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IV. “LEITURAS” DAS METAMORPHOSES EM J W WATERHOUSE

6. Jason and Medea (1907)

6.3. Crítica, aquisição,

É nesta altura que as grandes pinturas de grupo dão origem a “meaningful juxtaposition of two figures, repeatedly the couples of the legends: Phyllis and Demophoön,

Jason and Medea and Apollo and Daphne.”

Por Hobson (1980: 189-90) sabemos que o quadro foi exposto na Royal Academy of

Arts em 1907, com o lote 243, juntamente com Phyllis and Demophoon486 (lote 232), pintado em 1906, e Isabella and the Pot of Basil487, hoje por localizar, o primeiro de três quadros inspirados no Decameron de Boccaccio, que já Keats recontara em 1818, tendo o título do poema uma ligeira alteração: Isabella, or The Pot of Basil. Não há indicação de que o quadro tenha sido comprado na exposição, embora a tela tenha sido reproduzida, em 1909, em The Art Journal (1909: 12), com a permissão de Wolf Harris, Esq.

Tanto Phyllis and Demophoon como Jason and Medea são comentados em The Studio (N.º 171, 1907: 29), onde diz que “It is always the sense of beauty that proclaims itself in Mr Waterhouse’s art, making it so definitely attractive. This sense with him is creative rather than interpretative.”488. E, por isso, é ainda evocado o carácter literário da arte do pintor, no

qual as flores, os rostos e as cores das roupas são usados como símbolos para criar uma ideia de beleza, do mesmo modo que é criada pela literatura.

Nesse ideal de beleza, não há lugar, ao longo de toda a obra de Waterhouse, para o excesso emocional, preferindo o pintor a discrição e a tensão psicológica. Por isso, ainda que Prettejohn et al. (20081: 166) identifiquem Medeia como tema comum na arte ocidental principalmente no motivo do filicídio como forma de se vingar da infidelidade de Jasão,

486 Hobson (1980: 189) indica que o quadro pertenceu a H. W. Henderson, foi reproduzido em 1909 no The

Art Journal (número de Natal) e exposto em 1922, na exposição de inverno da RAA, em homenagem a

Waterhouse. Encontra-se hoje perdido.

487 O quadro tinha o lote 78 e o título surge reduzido a Isabella. Disponível em

https://www.royalacademy.org.uk/art-artists/exhibition-catalogue/ra-sec-vol139-1907 (consultado a 14.05.2018).

Waterhouse escolhe retratá-la como experiente feiticeira, sobrinha de Circe, a proteger o homem que a procurou, tal como Circe fizera e o pintor também retratara em Circe Offering

the Cup to Ulysses (1891). Como refere Trippi (2002: 191), “Waterhouse’s audience knew

that Jason proved a lackluster hero who succeeded primarily through the efforts of others” e Medeia tem esse papel facilitador do pseudo-heroísmo de Jasão, que não será um cavalheiro, um homem de honra, uma vez que a trairá e a trocará, provocando a cruel vingança de Medeia. Deste modo, tal como a sua geração, Waterhouse também teria essa visão dupla da Medeia que assassina os filhos e daquela que é abandonada por Jasão, o que a leva a cometer o crime.

Prettejohn et al. (20081: 166) apresentam três possíveis fontes literárias para esta obra:

Metamorphoses, VII; Argonáuticas (III) de Apolónio de Rodes; e The Life and Death of Jason, de William Morris489, publicado em 1867, que reconta na íntegra as Argonáuticas de Apolónio em inglês. Nestas fontes, Medeia vai sozinha para a floresta para misturar uma poção, que protegerá Jasão do touro e do exército, quando ungido, e que a feiticeira leva até ao quarto do guerreiro. Waterhouse combina os dois episódios, com a sua típica e eficaz narrativa pictórica, legível de um vislumbre só, mas psicologicamente complexa.

Nas Argonáuticas de Apolónio, compostas em hexâmetro dactílico, no livro III, Medeia entrega um φάρμακον, dito de Prometeu (v. 845), a Jasão, que é caracterizado como loiro (v. 1017). Medeia instrui-o a fazer uma libação de mel a Hécate490, usando δέπας (v. 1036), um cálice, antes de iniciar as provas. Deveria ainda mergulhar o φάρμακον em água, tirá-lo e untar o corpo (vv. 1042-43). O mesmo deveria fazer à lança, ao escudo e à espada (vv. 1046-47)491. A referência ao brilhante elmo de bronze surge nos vv. 1280-81492. As

relações entre Apolónio e a tela de Waterhouse resumem-se à espada e à lança que Jasão apresenta no quadro, embora não haja um escudo.

No caso de The Life and Death of Jason, de William Morris, composto em decassílabos, as alusões ocorrem a partir do livro VII (1867: 104-117), já depois de Eetes receber Jasão no seu palácio. Assim, ficamos a saber que Medeia é apresentada como loira (p. 106) e, quando dá de beber a Jasão, serve-se de “a rich fair-jewelled cup”. É também a princesa da Cólquida quem apresenta a Jasão os três desafios que terá de enfrentar. Só depois disso, na pág. 107, Medeia é ferida pelo Amor. Depois do banquete dessa noite,

489 Esta possível influência de Morris em Waterhouse carece de fundamento ainda que Hobson (1980: 187) sugira

The Earthly Paradise de Morris como a base literária dos dois quadros que Waterhouse dedicou a Psique.

490 A deusa surgirá, nos versos 1214-15 (cf. Apollonius 1967: 276), com as suas horríveis serpentes, que se

colocarão em círculo, junto dos ramos de um carvalho: πέριξ δέ μιν ἐστεφάνωντο/ σμερδαλέοι δρυΐνοισι μετὰ πτόρθοισι δράκοντες.

491 Cf. Apollonius (1967: 264): πρὸς δὲ καὶ αὐτῷ δουρὶ σάκος πεπαλαγμένον ἔστω/ καὶ ξίφος. 492 Cf. Apollonius (1967: 280): παμφανόωσαν/ χαλκείην πήληκα.

Medeia troca os seus “gold robes” (p. 108) por um “dusky gown”, leva a sua “cutting wood- knife girt” na sua bolsa e afasta-se de barco para um “thick yew wood”. Aí recolheu “mystic herbs” (p. 109) e, iluminada pelo luar, encontra um círculo na erva, atravessado por um ribeiro. Morris narra os procedimentos do ritual, que incluem acender uma fogueira para pôr uma pequena “bowl polished bright,/ Brazen, and wrought with figures black and white” (p. 109) e dirigir uma oração a Hécate Triforme. Pela prece sabemos que Medeia se apresenta descalça, com a sua coroa de princesa, de cabelo solto. Depois de ouvida por Hécate, de mexer a poção, verte-a num “fair gemmed phial wrought of gold” (p. 112), que deixa arrefecer, e leva-a de volta para o palácio. Aí vai ao quarto de Jasão, onde lhe confessa a sua paixão, Jasão promete casar-se com Medeia, recebe o unguento e, antes de avançar para os desafios, unta-se como instruído (p. 116), enquanto Medeia vai para o seu quarto e adormece.

Destes aspetos referidos, poderá ter contribuído para o quadro de Waterhouse a taça com joias que é descrita antes de Medeia indicar os desafios a Jasão. De resto, são mais os elementos que não têm consequência, como uma Medeia loira, a roupa escura, o frasco do unguento de ouro, etc., do que aqueles que se verificam na tela de Waterhouse. Assim, mais nos parece que as Metamorphoses são a fonte principal de Waterhouse, que, por conveniência e representação das suas ideias, as foi ajustando ao resultado que vemos em

Jason and Medea.

O interesse no mundo do oculto, da feitiçaria, da alquimia, já referido em relação a Orfeu e aos rituais órficos, é evidente em Waterhouse. No entanto, prevalece o tema do amor não correspondido ou atraiçoado, ainda mais recorrente na sua obra. Na sua análise, Trippi (2002: 191) enfatiza em Jason and Medea o tema da feiticeira que encanta o guerreiro, como acontece em La Belle Dame Sans Merci (1893) ou em Lamia (1905) e, assim, apresenta a mulher a perverter o homem.

Esta não é uma visão distante de outras representações presentes, por exemplo, em

Hylas and the Nymphs (1896), o que nos leva a ponderar se a intenção de Waterhouse não

seria evidenciar o lado negativo da figura masculina, a dependência da figura feminina para o sucesso ou o poder de encantamento que a mulher tem. Note-se que, no outro par, Phyllis

and Demophoön, obra exibida também em 1907, o homem trai Fílis, que se suicidará e será

transformada em amendoeira, e, no quadro do ano seguinte, Apollo and Daphne, Waterhouse evidenciará a crítica à figura masculina, que persegue a figura feminina até ao limite.