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IV. “LEITURAS” DAS METAMORPHOSES EM J W WATERHOUSE

5. Echo and Narcissus (1903)

5.3. Percurso de um quadro

De grande dimensão (109 cm por 189 cm), assinado e datado no canto inferior direito (J. W. Waterhouse 1903), esta obra foi exposta em 1903, na RAA, com o lote 16, e, mais tarde, na Liverpool Autumn Exhibition, tendo sido então adquirida pela Walker Art Gallery, para a sua coleção permanente, onde se encontra hoje em dia.

Trippi (2002: 169) lembra que, à época, havia uma insistência para que os artistas de Londres expusessem em Liverpool. Waterhouse fez isso ao longo dos anos com a intenção de promoção da sua obra, contudo, só foi adquirida esta tela e por um preço muito inferior ao que estava à venda na RAA: foi comprada por 800 libras, apesar de estar marcada com £1300440. Contudo, o interesse do pintor pode ter sido em estar representado em Liverpool. Existem registos na Walker Art Gallery de correspondência entre o conselho administrativo e Waterhouse tratando da compra, da visita do diretor da galeria, em dezembro de 1903, a fim de concluir a transação, que incluía, invulgarmente para a época como refere Hobson

si derivar etimologicamente do latim medieval affodilus e asphodelos, em grego, o asfódelo, flor que crescia nos prados do mundo inferior.

437 Estas flores também são conhecidas por flores-de-lis, muito recorrentes em brasões relativos à família real

francesa e, normalmente, em cor roxa.

438 Seaton (1995: 180-81).

439 O facto de aparecerem no lado de Narciso cria uma ligação entre as duas margens, ou seja, aquilo que a

água separa, a natureza une.

(1980: 120), os direitos de copyright441.

Em vida de Waterhouse, Echo and Narcissus esteve exposto, em 1907, no Royal

Glasgow Institute of the Fine of Arts e na exposição Contemporary British Artist, na Laing Art Gallery, em Newscastle. A Walker Art Gallery442 comprou os direitos de autor e o

quadro passa a ser muito reproduzido como ilustração de amor não correspondido em várias revistas, enciclopédias, postais, calendários e publicações educativas, totalizando, entre 1904 e 1937, 31 reproduções autorizadas. Esse interesse sofreu com as guerras mundiais, mesmo assim, em 1974, foi autorizada a reprodução a cores de Echo and Narcissus e Hylas

and the Nymphs pela Athena Reproductions443.

A receção da tela foi muito boa na imprensa da época, ao ponto de a revista The Studio a ter incluído nos “really fine achievements”444 da exposição de 1903, considerando que

“Mr Waterhouse, indeed, has not often before touched so high a level, admirable artist as he always is”445. Também The Art Journal a considerou “one of the best examples of

imaginative art which can be found in the Academy”446. Tais críticas mostram como o

prestígio e a qualidade da obra do académico ainda se mantinham em alta, para os quais contribuiu obviamente esta tela. Contudo, em 1909, quando Waterhouse estava a pintar a apanha de flores e Psique, Echo and Narcissus é usado como forma de o criticar, quando o crítico da Athenaeum (1900: 600)447 afirma que o pintor “was overtaken with the Ruskinian idea of truth to nature”.

Na atualidade, é unânime considerar este quadro como um dos mais importantes, expressivos, emblemáticos e conhecidos deste pintor ou, como sintetizou Trippi (2002: 160), “Echo and Narcissus must be counted among Waterhouse’s most beautiful and affecting pictures”.

Hobson (1980: 119) considera que Waterhouse, nesta altura, ainda se mostra capaz de mergulhar no coração do mito grego e apresentá-lo com vivacidade ao espectador. Tal é percetível pela opção feita de representar Eco a par de Narciso, o que mostra não só o conhecimento do mito que o pintor tinha, mas também a preocupação de o divulgar.

Todavia, Hobson (1980: 119) questiona a originalidade de Waterhouse em representar

441 Relativamente à relação entre preço e direitos de reprodução, Hobson (1980: 120) cita Frank Rutter, que,

em 1909, analisa as aquisições feitas em Liverpool no primeiro de uma série de ensaios para The Sport of

Civic Life or Art and the Municipality, no qual se pode ler, sobre Echo and Narcissus, “Few indeed… are at

all proportionate to the artistic value of the works secured”.

442 Cf. Hobson (1980: 89; 188). 443 Cf. Hobson (1980: 120). 444 Apud Hobson (1980: 120/122). 445 Ibidem. 446 Apud Hobson (1989: 859. 447 Apud Trippi (2002: 187).

os dois intervenientes simultaneamente na mesma tela, comparando-a com a obra (fig. 28) com o mesmo título de Solomon J. Solomon (1860-1927), que permitiu que este pintor conseguisse ser eleito Associate of Royal Academy. A tela foi exposta em 1895, no mesmo ano em que Waterhouse é considerado “full Academician” com St. Cecilia (1895). Assim, Waterhouse vira quase de certeza o quadro no qual as duas personagens surgem muito próximas: Eco está completamente focada em Narciso, mas é desprezada por ele, que contempla o seu reflexo, não visível no quadro. Baldry (1896: 2) considera que Solomon, nessa obra, fora mais longe do que nunca na expressão do sentimento e da emoção, ao apresentar um objeto dramático no qual a combinação efetiva de diferentes nuances de sentimentos das personagens indicia tenuemente a situação trágica de ambos. Assim, a composição que Waterhouse faz na sua obra pode ter sido uma reação consciente à interpretação do jovem pintor, como defende Hobson (1980: 120). Por isso, separou física e naturalmente os amantes por meio do lago, mostrando explicitamente o reflexo de Narciso, que acalma o desespero da ninfa e incidindo em íris amarelos em vez dos roxos de Solomon. Waterhouse apresenta a efetiva metamorfose de Narciso nas flores que representou.

Figura 28. Echo and Narcissus (1895) de Solomon J. Solomon448

Óleo sobre tela. The Omsk Mikhail A. Vrubel Museum of Fine Arts©, Rússia.

Riley (1851: 107), na sua “Explanation” da fábula, interpreta a tentativa frustrada de abraço de Narciso como uma forma de advertir contra “many of those pleasures which

448 Capturado http://www.admomsk.ru/web/en/sightseeing/museums/fine-arts-museum-european-art, a

mankind so eagerly pursue”. Nesse sentido, a opção de Waterhouse por este mito estaria relacionada com a preferência vitoriana das relações pessoais discretas e socialmente aceites, pautadas por uma regra de contenção e rigor, que a tela exemplifica pela separação do homem e da mulher.

Por sua vez, Prettejohn et al. (20081: 156) olham para a tela como uma representação

da própria representação, isto é, o reflexo de Narciso pode servir como metáfora para a poderosa atração das imagens miméticas. Nesta linha de leitura, a construção do quadro de Waterhouse exemplificaria uma relação de atração por si mesmo representada pela figura de Narciso, alegoria da atração não correspondida, ou seja, a existência da atração não correspondida seria a base de descodificação desta tela.

Prettejohn (2008: 32) e Trippi (2002: 198) evocam Sketchley (1909: 21-23) e indicam que os assuntos mitológicos da obra de Waterhouse obedecem à ordem enunciada no De

Raptu Proserpinae de Claudiano. A tapeçaria feita pela deusa, no livro I, organiza-se tendo

por base a água449, seguindo-se a terra e finalmente as flores humanas, que Vénus, Diana, Atena e Prosérpina estão a colher, quando a filha de Ceres é raptada pelo tio, Plutão. Tal percurso refletir-se-ia na obra de Waterhouse da seguinte forma: começa, na água, em

Ulysses and the Sirens (1891), avança para Hylas and the Nymphs (1896), já em terra, e

conclui-se em Echo and Narcissus (1903). Prettejohn et al. (20081: 156) acrescentam, também, que o vale coberto de flores da história de Prosérpina, em Claudiano, designadamente narcisos, seria o caminho para os mundos inferiores e que esta flor era querida ao mito de Prosérpina, nomeadamente pelos asfódelos, correspondentes aos narcisos. Esse vale florido surge em Windflowers (1902)450 e aparecem em outras obras de

Waterhouse, igualmente com títulos clássicos, como Boreas (1903) ou Narcissus (1912). Note-se, por fim, que a obra de Claudiano tem por base as Metamorphoses de Ovídio e De Raptu Proserpinae ainda não estaria traduzido no tempo de vida de Waterhouse, o que, como fundamenta Trippi (2002: 198), levaria a que Waterhouse e Sketchley o tivessem lido em latim.

Contudo, as conclusões, advindas de Sketchley, são refutáveis. Por um lado, Waterhouse não precisava de ter lido Claudiano para relacionar o mito de Narciso com Prosérpina, porque essas referências surgem na “Explanation” da tradução de Riley (1851: 106-107), onde evoca a versão de Pausânias do mito de Narciso e da relação deste com a

449 A água é indubitavelmente um elemento indispensável neste mito, pois é por meio dela que Narciso se

conhece e, neste quadro em particular, funciona quer como espelho quer como divisão entre as duas personagens mitológicas.

perda da irmã do jovem Narciso. Riley justifica que Pausânias definia a metamorfose relatada por Ovídio como ficção e considerava que um escritor de hinos pré-homérico, Panfos451, já teria indicado que, aquando do rapto de Prosérpina, “long before the time of

Narcissus, gathered that flower in the fields of Enna [Hena]; and that the same flower was sacred to her”. Além disso, essa associação surge ainda referida por Riley pelo facto de os narcisos nascerem ao pé de sepulturas e jazigos, sendo usados pelas pessoas quando faziam sacrifícios às Fúrias ou Euménides.

Por outro lado, as referências feitas no texto de Claudiano são demasiado breves para justificarem que esta obra tenha sido a referência para a construção desta tela de Waterhouse, já que se lê que as deusas (Vénus, Diana, Atena e Prosérpina) estavam a colher flores no campo e Claudiano faz referências à anémona, ao jacinto e ao narciso, colocando em paralelismo estes dois. É Vénus quem põe em prática o esquema de Júpiter para que Prosérpina seja raptada por Plutão. Assim, Vénus incita as deusas e náiades a colher flores (II, 119-122) e começa pelo símbolo da sua dor: uma anémona, relacionada com Adónis. As deusas e as náiades respondem a esse incentivo e colhem lírios (II, 128), violetas (II, 129), manjerona (II, 129), rosas (II, 130) e flores de alfeneiro (II, 130). É então introduzida a referência a Jacinto, que será comparado com Narciso (II, 131-136)452:

te quoque, flebilibus maerens Hyacinthe figuris, Narcissumque metunt, nunc incluta germina ueris, praestantes olim pueros : tu natus Amyclis, hunc Helicon genuit; te disci perculit error, hunc fontis decepit amor ; te fronte retusa Delius, hunc fracta Cephisos harundine luget.

Também a ti colhem, ó Jacinto, que te afliges com chorosas figuras, e colhem o Narciso, agora ilustres filhos da Primavera, outrora jovens adoráveis. Tu de Amiclas nascido, este pelo Hélicon gerado. A ti derrubou-te o vaguear errante do disco, a este iludiu-o o amor da fonte. Por ti chora Délio, com o espírito embotado, por este Cefiso com a sua cana quebrada.

Como se pode ler, as menções são demasiado breves em relação ao desenvolvimento e fim da figura de Narciso para servirem como origem da obra em questão. Note-se que alguns dos mitos (Vénus e Adónis, Narciso, Apolo e Dafne, Orfeu mas sem Eurídice) presentes na obra de Claudiano estão também nas pinturas de Waterhouse, mas essas alusões não são suficientes para garantir que esta tenha sido a obra de base para o trabalho destes temas. Além disso, existem outros mitos (Ariadne, Circe, Flora e os Zéfiros, Fílis e

451 O facto de Riley conhecer esta referência mostra o seu conhecimento pessoal ou então o acesso a material

bibliográfico que o explique. Assim, o Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology, que só adquire este título em 1849, foi editado por William Smith e começou a ser publicado em 1844, em Londres, surge como uma muito boa hipótese.

Demofonte) cuja base terá sido certamente as obras de Ovídio: Metamorphoses e Fasti. Por fim, Claudiano não retrata o acordo feito entre Ceres e Júpiter quanto à presença de Prosérpina na terra, momento que é recriado por Lord Leighton, em 1891, no seu The

Return of Persephone (óleo sobre tela; 203 x 152 cm; Leeds Art Gallery), que esteve exposto

na Royal Academy of Arts e que Waterhouse certamente conhecia por Leighton ter sido seu professor, presidente da RAA durante o seu período de vida, e porque expôs, em 1891,

Ulysses and the Sirens. Assim, apesar de Leighton ser um classicista extraordinário, a fonte

que escolheu para representar o mito não foi Claudiano, até porque se refere à deusa com o nome grego e não pelo latino, o que nos leva a crer que o discípulo imitaria o mestre recorrendo a obras mais emblemáticas da cultura clássica do que Claudiano.

Sintetizando, Waterhouse não precisaria de ter lido Claudiano para conhecer a relação de Narciso com Prosérpina e é muito pouco provável que tenha sido o excerto de De Raptu

Proserpinae o fundamento da maioria dos quadros de temática mitológica do pintor. Assim,

pode depreender-se que a leitura de Waterhouse terá partido da tradução de Riley (1851). É ainda justo inferir que, pelo contágio de técnica, cor, esquissos e temas que existem entre Echo and Narcissus e outros quadros do pintor, como The Awakening of Adonis (1899- 1900) ou Nymphs finding the Head of Orpheus (1900), Waterhouse tenha contactado com os mesmos textos para produzir estas obras. Deste modo, as Metamorphoses seriam esse texto.

Estas relações de contacto, que Prettejohn et al. (20081: 156) evidenciaram na

composição de Echo and Narcissus, reúnem muitas das preocupações especiais da Waterhouse nesta fase da sua carreira. Por exemplo, a nível de cenário, os rochedos que servem de base a Nymphs finding the Head of Orpheus (1900) já haviam aparecido em

Pandora (1896), têm aproximações com The Siren (c. 1900), são retratados de forma

adaptada em Echo and Narcissus (1903) e surgem exatamente iguais em Psyche Opening

the Golden Box (1903) ou Lamia (1909).

O bosque é um dos temas mais recorrentes na sua pintura, destacando-se Circe

Invidiosa (1892), La Belle Dame Sans Merci (1893), Pandora (1896), The Awakening of Adonis (1899-1900), Nymphs finding the Head of Orpheus (1900), Echo and Narcissus

(1903), Psyche Opening the Golden Box (1903), Lamia (1905), Jason and Medea (1907),

Lamia (1909), The Charmer (1911), ou ‘Listening to my Sweet Pipes’ (1911).

O lago ou o curso de água, que auxilia na criação de uma estrutura de cenário e organização do espaço, surge, por exemplo, em The Lady of Shalott (1888), A Naiad (1893),

(1896), Flora and the Zephyrs (1897), The Awakening of Adonis (1899-1900), Nymphs

finding the Head of Orpheus (1900), Lady Clare (1900), Echo and Narcissus (1903), Psyche Opening the Golden Box (1903), Apolo and Daphne (1908), Lamia (1909), The Charmer

(1911), ‘Listening to my Sweet Pipes’ (1911), ‘I am Half Sick of Shadows’, said the Lady of

Shalott (1915).

O prado aberto, cheio de flores, tem a sua presença, e.g., em La Belle Dame Sans

Merci (1893), Flora and the Zephyrs (1897), Windflowers (1902), Boreas (1903), ‘Gather Ye Rosebuds While Ye May’ (1909), ‘Listening to my Sweet Pipes’ (1911), Narcissus (1912),

no qual uma mulher apanha narcisos do campo, ou A Song of Springtime (1913).

Concluímos, portanto, que houve elementos paisagísticos a que Waterhouse foi fiel ao longo de toda a sua vida. Esta recorrência poderá sugerir uma produção de obra repetitiva, no entanto, é importante salientar que estes são aspetos de paisagem/fundo/cenário e não os assuntos principais das telas, cujo destaque e divulgação advieram de diferentes circunstâncias. Mesmo assim, isso não conduziu à imortalidade o nome de Waterhouse, pois as guerras interpuseram-se. Por exemplo, a falta de reconhecimento público do artista, depois da Segunda Guerra Mundial, nota-se, como sublinha Trippi (2002: 232), pelo facto de o curador da Walker Art Gallery, em Liverpool, pedir informações biográficas do artista a um colega e discípulo de Waterhouse, Herbert Draper.