A Economia Solidária em Dourados-MS pode ser apontada como referência para
concretização de empoderamento, se levarmos em consideração os números reveladores da
participação majoritária de mulheres nos empreendimentos solidários. Porém, estes números
indicam também que estas mulheres ingressaram na Rede somente após tentativas frustradas
na busca de emprego fixo, uma renda digna. Isso ocorre em decorrência de sua mão-de-obra
não ser valorizada e muitas são obrigadas a abrirem mão de uma vida profissional em razão
de suas atividades domésticas, como cuidar da casa, evidenciando que há um profundo fosso
entre as experiências dos homens e das mulheres.
12 NUNES, Kelma; COELHO, Meyre. Economia Solidária: uma economia para as mulhres? Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=31136 Acesso em: abril, 2007.
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Outras, já acostumadas a sua condição, não almejam nada mais. A alienação, fruto de
uma vivência adaptada à dominação, não permite uma análise crítica sobre sua trajetória de
vida. Em diversas experiências de Economia Solidária, esta solidifiou o papel da mulher na
casa, pois, desta maneira, elas não precisam procurar emprego ou podem exercer as atividades
profissionais no espaço privado, em tarefas que se entrecruzam com os papéis assumidos
como responsabilidade inexorável, vinculados à maternidade. Esta limitação das mulheres ao
espaço da casa dificulta os encontros e não estimulam as discussões.
As reuniões de grupo, como acontecem em outros municípios, o trabalho desenvolvido
coletivamente, as trocas de experiências, os diálogos no espaço de trabalho, são espaços
férteis para debates e reflexões que podem levar a outros rumos, principalmente para o
fortalecimento das identidades femininas e para o autorreconhecimento como protagonistas da
Economia Solidária. No entanto, muitos maridos não gostam que as mulheres participem das
reuniões mensais nos bairros ou de outras atividades, criam situações impeditivas para uma
constante presença em tais atividades.
Maciel retrata a importância do espaço coletivo para o grupo de nove mulheres pobres,
oriundas do meio rural, envolvidas em pesquisa desenvolvida em Passo Fundo-RS:
O espaço coletivo é fundamental para a concretização dos laços sociais e
para a realização de novas formas de trabalho. Através das suas experiências
nos grupos comunitários, essas mulheres são capazes de dominar com
sabedoria o espaço privado e, aos poucos, ir adentrando no espaço público
(trabalho externo), manifestando também uma preocupação com o social.
(MACIEL, 2001, p.43)
Assim, a importância da organização dos empreendimentos solidários não está
somente nos benefícios da comercialização, mas deve se pautar nos encontros, discussões e
entrosamentos, para o fortalecimento dos laços sociais. Mais uma vez apresentamos os
impasses e paradoxos da Economia Solidária em Dourados – com o exemplo do Grupo
Pirêvest – fato que não lhe retira a importância política e sua legitimidade como um espaço
educativo e de empoderamento feminino.
O grupo Pirêvest em Dourados-MS – grupo de confecção – possui uma sede, mas cada
costureira trabalha em sua casa. Hoje o Pirêvest é uma microempresa e, de acordo com a
empreendedora “B”, a sede possui uma administradora, porém cada integrante controla as
notas fiscais emitidas e pagas seus impostos separadamente. As reuniões são mensais.
Contudo, a produção é solitária, na própria residência. O Pirêvest se tornou uma alternativa
econômica, mas não um espaço de convivência.
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Esse sistema coletivo de empreendimentos integrados pode ser um espaço privilegiado
para as mulheres na medida em que o rendimento feminino representa, muitas vezes, a única
fonte dos recursos familiares ou uma complementação necessária. Em qualquer destas
hipóteses, fica explícito que esta renda proporciona melhorias na condição de vida das
mulheres e de sua família, além de aumentar seu poder de barganha frente ao homem,
fragilizando o poder patriarcal, que está explícito no próprio discurso das mulheres.
Mas, além da sobrevivência da família, este recurso significa também uma conquista
de bens desejados por estas mulheres. Muitas sonham com a compra da geladeira, da TV, do
guarda-roupa, do fogão, de roupas para os filhos e até mesmo dinheiro para um passeio e,
principalmente, não dependem do homem para realizarem sues anseios pessoais, mesmo que
direcionados também à família. Enfim, sobre questões econômicas, as mulheres se sentem
mais autônomas para decidirem sem “pedir permissão” ao homem, tal autonomia torna-se sine
qua non para outras experiências, como por exemplo, no campo decisório nos espaços
públicos. Conforme analisa Costa,
O acesso ao consumo tem significados ainda mais amplos, pois representa
também a conquista de autonomia. Essa independência tem impactos
consideráveis em suas relações privadas e na construção de sentidos sobre si
mesmas. A percepção sobre o lugar ocupado, na esfera social, altera-se à
medida que as possibilidades de interação são multiplicadas. As
trabalhadoras conseguem planejar, articular e satisfazer desejos pessoais ou
familiares, mesmo com certa limitação. Dessa forma, a submissão feminina
relacionada a questões financeiras sofre alterações em diferenciados níveis.
Somam-se outros elementos às decisões cotidianas da esfera doméstica, o
que possibilita às mulheres uma maior capacidade de negociação e, em
última instância, de poder. (COSTA, 2007, p. 135)
A ideia de poder na construção histórica está entrelaçada com o masculino. Esta
concepção advém do entendimento do poder político, muito marcado pela ação dos homens.
Por ser um assunto masculino, muitas mulheres sequer tiveram ou têm interesse em participar.
Perrot lembra que
A idéia de que política não é um assunto das mulheres, que aí elas não estão
em seu lugar, permanece enraizada, até muito recentemente, nas opiniões
dos dois sexos. Além disso, as mulheres tendem a depreciar a política, a
valorizar o social e o informal, assim interiorizando as normas tradicionais.
É, uma vez mais, todo o problema do consentimento que aí se coloca.
(PERROT, 2006, p. 184)
Desta forma, a compreensão de decisões coletivas, para muitas mulheres, é motivo de
estranheza, visto que em casa não vivem uma relação de igualdade. O poder masculino é o
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centro das decisões no lar e isto se reflete na dificuldade de buscar autonomia na Rede de
Economia Solidária.
Enquanto, para as mulheres, as noções de ajuda, de complementação, de desapego aos
mecanismos de decisão relativos aos rumos do projeto familiar e também no âmbito
econômico, estiverem interiorizadas, além de outras formas de poder instituídas e ocultas não
forem discutidas, a Economia Solidária não conseguirá desenvolver seus propósitos, de uma
sociedade mais justa.
Em entrevista com a empreendedora “C” do setor de confecções, esta relata que a
Rede é uma oportunidade para as mulheres, mas sua visão desta oportunidade é vender e a
possibilidade de equilibrar os trabalhos domésticos com seu ofício na Economia Solidária.
Eu entrei através da minha cunhada que já participa faz tempo. (...) Fui a
primeira vez, fiquei escutando (...) fui na segunda reunião e gostei. Porque
assim (...) eu aprendi coisas que a gente não sabia como vender, como
conquistar o cliente, assim né (...) Eu acho assim que a Rede é uma coisa que
traz oportunidade para as mulheres, que não pode trabalhar fora, ajuda muito
porque a gente pode trabalhar em casa (...) E as pessoas fazem amizade
também né (...) E as pessoas são muito legais também [as gestoras]. Elas têm
assim carinho com as pessoas, paciência.
13Neste sentido, o acúmulo de atividades representa a manutenção das desigualdades, ou
seja, a igualdade compreendida pelas participantes da Rede da Economia Solidária ganha um
sentido que se restringe às mulheres que participam das reuniões. No âmbito da Rede, estas
vivem situações semelhantes, são tratadas da mesma maneira por todas as pessoas,
independente de sua etnia ou condição social. Além disso, não têm patrões ou patroas para dar
as ordens, mas a igualdade não se amplia. Em casa, permanece a continuidade do que está
instituído.
No jornal da Rede de Economia Solidária de dezembro de 2005, uma empreendedora
trata do significado da qualificação que recebeu e do ingresso na Rede de Economia Solidária:
O curso de bijuteria, que fiz como familiar, representou o resgate de tudo.
De auto-estima, da mulher que sempre foi para frente e que estava
adormecida dentro de mim. Mesmo quando não vendo nada eu me sinto bem
por estar fazendo algo de importante para minha vida.
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Entrevista concedida em 10/03/2009.
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Aqui podemos perceber o significado do trabalho para a empreendedora, o que ele
representa para ela. Este não possui apenas um sentido econômico, mas denota um diferencial
em sua vida, uma liberdade para viver como sempre quis. O mais importante, esta mulher se
sente valorizada, volta-se para frente, acorda para si mesma e passa a dar rumo à própria vida.
Dessa forma, consideramos que ela vive um processo de empoderamento, descrito como a
elevação da autoestima, o “poder de dentro”
15conforme Deere e Leon.
Outra empreendedora relata, em entrevista ao Jornal da Economia Solidária de abril de
2006
Começamos a produzir há oito anos, quando a nossa situação financeira deu
uma caída. Estávamos na véspera do Natal e eu decidi sair e oferecer cucas
nas casas e voltei com 30 encomendas. A partir daí eu decidi que dali em
diante ia continuar trabalhar com isso. Esses dias me perguntaram a receita e
eu disse que a receita todo mundo tem, é só amor, carinho e gostar do que se
faz, porque o importante não é tanto o retorno financeiro mas o elogio. A
Rede de Economia Solidária deu oportunidade para vender nossos produtos
nas feiras.
16O relato desta empreendedora representa o que muitas mulheres fazem: elas encontram
mecanismos para atender às necessidades da família e, por vezes, essas atitudes são a
principal razão de sobrevivência da família. No entanto, suas ações são pouco reconhecidas.
Outro aspecto importante que merece reflexão através do depoimento é o desapego ao
dinheiro e ao poder. Quando ela afirma que o importante é o elogio, ela confirma, por um
lado, a ideia de que “ao feminino, o mundo do sentimento, da intuição, da domesticidade, da
inaptidão, do particular; ao masculino, a racionalidade, a praticidade, a gerência do universo e
do universal.” (SWAIN, 2001, p. 69) Por outro lado, o elogio também pode ser considerado
um incentivo para sua autoestima e a valorização da melhoria da qualidade de vida, nem
sempre exige ganhos elevados.
15 Segundo DEERE e LEÓN (2002, p. 54), outras formas de poder são possíveis e positivas: “O ‘poder para’ serve para catalisar a mudança quando uma pessoa ou um líder de um grupo promove o entusiasmo e a ação de outros. É um poder gerador ou produtivo, um poder criativo ou facilitador que abre possibilidades de ações sem dominação – ou seja, sem o uso do ‘poder sobre’. O ‘poder para’ está relacionado ao ‘poder com’, pois permite que o poder seja compartilhado. Isso se torna aparente quando um grupo gera uma solução coletiva para um problema comum, permitindo que todas as potencialidades sejam expressas na construção de uma agenda de grupo que também é assumida individualmente. Isso serve para confirmar que o grupo pode ser superior à soma de suas partes individuais. Outra forma de poder positivo e aditivo é o ‘poder de dentro’, ou poder interior. Este tem a ver com gerar força de dentro da pessoa e está relacionado à auto-estima. O ‘poder de dentro’ aparece quando alguém consegue resistir ao poder de outros ao rejeitar exigências indesejadas. Também inclui o reconhecimento, que se adquire com a experiência, do modo como a subordinação da mulher é mantida e reproduzida.