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9.3 PREENCHIMENTO DAS LACUNAS AXIOLÓGICAS E ONTOLÓGICAS

9.3.3 As Lacunas como Técnica de Flexibilização Procedimental

Toda a abordagem feita sobre lacuna nesse texto até o presente

226 Ibidem, p. 95. 227

momento, teve como objetivo fazer uma introdução ao tema, mostrando que o problema da lacuna passa por uma discussão de completude ou não do ordenamento jurídico. Concluiu-se que mesmo em se imaginando possível conceber um sistema normativo perfeito, completo, ainda assim se fariam presentes as lacunas axiológicas e ontológicas face o dinamismo das relações sociais.

O que se pretende desenvolver nesse tópico é o meio pelo qual as lacunas axiológicas e ontológicas podem ser usadas para flexibilizar o procedimento dentro da já defendida ideia de procedimento como assegurador da ordem, do formalismo- valorativo, ou formalismo necessário contra o arbítrio do juiz e do Estado.

Para tanto, o presente estudo parte da análise conjunta do processo civil e processo trabalhista, subsistemas normativos que interagem em face da existência de lacunas reconhecidamente previstas no artigo 769 da CLT.

Pois bem. O artigo 769 da CLT é claro ao estabelecer que “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título”. É dizer, portanto, que o processo civil serve como meio de colmatar as lacunas normativas existentes no processo do trabalho, desde que não haja incompatibilidade com as normas desse ramo específico do direito.

Essa regra nasce como fruto do contexto histórico e cultural da época em que o processo do trabalho foi implantado e considerado como ramo autônomo do Direito.

A Consolidação das Leis do Trabalho é datada de 1943, época em que vigorava o código de processo civil de 1939. Ela surge como um instrumento moderno, onde se visava a uma rápida prestação jurisdicional para aquele que à época já era considerado o hipossuficiente, o trabalhador agrário.

Por essa razão, o artigo 769 da CLT foi introduzido como um escudo de proteção em face da possibilidade de ingerência do Processo Civil, complexo e moroso, ante um processo mais simples, rápido e econômico. Nesses termos Carlos Henrique Bezerra Leite afirma que:

Em 1973, entrou em vigor o Novo Código de Processo Civil brasileiro, o qual representou a chamada fase da autonomia científica do direito processual civil pátrio, enaltecendo o conceitualismo e o formalismo processuais, o que implicou, na prática laboral, a necessidade de se dar ênfase à cláusula de contenção (CLT, 769) da aplicação subsidiária das normas processuais civilistas nos sítios do processo do trabalho. O CPC de 1973, além de moroso, paternalista (para o devedor) e custoso (para o autor), sempre se preocupou mais com as tutelas protetivas do patrimônio do que com as dos direitos sociais (e de pesonalidade), gerando, assim, um clima generalizado de desrespeito aos direitos humanos, especialmente em relação às pessoas mais pobres que não conseguem suportar a morosidade do processo sem prejuízo do sustento próprio e dos respectivos familiares. Surge, então, a necessidade de se criar novos institutos e macanismos que tenham por escopo a efetividade na prestação jurisdicional na seara civil.228

O artigo 769 da CLT ficou então conhecido como clásusula de contenção, impedindo que seus institutos próprios fossem contaminados pelo Processo Civil, a exemplo da audiência una, da ausência de cabimento de recurso contra decisões interlocutórias, do reduzido número de recursos, da ausência de efeito suspensivo para as sentenças, entre outros.

Essa redoma através da qual o processo do trabalho se protegeu, foi útil e necessária por vários anos. Contudo, as reformas iniciadas na década de 90 (noventa) fizeram com que o processo civil desse um passo a frente com a criação de novos meios de celeridade e efetividade processual, como a tutela específica, as tutelas de urgência, as súmulas impeditivas de recurso, o novo procedimento de execução do artigo 475-J do CPC, etc. Como se não fosse suficiente, tem-se a Emenda Constitucional no 45 de 2004, que ampliou a competência da justiça do trabalho e atraiu para ela o julgamento de causas que antes eram da Justiça comum.

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É diante do problema posto que se passa a questionar sobre a possibilidade do direito processual do trabalho abrir mão da aplicação de procedimentos próprios, porém menos benéficos, para se utilizar daqueles trazidos com as reformas do processo civil. Pode, portanto, o processo civil subsidiar o processo do trabalho quando há compatibilidade, mas não há omissão?

É exatamente aqui que entram as lacunas axiológicas e ontológicas como solução para o questionamento.

Usando o artigo 475-J como modelo, cujas inovações vieram para dar celeridade e efetividade ao procedimento de execução, estabelecendo curto prazo para pagamento, multa de 10% (dez por cento) pelo inadimplemento, entre outras facilidades, tem-se que a execução trabalhista prevista nos artigos 880 a 892 da CLT, foi atingida pela evolução social e pelo progresso técnico do processo civil, mostrando- se injusta a aplicação do art. 769 da CLT, acaso interpretado em sua literalidade.

Essa situação de desvantagem processual trabalhista gera, sem sombra de dúvidas, uma insatisfação para o tutelado e uma injustiça não mais aceita em sede de constitucionalização de direitos.

Para o preenchimento da lacuna ontológica e axiológica do art. 769 da CLT, busca-se esteio na nova hermenêutica constitucional que possibilita uma releitura de todo o ordenamento jurídico a partir de seus princípios e da irradiação de suas normas. Se não mais vigora o objetivo de outrora da cláusula de contenção aqui referida, estando o processo civil munido de procedimentos que agilizam e auxiliam a solução rápida e efetiva dos conflitos, justificada está, por exemplo, a aplicação do art. 475-J no processo do trabalho.

Destarte, deve operador do direito ter a percepção de que a existência de uma norma, de um procedimento previsto em lei, não basta para alcançar a justiça da decisão. É preciso verificar se a rigidez procedimental praticada sob o manto protetor da legalidade não está eivada de técnica ultrapassada e em descompasso com a realidade do direito material que se busca. A mera técnica já não tem mais espaço no instrumentalismo e, menos ainda, no formalismo-valorativo, principalmente quando a aplicação literal da lei se choca com os direitos fundamentais previsto na Constituição Federal.

É nesse sentido que as lacunas podem servir como meio de flexibização procedimental. Deparando-se o juiz com um procedimento oco, desprovido de um sentido teleológico, não estará ele obrigado a seguir, deverendo buscar o preenchimento da lacuna axiológica ou ontológica por meio de outro procedimento que possibilite a sua adequação e atinja o escopo processual, sem ferir o princípio da segurança jurídica, conferindo efetividade e alcançando a justiça da decisão.