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IV. “LEITURAS” DAS METAMORPHOSES EM J W WATERHOUSE

8. Thisbe (1909)

8.1. Metamorphoses, IV, 55-166

Depois de Penteu ter sido morto por Agave, sua mãe, por ofensa a Baco, no final do livro III (vv. 511-733, com um episódio sobre Acetes, encaixado nos vv. 577-691), o início do livro IV550 mostra Alcítoe, filha de Mínias, a não aceitar os rituais báquicos e a negar que Baco seja filho de Júpiter. No início do livro IV, sabemos então, pelo narrador, que o sacerdote ordenara um festival (vv. 4-5), no qual famulae e dominae (Cf. v. 5) deixariam os seus afazeres para se cobrirem de peles de animais, soltarem o cabelo, porem grinaldas na cabeça e empunharem tirsos frondosos, enquanto invocavam os vários epítetos e feitos de Baco551.

Existe, contudo, um grupo que se recusa a fazê-lo: as filhas de Mínias552, que, por

549 Riley (1851: 126), na sua “Explanation”, refere que o leitor não consegue evitar lembrar-se da narração

adaptada que Shakespeare fez desta história em A Midsummer Night’s Dream, relacionando automaticamente Ovídio com Shakespeare. A importância deste mitema levou Shakespeare a criar uma personagem que personifica o muro na representação de Píramo e Tisbe dentro de A Midsummer Night’s Dream. Para uma relação entre a peça de Shakespeare e as Metamorphoses, vd. Barkan (1986: 255-58, 267-69).

550 Riley (1851: 118-126) traduz os primeiros versos dentro da “Fable I”, que é dedicada a Píramo e Tisbe, e

não separa o mito dos amantes do contexto inicial.

551 Riley (1851: 119) explica os vários epítetos atribuídos a Baco e destaca bimater (Cf. v. 12), que apresenta

como criado por Ovídio para designar Sémele e Júpiter, que o guardou na sua coxa nos últimos meses de gestação, como mães de Baco.

552 Riley (1851: 118) coloca em nota de rodapé os nomes das irmãs de Alcítoe, indicando Plutarco como fonte

(Aristipe e Leucipe) e Eliano (Alcátoe, Leucipe e Aristipe, também chamada Arsínoe). Acrescenta ainda que estas mulheres eram devotadas aos seus maridos e famílias.

devoção a Minerva553, ficam em casa a fiar lã e a tecer554. A fim de aligeirar o trabalho manual, propõem-se as irmãs contar histórias. A primeira, que conhecia muitas, reflete sobre qual devia contar. O narrador dá-nos informações sobre quatro histórias e a respetiva relação com as metamorfoses sofridas, de modo a introduzir as narrativas das Miníades: a primeira é sobre Dércetis da Babilónia555 e o seu corpo coberto de escamas; a segunda é sobre a sua

filha e como ganhou asas; a terceira acerca de uma náiade que transformava os corpos dos homens em peixes (v. 50); e a última como uma árvore qua dava poma alua (v. 51) passou a ter frutos negros, contactu sanguinis (v. 52).

Na passagem entre os quatro mitos, as Miníades comentam as capacidades dos deuses e questionam sempre as de Baco (Cf. v. 273), o que levará a que sejam transformadas em morcegos, no final do episódio (Cf. vv. 407-415).

A miníade acaba por se decidir pela última, porque não é uma fábula vulgar e, desta forma, introduz-se o mito de Píramo e Tisbe (vv. 55-166), cujo enredo evoca o desenrolar do romance antigo556, presente na inocência dos jovens amantes, na oposição ao seu amor, na determinação de fugirem, na separação e aparente morte da heroína.

A apresentação dos amantes faz-se pelo uso de adjetivos, que enfatizam a beleza dos dois jovens da Babilónia557, cidade rodeada por uma muralha feita de tijolos558. O referente a Píramo no grau superlativo relativo de superioridade (iuuenum pulcherrimus, v. 55) coloca-o em destaque. Ficamos a saber que viviam em casas contíguas, circunstância que propiciará uma aproximação dos jovens. Assim, o tempo levou a que o amor entre eles crescesse, o que poderia ter resultado numa boda, não fosse o veto dos pais a este relacionamento. Apesar disso, essa proibição não teve qualquer peso nas decisões de ambos.

A situação é agravada pela inexistência de um cúmplice: por isso, só podiam comunicar

553 Keith (2002: 257) alerta para o facto de, apesar de serem devotas de Minerva, as Miníades só contarem

histórias de amor.

554 Rosati (2002: 276) associa o tecer das Miníades ao tecer histórias em que se entreterão. Assim, tecer

também funciona como aition de narrar.

555 Riley (1851: 120-21) refere que Luciano, ao falar desta divindade, refere ter visto uma estátua na Fenícia,

metade mulher, metade peixe. Ainda nota que este templo fora construído por Semíramis, que não o teria consagrado a Juno, como normalmente assumido, mas a sua mãe, Dércetis. Somos ainda informados de que Atárgatis era outro nome da deusa, que, por causa de um amor ilícito, se teria atirado a um lago, em Áscalon, e aí se teria dado a metamorfose em peixe. Na “Explanation”, no final da “Fable I”, Riley (1851: 125) refere como fontes antigas Diodoro Sículo, Plínio, o Velho, e Heródoto e acrescenta que a origem deste mito resulta de uma afronta feita a Vénus. A deusa teria levado Dércetis a apaixonar-se por um homem mais novo de quem teve um filho, que teria exposto, e ela ter-se-ia afogado. É ainda feita referência à devoção dos sírios.

556 Cf. Keith (2002: 258).

557 A magnificência da cidade foi comprovada por vários escritores, como Heródoto, facto que Riley (1851:

121) anota. Refere que as muralhas tinham 60 milhas de comprimento (c. 96 quilómetros), 87 pés de largura (c. 26 metros) e 350 pés de altura (c. 106 metros). Keith (2002: 256) nota que o contexto urbano atribui um tom mais cosmopolita ao tom elegíaco desta história de amor, sendo também símbolo da sua perdição.

558 Riley (1851: 121) refere que a muralha foi construída por Semíramis e os tijolos eram secados ao sol,

nutuque signis (v. 63), o que leva a que o seu amor, quanto mais escondido, mais aumente.

Deste modo, a paries (v. 66) comum às duas casas, embora barreira que impede o contacto e dificulta a comunicação, permitirá que os dois amantes comuniquem por meio de tenua rima (cf. v. 65), há muito existente. Como só Píramo e Tisbe tinham notado essa fenda na parede, a narradora questiona retoricamente a capacidade infinita de sentir do amor. Os amantes usarão, portanto, essa fissura para enviar blanditiae (v. 70), murmura minima (Cf. v. 70) ou receberem o anhelitus oris (v. 72) de ambos. A oposição espacial é reafirmada pela antítese dos advérbios hinc e illinc (v. 71), associados aos nomes dos amantes.

Em discurso direto, ouvimos as interrogações retóricas dos jovens, que se dirigem à personificada parede, querendo saber o porquê desse obstáculo, que os impede de se unirem

toto corpore (v. 74) e não permite oscula (v. 75). Píramo e Tisbe negam a sua ingratidão e

admitem o auxílio já prestado quando a parede deixa passar as palavras ad amicas aures (v. 77). É desta forma que se despedem já de noite e trocam beijos que não chegam ao outro.

Este afastamento pela noite é contrariado pela união na manhã seguinte e os amantes reúnem-se ad solitum locum (v. 83), para lamentarem a sua sorte, sempre com especial cuidado: murmure paruo (v. 83). Combinam, então, quando for noite, enganar os guardas e tentarem sair das suas casas e da urbe559. Para que não se percam, combinam encontrar-se junto do busto de Nino560, sob a sombra de uma árvore, uma amoreira alta, caracterizada por ser niueis uberrima pomis (v. 89) e junto a uma fonte fresca.

Descreve-se, seguidamente, já noite adiantada, a fuga de Tisbe, que é caracterizada logo no início do verso como callida (v. 93), pois consegue sair sem dar nas vistas. A jovem chega ao túmulo, como combinado, e senta-se debaixo da amoreira. A narração é interrompida para que a narradora comente sentenciosamente que audacem faciebat amor (v. 96), atributo aqui de uma jovem apaixonada. Contudo, esta audácia é imediatamente posta à prova pelo surgimento de uma leoa, que obriga Tisbe a fugir rapidamente. A leoa apresenta a boca ensanguentada de comer e vai saciar a sua sede na fonte. Graças ao luar, Tisbe consegue vê-la aproximar-se, foge obscurum in antrum (v. 100), deixa cair, atrás de si, o véu561. A leoa562 mata a sua sede e, ao regressar ao bosque, despedaça o véu de Tisbe563.

559 A gradação espacial parte da parede, em que dialogam, para a casa e para a cidade que pretendem abandonar. 560 Riley (1851: 122) indica que, de acordo com Diodoro Sículo, o túmulo de Nino, primeiro rei da Babilónia,

tinha dez estádios de comprimento e nove de profundidade, aparentando uma cidadela e ficando a considerável distância de Babilónia.

561 Percebe-se o avanço da ação por meio da posição e encadeamento dos versos 100-101: uidit > fugit; fugit

> reliquit.

562 Keith (2002: 261) observa que o tema dionisíaco em que se enquadram as Miníades e as suas histórias

continua presente por meio do animal de Baco, bem como pela possibilidade de desmembramento e devoração de Tisbe.

Não temos detalhes sobre a fuga de Píramo, mas sabemos que chega ao ponto de encontro e vê vestígios da fera. Em consequência, empalidece com a possibilidade de algo ter acontecido com Tisbe, porque depara com a veste manchada de sangue. Em consequência, Píramo pressupõe que Tisbe está morta, declara que uma só noite perderá os dois amantes. Píramo considera que atraiu Tisbe para um lugar ermo e perigoso e, ainda mais, chegou depois dela. Se ele tivesse chegado primeiro, seria ele a vítima ou poderia ser a segurança da amada. Assim, recorrendo ao uso do imperativo (diuellite, v.113; consumite, v. 114), Píramo dirige- se aos leões564 a quem pede que o devorem, o que seria um ato de cobardia, porque não seria ele a tirar a vida a si próprio, ou seja, desejar a morte é igual a não a executar. No entanto, Píramo acaba por ganhar coragem e suicida-se. O jovem desloca-se para a sombra da amoreira, onde chora e beija a veste que Tisbe deixou cair. Mata-se de seguida com a espada que trazia à cintura e o sangue jorra alto. A comparação é feita com a rutura de um cano de chumbo565, que projeta para longe566 e de forma estridente a água. Desta maneira, o sangue do jovem asperge os frutos da árvore e deixa-os in atram (v. 125); simultaneamente, a raiz, ensopada de sangue, tinge os frutos dos ramos purpureo colore (v. 126), o que explica a origem da cor das amoras.

De seguida, surge Tisbe, que, ainda com medo, se apresenta no local de encontro e procura o amado oculis animoque (v. 129). A sua intenção é contar-lhe os perigos de que escapara. A jovem reconhece o lugar e a árvore, mas fica incertam (v. 132) quando vê a cor dos frutos. Enquanto hesita, Tisbe identifica o corpo de Píramo, tombado numa poça de sangue, e reage da mesma maneira que ele reagira quando vira o seu véu: empalidece mais do que a madeira de buxo, treme horrorizada como o mar quando tocado pela brisa567.

Ao momento de dúvida, segue-se, de imediato, o reconhecimento do amado e Tisbe lamenta-se, bate nos seus braços e abraça o corpo de Píramo, ao mesmo tempo que as suas lágrimas se misturam com o sangue do amado. A jovem babilónia ainda o interpela duas vezes568: na primeira, questiona o porquê daquela decisão; na segunda, na qual Tisbe se

identifica pelo nome, o apelo é para que Píramo, a quem se dirige com um superlativo revelador do muito que o ama (v. 143: carissime), levante uultus iacentes (v. 144). Píramo reconhece o seu próprio nome, abre os olhos, vê-a e volta a fechá-los.

564 A apóstrofe só surge no final do discurso direto, o que mostra o desespero do sujeito.

565 Riley (1851: 123) coloca em rodapé que Vitrúvio identifica três formas para transportar a água: canais de

alvenaria, canos de barro e canos de chumbo. Estes últimos resultavam da sobreposição e soldadura de diferentes folhas. A consequência do desgaste deste tipo de canos é próxima da descrição de Ovídio.

566 Aqui destaca-se a hipérbole presente no final de v. 124 no ar rasgado pelo jorro de água. Martindale (1988:

12) nota o tom patético da imagem, que não prejudica o tom global da trágica história de amor.

567 Esta imagem é também destacada por Riley (1851: 124). 568 A apóstrofe faz-se de forma anafórica nos vv. 142-43.

Pelos indícios que a rodeiam, Tisbe percebe então o que aconteceu, já que vê uestem

suam (v. 147) e ense ebur uacuum (v. 148)569. Seguem-se catorze versos em discurso direto

nos quais a jovem amante começa por reconhecer que o infeliz Píramo morreu pela sua própria mão e por amor. Tisbe admite conseguir uma mão igualmente forte para fazer o mesmo, porque o seu amor é igual ao de Píramo e dele receberá força (v. 150: uires) para desferir o golpe. Assim, morrerá e os outros considerá-la-ão causa comesque (v. 152) do fim de Píramo, não podendo nem a morte separá-los570.

A parte final da intervenção de Tisbe resulta em dois apelos: o primeiro aos familiares de ambos, para que não recusem a sepultura conjunta, pois uniu-os um amor sincero e o derradeiro momento (v. 156: certus amor … hora nouissima); o segundo é feito à árvore, cuja sombra cobre já um corpo, ainda que em breve sejam dois, para que os escuros frutos perpetuem o luto e a infelicidade dos amantes e, desse modo, se perpetue a lembrança do sangue de ambos.

As súplicas da jovem tocaram os deuses e os parentes: os primeiros mantiveram a cor do fruto, que, quando maduro, é ater (v. 165), e os segundos deixaram-nos repousar una in

urna (v. 166). A conclusão do episódio dá-se, no verso 167, com a forma verbal desierat.

Sabemos que, pouco tempo depois, se encetou nova narrativa, desta vez por Leucónoe.