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soberania dos Estados por conta do reconhecimento internacional dos Direitos Humanos; e o incremento das medidas de cooperação jurídica internacional. Questões como as migrações internacionais permeiam essas duas áreas.

2.2 As migrações internacionais como dimensão das relações humanas transnacionalizadas

As migrações internacionais, que se constituem de uma das principais questões sociojurídicas que caracterizam o século XXI (MARTINI, 2005; REIS, 2004; VENTURA; ILLES, 2012; SASSEN, 2006; 2007a; 2007b), representam, na atualidade, um fenômeno de vastas proporções, com impactos e reflexos diversos: sociais, políticos, econômicos e também jurídicos. Podemos afirmar – apenas para uma ideia aproximada da dimensão do fenômeno, que 244 milhões de pessoas encontram-se envolvidas no processo de migrações internacionais. Dados de 2015, do relatório5 da Organização das Nações Unidas (ONU) para as Migrações, revelam que houve, em 15 anos, um incremento de 41% com relação ao número de migrantes (ONU, 2015). Os aspectos sociais desse fenômeno são notórios, simplificadamente simbolizados por contingentes populacionais, que, descontentes com suas condições materiais de vida, ou em face das situações de contundente violação aos Direitos Humanos em seu locus de origem, buscam, em outros destinos, o resgate de sua dignidade.

Assim, as migrações internacionais, sejam estas espontâneas ou forçadas (refúgio), são importante dimensão das relações humanas que se transnacionalizam. O estudo das migrações e dos direitos dos migrantes, do ponto de vista dos Direitos Humanos e da regulamentação interna dos Estados, constitui-se numa importante foco de atenção do Direito Internacional, dentro de uma especialização que podemos vir a chamar no futuro de "Direito Migratório".

Essa temática, por sua própria natureza, perpassa o estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, do Direito Internacional dos Refugiados, do Direito Internacional Público. De acordo com a doutrina francesa6, sendo objeto de estudo detalhado pelo Direito Internacional Privado.

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Disponível em http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/index.shtml, acesso realizado em 20 de janeiro de 2018.

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Nesta linha, Dolinger (2000) e Ramos (2018) consideram o estudo da nacionalidade e da condição jurídica migratória como objeto típico do Direito Internacional Privado.

Que direitos possuem os não nacionais? O que diferencia os direitos dos refugiados dos direitos dos migrantes? Qual a definição jurídica para refugiado? Como ocorre no Brasil a adequação das normativas internas7 à regulamentação internacional8? Como se dá a interação entre essas regras? Em que consiste o princípio do non-refoulement9 aplicável aos refugiados? O que configura uma pessoa como merecedora do reconhecimento do status de refugiado?

E os migrantes chamados "espontâneos" ou "voluntários", que restrições sofrem? Quais as hipóteses de recepção no território dos Estados? Que tipo de autorização será possível? Qual o objetivo da migração? Que direitos terão na sua permanência? Quais as hipóteses de serem compelidos a sair compulsoriamente do território do Estado onde fixaram residência? Qual o tratamento especial destinado a grupos de migrantes, em face de sua nacionalidade, decorrente de tratados internacionais específicos10 ou de regulamentação interna própria11? Estas, dentre outras, são algumas das questões que são abordadas pelo Direito Internacional e configuram expressão da transnacionalização das relações humanas.

A suficiência do estudo do Direito Internacional, relativamente ao direito dos refugiados e ao direito dos migrantes, é essencial para que estes sujeitos tenham seus direitos reconhecidos e respeitados. Como consequência estes poderão minimizar situações de discriminação e ter o direito à identidade cultural preservada, e garantido o direito de acesso à justiça e ao devido processo legal.

As políticas migratórias brasileiras estiveram centradas nos interesses do Estado. Assim, a abertura ou recrudescimento de fronteiras para os migrantes, com adoção de regras migratórias mais rígidas ou mais flexíveis, atenderam, no decorrer da história brasileira, aos interesses de povoação e de mão de obra (BRASIL, 1890; 1911; 1930; 1938; 1969; 1981).

Em movimentos anteriores de pesquisa (CORRÊA, 2005; 2009; CORRÊA; BATISTA, 2015), chamávamos a atenção para a necessidade de substituição da anterior normativa migratória: o Estatuto do Estrangeiro, em face de sua inadequação com a ordem constitucional estabelecida. O Brasil tem atualmente uma nova lei migratória, que provocou a

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Lei n. 9474/1997 e resoluções do Conselho Nacional para os Refugiados (CONARE)

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Estatuto dos Refugiados de 1951 e Declaração de Cartagena de 1984 adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de Novembro de 1984.

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Princípio da não devolução consagrado pelo artigo 33 do Estatuto dos Refugiados de 1951: "Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas."

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Por exemplo, citamos o tratamento reservado ao português nos termos do Tratado da Amizade entre Brasil e Portugal (2000) e as consequências da implementação do acordo de residência do Mercosul.

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Como é o caso dos haitianos, que passaram ter uma autorização de residência especialmente construída para eles, através de um visto chamado de humanitário.

mudança de paradigma nessa seara. O Direito a migrar passou a ser reconhecido como um Direito Humano. A nova lei, criada em 201712, junto com seu regulamento13, constitui-se em amplo conjunto de regras jurídicas, que conforma em torno de 500 artigos. Somam-se a estes os tratados internacionais, os regramentos e portarias específicas. Essas normativas transformam o estudo desta área, complexificando-a. Regras migratórias centradas nos direitos dos indivíduos migrantes são uma mudança significativa de paradigma e um alinhamento dessa matéria à ordem constitucional e aos tratados internacionais de Direitos Humanos com o quais o Estado brasileiro está comprometido.

A sobrevida que teve o Estatuto do Estrangeiro decorre da ausência de conhecimento de causa, de levantamento de bandeiras jurídicas sérias e sobretudo do baixo impacto produzido no poder judiciário por conta da permanência de normas inadequadas, que não superariam o controle de constitucionalidade (adequação da norma à Constituição) e de convencionalidade (adequação da norma às convenções internacionais).

No entanto, a criação de uma nova lei migratória não extingue as polêmicas. Em razão do seu regulamento, ser, em muitos aspectos, contrário ao próprio texto legal e a todo arcabouço de proteção já construído.

As questões relacionadas aos direitos dos migrantes e refugiados, como discutimos, são uma importante dimensão da transnacionalidade das relações humanas. A ausência de atenção pela Educação Jurídica ou a superficialidade de sua abordagem poderá levar ao desconhecimento de direitos e ao comprometimento do acesso aos Direitos Humanos por parte desses sujeitos.

2.3 O Direito Internacional dos Direitos Humanos enquanto limitador da soberania estatal

Em um mundo em constante e contínua mutação, são incontáveis e distintos os argumentos que buscam demonstrar a transformação presente na concepção de cidadania. Este entendimento provém da conclusão de que uma nova ordem está sendo estabelecida, que afasta o Estado do século XXI daquele pensado pela Revolução Francesa. Uma importante mudança refere-se à debilitação do princípio da territorialidade.

Os Direitos Humanos começam a se confrontar com a ideia de cidadania baseada na nação e com a noção de fronteira. Conforme Sassen (2007a, p. 129), os Direitos Humanos,

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Lei 13445/2017

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reconhecidos internacionalmente, constituem, atualmente, uma força que pode socavar a exclusiva autoridade do Estado sobre seus cidadãos e, por isso, contribuir para a transformação do sistema interestatal e da ordem legal internacional.

Pertencer a um Estado-Nação deixa de ser a única base para a realização dos direitos, pois todos os residentes, sendo já reconhecidos como cidadãos ou não, podem reclamar por seus Direitos Humanos (SASSEN, 2007a). Esses direitos começam a se contrapor com a ideia de cidadania, desenvolvida a partir da revolução francesa e disseminada em face da influência do Código Civil francês. No contexto contemporâneo a cidadania novamente transforma-se; não se afirma mais sob as características próprias e decorrentes de um Estado-Nação delimitado por fronteiras.

Como consequência disso, vivemos um momento em que a situação jurídica do indivíduo como migrante passa a desvincular-se do conceito de Estado,em função da desvinculação da cidadania ao conceito de nacionalidade. Não há mais que se falar na condição de migrante para barrar direitos de cidadão.

Nesse cenário há de se considerar que a concepção contemporânea de Direitos Humanos, limitou a soberania dos Estados. Esse entendimento foi introduzido com a aprovação da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e ampliada por meio de mais de cem tratados internacionais14, em âmbito universal e regional.

Ao longo do século XX de trágicas contradições, do divórcio entre a sabedoria e o conhecimento especializado, da antinomia entre o domínio das ciências e o descontrole dos impulsos humanos, das oscilações entre avanços e retrocessos, gradualmente se transformou a função do direito internacional, como instrumental jurídico já não só de regulação como sobretudo de libertação. O direito internacional tradicional, vigente no início do século, marcava-se pelo voluntarismo estatal ilimitado (TRINDADE, 2002a, p. 30).

Os tratados de Direitos Humanos contribuíram para reconhecer, no olhar de Mello (2001) e Trindade (2002a; 2002b), a personalidade jurídica internacional dos indivíduos.

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Ilustrativamente, podemos relacionar alguns desses tratados de Direitos Humanos,: Pacto de Direitos Civis e Políticos (1966); Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (1966) também de 1966; Convenção para Prevenção e repressão ao Crime de Genocídio (1948); Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados(1951); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de discriminação contra a Mulher (1979), Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (1984), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), Convenção contra Corrupção (2003), Convenção do Direito das Pessoas Portadoras de Deficiência (2007), Convenção Interamericana de Direitos Humanos (1969), Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a tortura (1985), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994), Convenção sobre Direito dos trabalhadores Migrantes e Membros de sua família (1990), Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999).

Estes, como destinatários das regras de proteção aos Direitos Humanos, são sujeitos aptos à postulação em plano internacional, contra o Estado, em razão das possíveis violações aos Direitos Humanos que tiverem sido perpretadas pelo próprio Estado, por meio de seus agentes, ou por particulares. Essas violações poderão provocar responsabilidade internacional do Estado, sendo capaz de gerar, inclusive, o dever de indenizar, reparar e modificar seu direito interno (RAMOS, 2002; TRINDADE, 2002b; MELLO, 2001; TRAVIESSO, 1996; 1998; PINTO, 2004).

Os tratados de Direitos Humanos criam órgãos15 de monitoramento e controle, encarregados de interpretar os seus dispositivos, de receber as denúncias pelas possíveis violações, e os relatórios dos Estados sobre a forma como progressivamente têm atendido aos direitos consagrados. Esses órgãos podem ter, inclusive, a conformação de um Tribunal Internacional, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos (RAMOS, 2002; TRINDADE, 2002b; TRAVIESSO, 1996; PINTO, 2004).

Os Estados, ao ratificarem ou aderirem a tratados internacionais de Direitos Humanos, além de se submeterem aos órgãos de monitoramento e controle, passam a ter o compromisso de adequar seu direito interno16 e de orientar suas políticas para a consecução dos objetivos neste previstos. Os Estados também têm o dever de respeitar os direitos neste consagrados, em relação a todos os indivíduos que estejam sob sua jurisdição17.

Assim, dentre as dimensões desses direitos, ganha especial relevância para este trabalho investigativo a igualdade, a não discriminação, a tolerância, o acesso à justiça18 e o

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São exemplo desses órgãos o Comitê de Direitos Humanos da ONU criado pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966 e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em âmbito interamericano dentro da estrutura da Organização dos Estados Americanos.

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O Pacto de São José da Costa Rica estabelece em seu artigo 2, o dever dos Estados de adotar disposições de direito interno: "Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades."

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O Pacto de São José da Costa Rica assim determina em seu artigo 1º: "Artigo 1 Obrigação de respeitar os direitos

1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

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O Pacto de São José da Costa Rica (PSJCR) em seu artigo 8 e 25 e o Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos (PSDCP) em seus artigos 2 e 14 estabelecem:

Art. 8º (PSJCR). Garantias judiciais:

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

devido processo legal. Esses direitos são essenciais para o enfoque das relações humanas transnacionalizadas.

Se "os direitos humanos são o conjunto de processos de luta pela dignidade humana" (FLORES, 2009, p. 213), independentemente da posição que se defenda, da linha teórica a que se filie, não há como negar o acesso à justiça como um dos principais Direitos Humanos, pois precisa haver o pleno exercício desse direito, para que os demais sejam reconhecidos. Dessa forma, o acesso à justiça, tanto no plano internacional, perante os órgãos de monitoramento e controle dos tratados de Direitos Humanos, quanto no direito interno, devem ser garantidos. Nessa medida, destaca-se a importância da cooperação jurídica internacional como forma de possibilitar o acesso à justiça e ao devido processo legal para aqueles cujas vidas transnacionalizam-se.

O reconhecimento internacional dos Direitos Humanos, por limitar os poderes do Estado (SASSEN, 2006; 2007a), pode influenciar a forma como no, Campo Recontextualizador Oficial (BERNSTEIN, 1993; 1996; 1998), por meio da construção das Diretrizes Curriculares Nacionais, dimensiona-se o Direito Internacional. A preocupação com o caráter que este componente curricular pode vir a ter, com a sua recontextualização em

Art. 25 (PSJCR). Proteção judicial:

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados Partes comprometem-se: a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Art. 2 (PSDCP)

1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.

2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a tomar as providências necessárias com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto.

3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a:

a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetra por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais;

b) Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;

c) Garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso.

Art. 14 (PSDCP)

práticas pedagógicas críticas, pode, sim, ter influência na forma como, no decorrer da história do currículo dos cursos de Direito no Brasil, dá-se a inserção dessa disciplina.