• Nenhum resultado encontrado

3 A EDUCAÇÃO JURÍDICA E A ABORDAGEM DAS RELAÇÕES HUMANAS

4.1 Os antecedentes desta pesquisa: um estudo imagético

As origens desta pesquisa remontam ao projeto de pesquisa “Imagens da Justiça, Currículo e Pedagogia Jurídica”. Esta teve como foco principal o estudo das imagens da justiça produzidas por estudantes matriculados em três cursos de Direito do Sul do Brasil, como elementos de análise dos respectivos currículos. As imagens da justiça foram coletadas mediante a técnica de construção de desenhos, junto aos estudantes ingressantes e concluintes dos cursos de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Dentre as motivações que inspiraram a realização daquele projeto de pesquisa, estava a constatação de que há necessidade de repensar a formação dos profissionais do Direito, tendo em vista a percepção de sua limitação para resolução de múltiplos e complexos problemas sociais. Na contemporaneidade, nesse mesmo eixo, insere-se a presente tese, pois dentre os complexos processos sociais que mobilizam a Educação Jurídica, identifica os relacionados com o aparelhamento da Educação Jurídica para lidar com as relações humanas cada vez mais transnacionalizadas.

Com essa motivação, e sensibilizada pelo extenso volume de imagens da justiça produzidas pelos ingressantes e concluintes das universidades pesquisadas, identificamos, dentre estas, algumas imagens que apresentavam relação com o tema da presente tese. Isso

levou-nos a efetuar um estudo sobre as imagens produzidas pelos estudantes, focalizando nossa análise sobre as produções criadas pelos estudantes do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), procurando identificar se, ao construírem suas Imagens da Justiça, tais estudantes estabeleciam alguma relação com as relações humanas transnacionalizadas. Assim, dentre estas, foram selecionadas duas imagens, produzidas, respectivamente, por um estudante ingressante e por um concluinte.

O estudo das imagens foi realizado de acordo com o método documentário de interpretação, com base em Ralf Bohnsack (2007; 2010), desenvolvendo-se em três etapas: pré-iconográfica, iconográfica e iconológica. De acordo com essa metodologia, as imagens foram analisadas com base na reconstrução de suas estruturas formais, com a finalidade de perceber o sentido particular de cada uma, seguindo-se uma análise comparativa entre a produzida pelo estudante ingressante e a do concluinte.

Bohnsack (2007) afirma que as imagens dão-nos elementos para compreender os espaços de experiências de seus produtores. Pois, destas, poderemos extrair importantes elementos, que nos permitirão compreender o meio de inserção e as vivências de seus autores. Ele afirma:

Na medida em que conseguimos – com a ajuda da estrutura formal, entre outros – apreender a imagem como um sistema singular ou auto-referente, nos é aberto também um caminho que leva à compreensão da especificidade do espaço de experiências conjuntivas dos produtores de imagens, por exemplo,ao sistema familiar e seus habitus familiares específicos (BOHNSACK, 2007, p. 300).

No geral, é possível afirmar que as imagens produzidas pelo grupo de estudantes ingressantes estão repletas de aspectos culturais e sociais, que estão impregnados no imaginário desses estudantes. Já as efetuadas pelos alunos concluintes propiciam elementos para análise de suas vivências no currículo do curso, tendo em vista suas trajetórias acadêmicas naquele contexto específico (LEITE, 2014).

Esses resultados confluem com os dados de pesquisa de Leite (2014), que, ao analisar imagens da justiça produzidas por estudantes ingressantes brasileiros e angolanos, já havia constatado que "as perspectivas do mundo exterior presentes nos desenhos sugerem que estes estão voltados para o contexto sociocultural e econômico de seus países" (LEITE, 2014, p. 52).

As duas imagens, selecionadas para os fins específicos deste trabalho, são apresentadas a seguir. A Figura 2 foi produzida por estudante ingressante (primeira fase do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina); e a Figura 3, por estudante concluinte (décima fase do mesmo curso e universidade).

Figura 2 – Desenho produzido por ingressante da UFSC

Fonte: Pesquisa Imagens da Justiça, Currículo e Educação Jurídica Aluno da Primeira Fase do Curso de Direito da UFSC.

Em uma análise pré-iconográfica40(PANOFSKY, 2011), percebe-se que a estudante utilizou a diagonal superior da folha para construir seu desenho. Nesse espaço, encontramos 18 personagens, que parecem ser figuras humanas. Estas aparentam ser do sexo masculino. São representadas apenas por linhas, sem volume, parecendo ser o corpo, braços, pernas e cabeça, com olhos e boca, parecendo esboçar satisfação. Os personagens aparecem circundados por uma linha, onde encontramos o que parece retratar o mapa do Brasil. A autora do desenho, usou elementos textuais na construção da imagem: dentro do mapa, aparecem retângulos contendo as palavras Estado, moradia, trabalho e educação. A palavra Estado está centralizada, onde está localizada Brasília. Entre as palavras e as pessoas, existem linhas que as ligam.

40

Para Panofsky (2011), a análise das imagens deve seguir três níveis de interpretação que devem ser articulados, o primeiro é o chamado pré-iconográfico, que tem intenção de identificar o significado natural de uma obra, são analisados os objetos e eventos representados por traços, cores e volumes.

Ao realizarmos a análise iconográfica41 (PANOFSKY, 2011), verificamos que os personagens estão retratados com o objetivo de construir redes de relação, por meio das palavras que têm uma ligação com cada região do País.

Na análise iconológica42 (PANOFSKY, 2011), percebemos que a acadêmica retrata a inter-relação entre o Estado, central e forte (localizado em Brasília), e os indivíduos das diversas regiões do País, sendo este promotor da Justiça e ofertante dos direitos (moradia, trabalho, educação). Aparece no desenho a retratação, por meio de setas, que os indivíduos alcançam a felicidade pela ideia de justiça social. Essa ideia de justiça, no entanto, encontrasse circunscrita ao território nacional.

Figura 3 – Desenho produzido por concluinte da UFSC

Fonte: Pesquisa Imagens da Justiça, Currículo e Educação Jurídica Aluno da Décima Fase do Curso de Direito da UFSC

Já a imagem 3, produzida por um aluno concluinte, permite-nos, na etapa pré- iconográfica (PANOFSKY, 2011), observar que, na construção de seu desenho, o estudante

41

Para Panofsky (2011), o nível iconográfico pressupõe identificar o significado da obra para o senso comum.

42

usou a diagonal superior esquerda da folha, utilizando-se apenas de um pequeno espaço daquele possibilitado para a realização do desenho.

As linhas do desenho aparentam ter sido reforçadas, pois estão bem marcadas. O desenho retrata o que parece ser um círculo, contendo, em seu interior, formas irregulares, separadas umas das outras; e no seu exterior, acompanhando toda a sua dimensão, desenhos de 29 figuras humanas, sem rosto, que parecem ser do sexo masculino e parecem estar de mãos dadas.

Na análise iconográfica (PANOFSKY, 2011), inferimos que o círculo representa o planeta Terra; as imagens interiores, os diversos continentes, Estados e oceanos, circundados por seres humanos que parecem estar de mãos dadas. No desenho, as pessoas não t¬m rostos; não demonstram emoções. A representação das pessoas parece indicar uma identificação de gênero.

Em uma análise iconológica (PANOFSKY, 2011), as figuras humanas retratadas no exterior do planeta, de mãos dadas, aludem à ideia de solidariedade universal. Também estão desenhadas fora das dimensões estatais representadas, o que nos faz pensar que seus direitos estão desvinculados da dimensão territorial dos Estados, em uma referência aos Direitos Humanos universais. A aparente neutralidade de emoções pode indicar falta de acesso aos seus direitos, ou ausência de conhecimento acerca deles.

A partir da análise dos desenhos, constatou-se que a ideia de justiça revelada pela imagem produzida pelo ingressante circunscreve-se ao território nacional. Percebemos que essa se reporta à restrita concepção de Direito que se afirma sob as características próprias e decorrentes de um Estado construído com base em conceitos como território, soberania e nacionalidade.

Por outro lado, a imagem produzida pelo estudante concluinte, em que pese possa ser considerada tímida, tendo em conta o espaço que ocupa na folha destinada ao desenho, revela uma concepção mais global do Direito e da justiça. A produção sugere uma orientação curricular que supera uma concepção territorialista do Direito.

Os resultados das análises dessas imagens, cotejados com o Projeto Pedagógico do Curso, são capazes de contribuir com elementos para a compreensão do processo de recontextualização curricular do Direito Internacional.

O Projeto Pedagógico do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) traz, de forma expressa, a preocupação com uma formação jurídica multidimensional.

Formação essa que seja apta a dar conta das demandas de um mundo globalizado, que exigem dos bacharéis em direito saberes integrativos não mais compartimentalizados.

Trata-se de um projeto de curso apto a responder às necessidades de uma formação jurídica multidimensional, da qual resultem profissionais preparados para o desempenho das funções que podem ser ocupadas pelos bacharéis em Direito, em especial na esfera pública, mas também na esfera privada, num mundo cujos processos de globalização passam a exigir dos bacharéis saberes não compartimentalizados, mas sim integrativos de vários outros saberes (UFSC, 2004, p. 17).

Apesar dos objetivos traçados por meio de seu Projeto Pedagógico de Curso, a análise das ementas dos componentes curriculares obrigatórios, não evidencia a integração entre saberes, pelo contrário, prevalece, a manutenção, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de uma concepção de currículo nomeada por Bernstein (1996) como “currículo de coleção”. Nessa forma de organização, as fronteiras são nítidas entre os diversos componentes curriculares, tendo em vista que os conteúdos transmitidos são isolados entre si.

Podemos aferir, a partir da concepção de Bernstein, que, quando a classificação entre as categorias discursivas do currículo é forte (coleção), os conteúdos estão separados por meio de fronteiras visíveis. Quando a classificação é fraca (integração), o isolamento entre os conteúdos é atenuado. A análise das ementas do currículo do curso de Direito da UFSC parece apresentar, portanto, uma classificação forte no que se refere ao grau de manutenção das fronteiras entre os componentes curriculares, conforme procuraremos explicar a seguir.

Acerca da internacionalização do Direito e a transnacionalização das relações humanas, foram identificados, dentro dos 57 componentes curriculares obrigatórios, que estes temas aparece transversalmente em apenas cinco destes. Essa constatação surge com base na análise das ementas de todos os componentes curriculares, mediante a busca pela categoria "internacional". Esta é identificada nas ementas dos seguintes componentes curriculares: na segunda fase, em Teoria das Relações Internacionais; na terceira, em Direito Internacional; na quinta fase, em Hermenêutica Jurídica; na sexta, em Direito Coletivo do Trabalho; e na oitava, em Direito Ambiental.

Tabela 12 - UFSC - Componentes Curriculares Obrigatórios

Fase Componente Curricular Obrigatório

2ª fase Teoria das Relações Internacionais

3ª fase Direito Internacional

5ª fase Hermenêutica Jurídica

6ª fase Direito Coletivo do Trabalho

8ª fase Direito Ambiental

Fonte: Corrêa (2018). Com base em UFSC, PPC, 2004.

No rol de disciplinas optativas, a categoria "internacional" aparece em: "Arbitragem", "Direito do Comércio Internacional", "Direito Internacional Privado", "Direito Aquaviário II", "Direito Desportivo", "Direito Internacional Econômico". Os componentes curriculares optativos de "Direito Aquaviário I", "Direito da Integração" e "Direitos Humanos" (abordam temas relacionados). Já as disciplinas optativas "Direito dos Animais" e "Tópicos Especiais de Direito Material "(Liberdade de Expressão e Liberdade de Religião) e "Liberdade de Expressão" apresentam referência a direito estrangeiro e/ou direito comparado.

Tabela 13 - UFSC - Componentes Curriculares optativos

Componente curricular Categoria "internacional" Categorias conexas :

"estrangeiro", "direito comparado" Arbitragem X Direito do Comércio Internacional X Direito Aquaviário I X Direito Aquaviário II X Direito Desportivo X

Direito Internacional Econômico X

Direito Internacional Privado X

Direito da Integração X

Direitos Humanos X

Direito dos Animais X

Tópicos Especiais de Direito Material

(Liberdade de Expressão e e Liberdade de Religião)

X

Liberdade de Expressão X

Fonte: Corrêa (2018). Com Base em UFSC, PPC, 2004

Para averiguar as condições que possibilitam a aparente transversalização do ensino do Direito, buscamos os possíveis vínculos existentes entre a graduação e a pós-graduação. Constatamos que o curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC) possui, como uma das áreas de concentração: "Direito e Relações Internacionais".

De acordo com o Projeto Pedagógico do Curso de graduação em Direito, "a integração entre a Pós-Graduação e a Graduação é plena" (UFSC, PPC, 2004). Justifica-se tal afirmativa pela referência de que todos os docentes do Programa de Pós-Graduação lecionam regularmente na graduação; de que os mestrandos e doutorandos atuam junto ao curso de graduação. O PPC traz a constatação de que "dentre os professores efetivos, a grande maioria dos Mestres e Doutores obtiveram seus títulos junto aos programas da própria UFSC". (UFSC, PPC, 2004).

As relações da pós-graduação com a graduação podem justificar a presença de disciplinas optativas que contemplam a internacionalização do Direito. No entanto, percebemos que, nas ementas dos componentes curriculares obrigatórios, como "Direito Civil", "Direito Penal", "Direito Empresarial", "Direito Processual" e "Direito Tributário", não há menção às categorias "internacional", "estrangeiro" e "direito comparado", o que indica uma abordagem territorialista nesses componentes curriculares.

Observamos que, em face da flexibilização curricular com a inserção de diversas disciplinas optativas que possuem vínculo com a transnacionalização das relações humanas, o estudante pode concluir seu curso com uma formação internacionalista do Direito, o que parece ser o caso do produtor da imagem (Figura 3); ou com uma visão restrita, tendo em vista que não são obrigatórios os estudos de componentes curriculares como Direitos Humanos, Direito Internacional Privado e Direito da Integração.

Com base na análise das ementas dos componentes curriculares, percebemos inicialmente que o estudo do Direito nas disciplinas tradicionais, que não as vinculadas ao Direito Internacional, afasta-se das questões jurídicas com vínculos com outros Estados. Essa postura pode indicar uma concepção de direito eminentemente territorialista, em contraste com os objetivos expressos no Projeto Pedagógico do Curso.

Instigados por estes resultados, e percebendo a necessidade de aprofundar as análises resolvemos desenvolver um estudo comparativo entre Universidades Públicas integrantes do Sistema Federal de Ensino, sobre a forma como recontextualizam o ensino do Direito Internacional e como enfrentam as questões jurídicas decorrentes das relações humanas transnacionalizadas.