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4. A PERCEPÇÃO DE ESCRITURÁRIOS SOBRE O EMPREGO BANCÁRIO E

4.4 As mudanças da década de 1990

Ao serem inquiridos sobre a década de 1990, os entrevistados descrevem-na como um período de intensas mudanças e de adaptações a um novo ambiente político e econômico – de eleições diretas, de “Collor” e “FHC”, de fim da inflação e de Neoliberalismo.

João chama esse momento de transição de “grande virada”, a partir da qual a empresa foi obrigada a realizar serviços que outrora eram realizados, sobretudo, pelos bancos privados. “Então, o X teve que começar a se adaptar, ele começou a fazer aplicações no over-night, então ele entrou para competir de igual para igual com os outros bancos.” (João).

Durante a época em que o perfil social da empresa começou a ser questionado, parece ter havido uma maior pressão em reforçar a lógica econômica, no sentido do cálculo utilitário em função do lucro, a exemplo da lógica que rege a empresa privada. Assim, João pondera que “foi uma fase de transição que o X não se encontrava, não sabia o que queria. E isso daí de ser banco comercial ou atuar mais na área comercial, isso daí muda de acordo

com o que muda a cabeça pensante do X”. Vale lembrar que se tratava da época em que o banco público foi associado ao “mamute”, diferenciando-se do banco privado, considerado um exemplo a ser seguido em termos de estrutura, eficiência e eficácia (O MAMUTE..., 1992).

Como forma de implementar essa mudança, ex- administradores de bancos privados passaram a atuar como administradores do banco público. Segundo Mário, esses administradores foram contratados durante a gestão Collor de Mello “para acabar com os ‘marajás’; então, para cortar de vez. Nós tivemos muitas perdas que permanecem até hoje, que eu procuro não esquecer, e um incremento das atividades bancárias”. Perdas essas cuja incidência vai além dos quase 98% de perdas salariais, incluindo também os direitos que foram suprimidos quando do surgimento dos novos agentes denominados Técnicos Bancários.

Num período em que os bancos privados passaram a figurar como modelo para os bancos públicos, temos o que Mário chama de “bradescalização”, conforme abaixo:

Hoje nós temos uma bradescalização, vamos assim dizer, uma privatização do relacionamento. É claro que não é ainda assim como o banco privado, mas em muitos lugares, muitos gerentes vestiram essa camisa e eles são verdadeiros gerentes Bradesco. Quando se relacionam com o empregado. Isso existe hoje no X, nas agências. (Mário)

Bradescalização refere-se, portanto, ao processo de re- formatação das relações de trabalho no banco analisado, tendo como paradigma o modelo do banco privado Bradesco, considerado como sendo um dos piores modelos do ponto de vista dos trabalhadores para esse entrevistado. Vale destacar que esse fenômeno, em certo sentido, parece remeter ao que Ritzer (2008) chama de McDonaldização da sociedade (McDonaldization of society), processo pelo qual se busca criar burocracias mais previsíveis, eficazes e seguras em termos de resultados, cujo ícone é a rede de fast-food McDonald’s.

Como resultado dessas mudanças sintetizadas sob o termo Bradescalização, muitos administradores “botaram as mangas de fora no sentido de baratear os custos das agências” (Mário). Para atingir esse fim,

ainda segundo Mário, lançou-se mão da terceirização, da admissão de estagiários e outros trabalhadores cujos custos trariam menos impacto para o resultado final das agências, chegando, no limite, à situação relatada: “Então, o bancário mais antigo pedia transferência para uma agência, por exemplo, e dificilmente ele era aceito. Aos gerentes, importava ter bancários a um custo menor.”. Como resultado desse processo:

Nós tivemos uma redução do período de atendimento bancário e redução do quadro de funcionário de uma forma geral. O quadro chegou a ser reduzido a pouco mais de 45 mil bancários. Mas houve um grande incremento na terceirização. Um número muito grande de terceirizados e de estagiários. Então o quadro total chegava a quase cem mil bancários, mas a maior parte terceirizado. (Mário)

É dentro desse contexto que esse entrevistado define a década de 1990 como:

um período de extrema aridez. Um deserto! A imagem que mais vem à minha mente é a de um período de deserto, de aridez nas relações. (...) Foi um período de reivindicações não atendidas, reajuste zero. Era difícil para a categoria bancária como um todo e também para nós do X. Foi um período de muitas perdas, não só em termos de índices, mas também de direitos. De admissão de bancários com direitos diminuídos em relação aos bancários que existiam no banco anteriormente. De criação de castas, assim, vamos dizer. Um processo que continua até hoje...

Nessa mesma direção, Vagner caracteriza a década de 1990 como um período “pesado” e Adão, por sua vez, a classifica como “o fim da época de ouro”, marcada pela ascensão de Fernando Collor, pelas demissões, pelas greves e também pela “caça aos marajás” (Adão).

Adão considera como “época de ouro” o período que termina com os primeiros anos da década de 1990, definido como “uma época que o pessoal era mais respeitado, tinha um salário melhor. De lá para cá, em todos os sentidos, as perspectivas não são melhores. Até porque, contra a globalização, o que se espera?”.

Rosa também define os anos 1990 como “uma época tenebrosa”, de desvalorização dos trabalhadores. Período de demissões e de reestruturação da área em que trabalhava. Descreve como foi vivenciar aquele momento:

Eu fiquei, assim, na fase que acabou a habitação que a gente teve que cada um procurar um cantinho; a turma se dispersou, ficou todo mundo magoado: “pô, mas como é que o banco termina um negócio assim, sem mais nem menos?”, é, “a gente não é nada. Nós somos só uma matrícula. Começaram a passar uma relação assim: vai ter prioridade, quem é casado e com filho vai ter prioridade para ficar na cidade, depois quem é casado e sem filho e por último quem é solteiro, entendeu? Quem é solteiro não apita nada, vai para onde a gente mandar. Então, a gente ficou, assim, bem traumatizado. Eu era solteira sem filho naquela época. Eles iam me mandar lá para a Conchinchina. Eu falei, eu sou a última da lista. Hoje eu acho que há um pouco mais de respeito. Pelo menos porque eu estou aqui no RH. Naquela época eu não estava. Quando a gente está no RH, eu pelo menos, da minha parte eu sinto que o X tem mais respeito com a gente. Esse RH 0837 aí caiu por terra. Foi uma época tenebrosa. Eu

não sei se todos os demitidos foram recontratados. Realmente disso eu não tenho conhecimento, mas das demissões que houveram, a gente sabe de muitas que voltaram atrás, porque é um absurdo existir um instrumento desse. O gerente olhava para sua cara e dizia, “você não serve para mim!”, e usava o RH 008. Quer dizer, todo mundo vivia em pânico e não é assim que funciona. (Rosa)

Isaac, vale lembrar, foi um dos 2.500 empregados demitidos durante o governo Collor (ENTULHOS..., 2010). Para ele, a década de 1990 é definida como “trágica” para o bancário em geral e, em particular, para o bancário de empresa pública. Momento de “desvalorização não só em termos financeiros”, em que “os empregados tanto do Banco do Brasil quanto do X tiveram uma queda terrível até no conceito”. Essa afirmação sugere uma deterioração ampla do emprego bancário público, que parece ter afetado dois dos pilares do tripé destacado pelos Escriturários ao tratarem de seu ingresso no X, quais sejam: o salário e o status.

Em temos do processo de desvalorização financeira, esse entrevistado destaca que, embora esse processo tenha se iniciado no governo Fernando Collor, ele se intensificou no governo Fernando Henrique Cardoso. Dessa forma, pondera que o governo do PSDB “desmoralizou o funcionário público ao ponto de ficarmos oito anos sem um centavo de aumento nos dissídios coletivos”. Acrescenta ainda que, naquela época, em lugar de aumento salarial, oferecia-se abono salarial, que não era incorporado ao salário. Por se tratar de “muito dinheiro”, os empregados, iludidos, aceitavam a troca. Para Isaac, essa é uma prática ainda vigente no setor bancário.

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Alguns entrevistados destacaram os resultados das mudanças em favor do banco. Vagner afirma ter havido “melhorias” para a empresa. Maria destaca ter havido crescimento, o qual é relacionado com o fato de os empregados estarem ficando “cada vez mais loucos para dar conta do trabalho” (Maria). Também Mário ressalta o crescimento, relacionado a um “incremento nos ganhos” (Mário), advindo da introdução de práticas comerciais que até então não eram usuais no banco, tais como a venda de produtos.

Em meio às percepções e aos fatos já citados, os entrevistados, ao avaliarem a década de 1990, também destacaram:

• os processos de enxugamento;

• as perdas de direitos e o arrocho salarial; • o aumento da pressão sobre o trabalhador; • as fusões e quebras no setor;

• o forte movimento sindical e as greves “fervorosas”.

Interessante destacar que alguns dos entrevistados, ao serem indagados sobre os motivos das mudanças ocorridas em relação ao trabalho bancário, apontam para um contexto maior, ou seja, para um contexto que extrapola o banco. Nesse sentido, as mudanças são vistas como um movimento adaptativo, seja ao próprio mundo, porque “mudou o mundo. O mundo não é mais estanque” (Vagner); seja à Globalização (Maria, Mário, Adão, Vagner), “até porque, contra a Globalização, o que se espera?”; ou ao Neoliberalismo (Adão). No tocante a essa questão, os entrevistados apresentaram, de forma geral, um sentimento de impotência e de inevitabilidade, como expresso, por exemplo, na fala de Vagner:

Olha, eu não falo se ela [a mudança] é boa ou ruim, eu falo que ela é necessária. São mudanças necessárias, que não tem como evitar. E por mais que você esperneie e tal, [por mais] que [você] vai defender o seu corporativismo, chega um momento em que muda. Porque a mudança é contínua. A mudança ela vem mesmo. De uma forma ou de outra ela vem e você tem que se adaptar a ela. Não tem outro caminho... Ou você cai fora. Vem outra mudança aí? Vem! E daí? Você tem que se adaptar.

A mudança, assim, está posta, não cabendo questionar suas determinações e seus efeitos sobre os trabalhadores. Ao sujeito isolado resta apenas a adaptação funcional às novas imposições do sistema. O não

ajustamento assume um caráter de fraqueza do indivíduo, incapaz de atender ao imperativo de adaptação. O enfrentamento ou questionamento das mudanças é caracterizado como uma atitude infantil (o espernear de uma criança) ou corporativista, por seu caráter supostamente não realista. Em última análise, percebemos aqui um processo discursivo de legitimação das mudanças.

Vale ainda destacar que, embora a década de 1990 tenha sido um momento de transição, de “bradescalização das relações” e de mudanças no perfil do banco, a lógica política parece não ter sido completamente substituída por uma lógica econômica, ao menos para João, sobretudo quando este leva em conta os fatos e acontecimentos ocorridos na alta hierarquia. Assim, em certo sentido, parece ter havido uma constante tensão entre essas duas lógicas. Dessa forma, ao destacar que a empresa continuou a cumprir o papel de “cabide de emprego”, lembra-nos que

Toda a vez que muda o governo, muda toda a diretoria. Sem contar que quando o Fernando Henrique saiu do poder. O Banco X tinha um presidente, um vice-presidente e várias diretorias. E quando ele estava para sair, ele transformou todos os diretores em vice- presidentes.