiões do país
atingindo mais de 32 mil postos de trabalho em diferentes setores,
recuperando e mantendo o trabalho e a renda através da vontade coletiva.
(SÁ, 2005, p.24)
Neste sentido, a ANTEAG se consolida como orientadora de ações para sindicatos e
trabalhadores/as que vislumbram o caminho da autogestão e estão dispostos a assumir os
desafios inerentes a esta decisão.
Santos colabora com o relato da história da ANTEAG e afirma que esta
[...]surge não só para ajudar a luta dos trabalhadores pela preservação dos
seus postos de trabalho e ao mesmo tempo pelo fim de sua subordinação ao
capital, mas também para assessorar as novas empresas solidárias.
(SANTOS, 2005, p.89)
Apesar da iniciativa positiva de recuperar a empresa para gerar o trabalho, os/as
trabalhadores/as ao assumirem a gestão depararam-se com diversos conflitos em razão da
mudança na forma organizacional anterior, herdada das antigas empresas, para um modelo
gestionário democrático, capaz de cuidar as questões relativas ao mercado, à comercialização
dos produtos, o acesso ao crédito, controle orçamentário, legislação, tecnologia e etc.
(NAKANO, 2000)
Enfim, a ANTEAG se consolida para assumir esses papéis. Dentre suas funções está a
organização, apoio e orientação para recuperação de empresas em situação falimentar e
grupos que pretendem constituir uma empresa ou um empreendimento autogestionário.
Auxilia também com assessoria jurídica, financeira e tributária. Viabiliza o intercâmbio entre
as empresas/empreendimentos e os trabalhadores/as de autogestão. Apóia a formação de redes
de cooperação, comercialização e troca de experiências. Realiza também parcerias com
entidades públicas e privadas, nacionais e internacionais para ações em prol do
96
desenvolvimento da autogestão e Economia Solidária e benefício das associadas. Realiza
pesquisas sobre autogestão, estudos de viabilidade e intermediação para crédito. Difunde o
modelo autogestionário de produção e relacionamento através de cursos de capacitação,
palestras, produção e publicação de materiais sobre o tema. Enfim, a ANTEAG participa
ativamente do movimento da Economia Solidária, tendo sido uma das entidades fundadoras
do Fórum Brasileiro de Economia Solidária e integrante do Conselho Nacional de Economia
Solidária.
24
2.5 Do Fórum Social Mundial ao Fórum Brasileiro de Economia Solidária