• Nenhum resultado encontrado

As Metamorphoses e as artes plásticas

II. OVÍDIO E AS METAMORPHOSES

1. As Metamorphoses

1.2. As Metamorphoses e as artes plásticas

Esta obra foi a principal fonte literária das artes plásticas no que aos temas mitológicos diz respeito, durante o Renascimento, mas também nos períodos subsequentes, ao ponto de o adjetivo “ovidiano” querer dizer repetidas vezes “mitológico”, mesmo que alguns dos mitos não constem das Metamorphoses108. Tal acontece pela abundância de informação que as Metamorphoses oferecem ao seu leitor, o que leva à inevitável seleção de episódios, mesmo que, pelo decorum109, nem todos possam ser usados.

É, no entanto, importante a opinião de Feldherr (2002: 175) que defende que a metamorfose é uma forma de explicar um aspeto invulgar da realidade do leitor, que pode ser concretizado por uma estátua ou uma pintura. Dependendo da adaptação destas formas de representação, o texto pode ficar mais rico com as referências das obras que foram feitas, isto é, quando se lê um episódio das Metamorphoses, recuperamos mentalmente as representações das artes que conhecemos, o que enriquece e amplia o texto em si.

Esse contágio dos temas mitológicos nas artes é evidenciado por Barrow (2007: 101), que refere que

Mythological subjects had, of course, for centuries dominated the painter’s oeuvre. And Victorian culture, rich in literary and visual mythological allusion, assumed and in turn guaranteed a reading and viewing public familiar with the narratives of classical myth. From Renaissance onwards, ‘Greek’ myths tended in practice to be those appropriated and perpetuated by Rome: the Greco-Roman character of the material is summed up by the frequency with which Ovid’s Metamorphoses is taken as an exemplary mediator of classical mythology.

O papel mediador das Metamorphoses está relacionado com a facilidade de selecionar

107 Martindale (1988: 13).

108 Cf. Allen (2002: 336), Graf (2002: 108), Llewellyn (1988: 151).

109 Allen (2002: 341) nota que existem dois tipos de decorum: o relativo e o absoluto. O primeiro caracteriza-

se pela fidelidade do artista ao texto, por ser geralmente fidedigno histórica e arqueologicamente e, de forma ainda mais geral, ter em atenção as corretas indicações de sexo, idade, nível social, etc. O segundo, por sua vez, proíbe a exibição de momentos de violência, de aversão ou de obscenidade.

um “quadro” da obra e tomá-lo como objeto de tratamento visual de forma compreensível, o que permite que os espectadores possam reconhecer os participantes na cena. Naturalmente que, dentro de cada “quadro” e pela índole da representação, é necessário selecionar um momento a ser desenvolvido visualmente.

Essa relação fez-se notar já na própria arte romana, como observa Llewellyn (1988: 156), visto que existem vários exemplos de trabalhos com temática ovidiana (mosaicos, etc.)110, mas são poucos aqueles que permitem estabelecer uma relação suficientemente segura com momentos específicos das Metamorphoses.

No período medieval, dá-se a cristianização dos textos pagãos, que, no caso de

Metamorphoses, terá um momento importante em Ovide Moralisé, no séc. XIII, obra

marcada por princípios moralizantes. Esta intenção didática é alargada por meio da imagem, a fim de suprir dificuldades como o analfabetismo ou a falta de conhecimento de latim da maioria das pessoas. Assim, uma das principais impressões de Ovide Moralisé, a de Colart Mansion, em Bruges, em 1484, apresenta já 34 ilustrações de episódios da obra111, fazendo referência a aspetos da cultura contemporânea e facilitando a compreensão dos ensinamentos morais.

No séc. XV, a tendência didática mantém-se numa tentativa de moldar os comportamentos sociais e dá origem à necessidade de haver quadros que emulassem de forma mais evidente os textos clássicos. Leon Battista Alberti (1404-1472), no seu De

Pictura, no final da década de 1430, defende que os pintores têm por profissão visualizar as

histórias, ou seja, conseguir construir a partir do texto um quadro, e dá como exemplo um episódio clássico (uma alegoria da Calumnia inicialmente pintada por Apeles) em vez de um religioso, que seria mais comum e mais expectável para a época. Vê-se que, no final do século, o recurso às histórias clássicas como exemplos já era comum e, como tal, Ovídio reduz a sua missão moralizadora e dá lugar à humanista.

Correggio (c. 1489-1534) e Ticiano Vecellio (c. 1490-1576) são dois dos principais exemplos de uso dos mitos ovidianos, no início do séc. XVI, ainda que tão diferentes em formação e estilo: Ticiano ostenta nos seus quadros personagens muito musculadas, agressivas e pesadas, enquanto Correggio consolida o seu inimitável estilo numa langorosa e delicada sensualidade. Este último produziu pouco mais de dez quadros de temática clássica, nos quais demonstra a mesma sensualidade que nos de temática cristã. A sua intenção é mostrar a antiguidade clássica como uma era áurea para o prazer dos sentidos.

110 Para mais informação, veja-se, por exemplo, Toynbee (1964). 111 Cf. Llewellyn (1988: 157).

Por sua vez, Ticiano desenvolve a capacidade de construção narrativa do quadro, de modo a dar a conhecer harmoniosamente as energias de um mito: a ação, o ritmo, a teatralidade ou a psicologia, que são qualidades advindas da leitura de Ovídio112. O conceito de

ilustração evolui, ampliando o seu significado, porque os quadros não são apenas uma ilustração de um texto, mas passam a constituir, na expressão de Llewellyn (1988: 158), “visual texts”, pelo seu pormenor e construção narrativa.

A relação entre mito, texto e pintura evoluiu no século seguinte, particularmente com Peter Paul Rubens (1577-1640) e Nicolas Poussin (1594-1665), que dão destaque à cor e à qualidade do desenho, conseguindo elevar os mitos ao nível da poesia nos seus quadros, fazendo com que cada tela funcionasse como uma narrativa, uma alegoria, e servissem apenas decorativamente113. A analogia com a iconologia cristã continua a ser possível, o que acontece quando se compara o lamento de Vénus pela morte de Adónis com o de Maria por Cristo114.

No séc. XVII, os temas ovidianos mantêm-se na pintura, mas já não ocupam toda a tela, ou seja, as personagens míticas passam a estar encaixadas na paisagem, que é o alvo de maior destaque. É possível observar isso, por exemplo, na obra de Claude Lorrain (1600- 1682), em Apollon et les Muses sur le Mont Hélicon (1680)115, e na pintura inglesa. A presença de figuras mitológicas eleva a importância do quadro, pois deixa de ser apenas decorativo já que recupera referentes culturais com um peso alegórico e narrativo116.

O séc. XVIII é muito rico em pintura histórica, que se inspira sobretudo na República Romana117 e na “era de Augusto”118, nos exemplos de uirtus presentes em figuras como

Cícero, Bruto, Fabrício, Cincinato e, principalmente, Catão de Útica. Também os paralelismos histórico-políticos possíveis entre a Roma antiga e o séc. XVIII são fator de interesse para os artistas ingleses119. A ligação com a Grécia é evidente pela transmissão,

112 Cf. Barkan (1986: 175-76).

113 O pavilhão de caça da Torre de la Parada, fora de Madrid, de Filipe IV de Espanha, III de Portugal, é um

destes casos. Terá albergado cerca de 41 trabalhos de grande escala de Rubens inspirados apenas em Ovídio. Rubens procurou mitos menos canónicos e que ainda não tivessem sido tratados por si noutras obras. Cf. Llewellyn (2002: 158-159, n. 37). Não haveria, contudo, necessidade de obedecer à ordem das Metamorphoses porque cada quadro/episódio funciona unitariamente e é didático per se, sem precisar do contexto para tal.

114 Cf. Llewellyn (1988: 159).

115 Para consultar a obra completa do pintor, visite-se http://www.claudelorrain.org/. 116 Cf. Llewellyn (1988: 161).

117 Sachs (2010: 24) nota que a república romana funciona como “an imaginative space that helps to organize

Romantic period political, historical, and aesthetic practices”, o que acontece também por meio da literatura.

118 Esta classificação é usada no séc. XVIII-XIX, como nota Sachs (2010: 31), para indicar um período de

estabilidade política, como a que sucedeu à ascensão de Augusto, e de triunfo nas artes, com grandes nomes como Horácio e Vergílio. Realce-se que a atenção não é posta no período de transição da república romana para o império, mas nas qualidades de ambos.

edição e releitura dos textos clássicos, designadamente de Homero, pelo surgimento dos estudos clássicos nas universidades inglesas e pela experiência de viajantes que trazem consigo e divulgam antiguidades, retomando assim o gosto pela arte, arquitetura e escultura helénicas120.

O séc. XIX ainda tem, no seu início, artistas como Benjamin West (1738-1820), presidente da Royal Academy of Arts, que expõe, por exemplo, os quadros Arethusa e Orion em 1802 e, dois anos depois, Phaeton, histórias presentes em Ovídio. Mas, por influência do individualismo e da melancolia do período romântico, os vitorianos procuraram uma mitologia mais subjetiva, que mostrasse o particular e o introspetivo, o que acontecerá nos textos gregos121. Além da Ilíada e da Odisseia, os Hinos Homéricos, os textos de Hesíodo ou Apolodoro e as tragédias gregas dão-nos conhecimento abundante sobre mitologia.

O poeta de Sulmona desdobra-se aos olhos dos vitorianos em três facetas122: o Ovídio, fonte mitológica; o Ovídio, fazedor de versos elegantes e espirituosos; o Ovídio, exilado e conhecedor das sofisticadas artes amorosas. É esta última face que adquire desenvolvimento na época vitoriana, porque o exílio do poeta é visto como um castigo pela sua licenciosidade, a sua imoralidade e pela conduta sexual ofensiva à decência. Estes aspetos são vistos como uma afronta à época vitoriana e promove-se assim uma biografia romântica e moralizadora, a fim de educar a sociedade no modesto e austero gosto romano. Mesmo no caso do “Ovídio, fonte mitológica”, os artistas procuram cenas mais íntimas, com personagens em processo de reflexão ou até arrependidas123.

Poetas como William Wordsworth (1770-1850), John Keats (1795-1821), Lord Alfred Tennyson (1809-1892) – só para referir os que terão repercussão em Waterhouse – encantaram-se por Ovídio, desvalorizam a visão austera vitoriana e recorreram aos textos do poeta para a construção de algumas das suas obras. Contudo, o helenismo do séc. XIX quase aniquila a pervivência de Ovídio, por ser considerado um imitador dos gregos. Como escreve Allen (2002: 366), “in the nineteenth century Ovid’s stories suffer the indignity of being embalmed by the pompiers while the avant-garde sneers at the very idea of painting anything so outmoded”. O interesse recai então em autores como Vergílio124 ou Horácio125.

120 Cf. Sachs (2010: 12-13). 121 Cf. Barrow (2007: 101). 122 Cf. Vance (1997: 155). 123 Cf. Barrow (2007: 101).

124 T. G. Higham, admirador confesso de Ovídio, relativamente ao período vitoriano, disse “Ovid died, for at

least the third time…, and was buried deep under mountains of disparaging argument to make a throne for Virgil” (apud Martindale, 1988: 14).

125 Horácio continua em voga no séc. XIX, com a tradução de W. Y. Sellar ou a de Charles Smart, publicada

em 1891. Excertos das suas obras continuam a acompanhar quadros nas exposições, o que fez por exemplo Edward Poynter, entre 1893 e 1904, em seis dos quadros que expôs na RAA, como refere Barrow (2007: 196).

Vance (1997: 174) defende que Ovídio esteve sempre presente de forma indireta na consciência literária dos românticos e dos vitorianos, mesmo que esta tenha sido construída através de intermediários, sendo um deles o manual escolar126, pelo qual se percebe que a

formação inicial tinha por base Ovídio e a avançada Vergílio.

Outros mediadores são os artistas plásticos (Caravaggio, etc.), os poetas (Shakespeare, etc.), os tradutores (Dryden, etc.) ou os comentadores, que medeiam entre a obra e o espectador/leitor. Todos acabam por interpor um filtro e funcionam como inspiração para a criação de outros objetos de arte.

Em suma, os textos clássicos, no séc. XIX, estão presentes através do sistema público de ensino127 e das edições e traduções promovidas. Além disso, era possível aceder à cultura clássica pelas inúmeras referências presentes nas representações teatrais da época, como

The Tale of Troy, que contavam com colaboradores para a construção dos cenários e dos

textos que conheciam muito bem os textos e os sítios clássicos, como era o caso de George Frederic Watts (1817-1904), Frederic Leighton (1830-1896), Edward Poynter (1836-1919) ou Lawrence Alma-Tadema (1836-1912)128.

Esse gosto pela vida privada e pessoal das personalidades romanas conduziu a um interesse generalizado pela biografia dos autores clássicos (Horácio, Tibulo, Catulo), dando destaque às vidas e amores de cada um, o que permitiu que Ovídio estivesse presente pela sua poesia amorosa e de exílio, como nota Barrow (2007: 190), mas nunca com o sucesso dos séculos anteriores.

Estes reduzidos sucesso e atenção dados a Ovídio continuarão até meados do séc. XX, segundo Martindale (1988: 10-11), devido, primeiramente, a fatores institucionais, na medida em que Ovídio não é um autor que tivesse o mesmo “estatuto” na academia britânica que tinha, por exemplo, Vergílio; em segundo lugar, quando consideramos que a grande qualidade de Ovídio nas Metamorphoses é a “arte de narrar”129, verificamos que, desde o

século passado, tem havido uma reformulação da narrativa e os autores procuraram maneiras mais inventivas de contar histórias. Aliada a esta ideia, surge também o distanciamento da interpretação, isto é, o facto de os leitores estarem afastados do texto e não o conhecerem bem promove uma leitura redutora.

Contudo, este distanciamento não significa inexistência, já que Ziolkowski (2005),

126 Cf. Vance (1997: 154, 168). 127 Llewellyn (1988: 151). 128 Barrow (2007: 166).

129 Essa é a característica do assunto da própria obra, pois, como realça Volk (2010: 65), as Metamorphoses

cobrindo o período de 1912 a 2003, mostra que os poemas e as fabulae de Ovídio estiveram presentes nas artes do séc. XX. Na pintura, são exemplos disso o ciclo Ariadne de Giorgio di Chirico, em 1912, ou os esboços de Picasso para as Metamorphoses, em 1931. Todas as obras contribuíram – e contribuem ainda – para que Ovídio seja lembrado e lido, direta ou indiretamente.