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Capítulo IV – Cartilha do Operario, forma e conteúdo

2. As lições da Cartilha

Não é explícita na Cartilha uma delimitação clara das lições. Seus textos são curtos, quadros e esquemas com frases, palavras e letras são dispostos sem organização aparente e não há enunciados que esclareçam o que deve ser feito em cada atividade. É na parte da “Direcção”76 que o leitor/professor consegue ter a compreensão do conjunto da obra, a finalidade de cada lição e como desenvolvê-las, de acordo com a proposta do autor.

Para realizar a análise da Cartilha, foi estabelecido o critério de delimitação das suas lições a partir dos assuntos tratados em suas estampas e textos. Foi construído um quadro esquemático que compreender o conteúdo da Cartilha em 59 lições e dois anexos e a “Direcção”, partindo do pressuposto de que cada lição, de uma maneira geral, segue a seguinte disposição: estampa, texto, sentença em letra cursiva (caligrafia vertical) e exercícios. Esse quadro está no anexo III.

3. Estampa

As estampas são recursos fundamentais para o ensino da leitura pelo método analítico, uma vez que ele parte da observação direcionada para a organização dos atos de fala e escrita. De acordo com as orientações de Moraes na própria Cartilha

76Estas orientações são tratadas com maior profundidade no item 4 neste capítulo, durante a análise dos exercícios da Cartilha.

(“Direcção”), as estampas e os objetos são o ponto de partida de cada lição, pois eles introduzem o tema para as palestras dialogadas entre professor e alunos.

De uma maneira geral, as estampas da Cartilha do Operario (assim como os temas tratados em suas lições) estão relacionadas com o universo operário. São ilustrações sobre diversas profissões dos operários da época (pedreiro, marceneiro, ferreiro, pintor, sapateiro, padeiro, chapeleiro, etc.); dos locais onde os operários trabalham (fábricas e oficinas); dos instrumentos utilizados nas diferentes profissões (tear, serra, martelo, forno, tesoura, etc.); dos produtos do trabalho dos operários (chapéus, sapatos, pães, couro, etc.) e; das matérias-primas utilizadas na fabricação desses produtos (algodão, pele de animais, pedras, ferro).

Um segundo agrupamento de estampas aborda a temática do corpo humano e um último bloco de estampas refere-se aos aspectos das relações sociais, as quais abordam os prejuízos do consumo do álcool, a importância do trabalho, do patriotismo e do estudo. Neste sentido, percebe-se a influência do método intuitivo, no qual a imagem tem um lugar de destaque para o processo de ensino-aprendizagem.

As estampas exercem duas funções principais no corpo da Cartilha. A primeira é a de iniciar cada lição, sendo posicionadas antes do texto, de forma que o aluno se atenha, primeiramente, à estampa, para, em seguida, compreender o texto proposto. As estampas que abrem as lições são sempre maiores, ocupando de ¼ de folha a uma página (variações entre 3x3 cm e 6x10 cm, aproximadamente). Das estampas coloridas impressas na Cartilha, todas fazem parte deste conjunto.

A segunda função das estampas na Cartilha é a de ilustrar os exercícios de leitura, análise de palavras e construção de sentenças. Essas estampas são menores (cerca de 1,5x 1,5 cm) e ilustram as palavras tratadas nos exercícios, o que motiva a

leitura pela imagem. Aqui, podemos retomar a importância do desenho para os métodos

analítico e intuitivo, no que tange o ensino da linguagem: pelo desenho, o aluno realiza o primeiro registro da palavra para então associá-lo às letras, que serão, posteriormente, lidas e escritas.

Nas 98 páginas da Cartilha destinadas às lições (p. 3 a 101), há um total de 147 estampas (125 se considerarmos apenas as lições), com a ressalva de que 21 páginas não possuem estampas (págs. 6, 9, 11, 14, 23, 31, 35, 36, 37, 39, 40, 43, 45, 49, 50, 77, 78, 79, 88, 100 e 101). A tabela quantitativa está no anexo IV e especifica a concentração de estampas por lição da Cartilha.

a) Estampas relacionadas aos textos das lições

Moraes (1913), afirma que o aluno deve aprender a observar e pensar por si mesmo. Na Cartilha do Operario, as estampas abrem quase todas as lições, o que reforça o primeiro movimento de observar para, em seguida, ler. Das 59 lições da

Cartilha, apenas nove não tiveram a estampa impressa antes do texto. Essa organização

retoma a importância da observação para a aquisição da linguagem, segundo o que propõe o método analítico.

A lição da Cartilha do Operário, conforme pode ser observada abaixo, é um modelo de estampas relacionadas ao texto. Na estampa aparece um operário marceneiro. Sua roupa e os instrumentos que traz em uma das mãos servem para identificá-lo. O texto que aparece abaixo desta imagem está completamente relacionado a ela.

Figura 10: Cartilha do Operário, 1924, p.3 (CPP)

Nove lições da Cartilha não receberam estampas77, iniciando-se pela lição 23 (p. 37). É importante destacar que, de acordo com Moraes, a fase de preparação inicial da alfabetização vai ser objeto das doze primeiras lições A utilização de ilustrações na abertura de todas as lições iniciais da Cartilha e o fato de haver ausência de ilustrações em lições a partir da lição 23 indica que a esta altura, os alunos já não necessitam de

tanto rigor no que se refere à imagem, à observação, conforme pode ser observado na figura 11.

Figura 11: Cartilha do Operário, 1924, p.37 (CPP)

Apesar da ausência da estampa na lição 33 (p.54), sua disposição em página aberta da Cartilha, possibilita o uso da estampa da lição 32 (p. 55), pois o tema das duas é o mesmo.

As estampas que iniciam as lições, em sua maioria, estão diretamente associadas ao conteúdo do texto, contudo, há algumas situações em que a estampa apenas faz uma

alusão metonímica (relação entre as partes com todo) ao conteúdo textual, não se

remetendo a ele diretamente.

Este é o caso das lições 21 e 26. A lição 21 (p. 33) traz a estampa de um homem nu, em pé, provavelmente um índio ou um guerreiro, enquanto que o seu texto trata da divisão do corpo humano em cabeça, tronco e membros e da cabeça em crânio e face. A lição 26 (p. 42) apresenta a estampa do crânio humano (face) e mostra um texto sobre a dentição nas fases da vida.

Figura 13: Cartilha do Operário, 1924, p.33 e 42 (CPP)

É também o caso das lições 28 e 30. A lição 28 (p. 48) traz a estampa de uma estátua grega, enquanto seu texto trata das partes do corpo: cabeça, pescoço, tronco, quadris e região lombar. A lição 30 (p. 50) traz a estampa de um homem seminu, em pé, enquanto que o texto trata da perna e sua extensão (coxa, perna pé e dedos), descrevendo o pé e indicando as atividades que com ele realizamos (andar, correr e saltar).

Figura 14: Cartilha do Operário, 1924, p.48 e 50 (CPP)

A seguir, destacam-se três formas em que as estampas aparecem da

Cartilha de maneira diferenciada: a) três lições que apresentam estampas coloridas; b)

uma lição da que traz duas estampas, uma no início e outra ao final do texto e, c) uma lição em que a estampa ocupa uma página inteira.

• Três lições com estampas coloridas

Figura 15: Cartilha do Operário, 1924, p. 58, 61 e 62 (CPP)

É importante enfatizar a qualidade de produção da Cartilha quando se observa a utilização de cores em estampas de três lições diferentes. Do ponto de vista do ensino intuitivo, estes elementos são significativos no que se refere ao enriquecimento das imagens utilizadas.

• Uma lição com duas estampas

Figura 16: Cartilha do Operário, 1924, p. 69-70 (CPP)

O recurso utilizado somente na lição 41, ou seja, utilizar duas estampas para o mesmo tema, toma a função de focar a imagem geral que se quer mostrar. A imagem que abre a lição parece ser uma área de mineração e o texto aborda o tema do reino mineral, fazendo uma caracterização geral. A lição é finalizada com uma frase manuscrita em destaque “O ferro é o mais util dos metaes”. Logo em seguida, aparece uma ilustração de rochas, de onde pose ser extraído o minério de ferro.

• Estampa de página inteira

A figura 17 apresenta uma cena de desagregação do lar e da família, em que o homem alcoolizado vandaliza sua própria casa, quebrando móveis e utensílios domésticos. Uma mulher sai pela porta com sua filha no colo e o filho maior procura fugir.

Figura 17: Cartilha do Operário, 1924, p. 83 (CPP)

Esta estampa, em relação às demais possui uma singularidade por ser a única que ocupa uma página inteira da Cartilha, portanto em destaque. Ela aparece nas páginas de uma lição que tematiza os problemas do alcoolismo para a sociedade, para o trabalho e para a família. Esta lição tem quatro páginas e a estampa aparece no final, o que pode demonstrar uma intencionalidade de impactar os leitores no sentido de complementar a mensagem moralizadora do texto escrito.

De acordo com Hall (1991), este tipo de gravura foi muito utilizado pelos evangélicos no século XIX para moralizar os pobres e também como uma representação de como o álcool pode degenerar uma família operária.

b) Estampas relacionadas aos exercícios das lições

Das 59 lições da Cartilha, 34 trazem exercícios de leitura e análise de palavras e de completar sentenças. Nestes exercícios, as estampas têm a função de representar as palavras a serem estudadas, possibilitando a leitura pela associação visual.

Figura 18: Cartilha do Operário, 1924, p. 13 e 64 (CPP)

Figura 19: Cartilha do Operário, 1924, p. 76 (CPP)

No caso da lição 45 (p. 76), não há estampa anterior ao texto e, abaixo da frase em caligrafia vertical, tem um exercício de palavras ilustradas com estampas menores. Como as palavras do exercício retomam o tema tratado no texto (animais úteis ao homem), estas estampas, por aproximação, também ilustram o texto da lição.

Conforme já foi anunciado anteriormente, a Cartilha possui dois anexos. No anexo 1, aparece um quadro de sons iniciais das palavras que reúne 24 estampas (foto abaixo). O quadro dispõe, em seqüência horizontal: a estampa, o nome da estampa e as letras iniciais da palavra (maiúscula e minúscula). O quadro apresenta as palavras em ordem alfabética, utilizando uma estampa e uma palavra para indicar o som inicial marcado por cada letra do alfabeto. As palavras que compõem esse quadro, em sua maioria, fazem parte das lições da Cartilha. São palavras relacionadas ao universo do operário adulto.

A colocação deste quadro ao final da Cartilha (p. 97-99), como um anexo, está de acordo com a proposta do método analítico, pois a fragmentação da palavra até o nível do fonema/letra consiste em uma das etapas finais do aprendizado da língua. Desta forma, o quadro adquire a função de apoio, um recurso para referência e pesquisa dos sons iniciais: primeiro o aluno observa a estampa que ilustra a palavra, em seguida associa a estampa à palavra e, por fim, relaciona a letra inicial ao som que ela produz.

c) Da estampa para o texto ou do texto para a estampa?

Esta questão permeou toda a etapa de análise das estampas. Em algumas lições, é perceptível que o autor parte da estampa para construir seu texto, como no caso da lição 36, sobre o algodoeiro.

Em outras situações, o texto parece ter sido elaborado antes de ser associado à ilustração e, neste caso, a estampa não dá conta do assunto proposto. É o que acontece na lição 6, sobre os tecidos, que emprega a mesma ilustração do algodoeiro, em preto e branco.

Acredita-se que esta dificuldade em ter de produzir textos para uma estampa ou de não ter disponível uma estampa que se aproxime ao tema da lição, trata-se de uma questão da produção editorial dos materiais didáticos do período. Quais recursos tinham as tipografias de 1920 para a confecção deste tipo de material? Até que ponto o autor podia organizar seu material e quais limites ele tinha de enfrentar, impostos pelas restrições gráficas? Estas questões ainda estão em aberto e necessitam de investigação.