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As mutações em relação à norma na modernidade: Desformalização,

André Berten no prefácio à obra coordenada por De Munk e Verhoeven (1997) problematiza a proposta teórica de uma mutação estrutural em relação à norma sugerindo ser esta uma das mudanças maiores da evolução da modernidade. Criticando a relação à norma assente na formalização, refere que assistimos a uma progressiva desformalização dos universos normativos com consequências ao nível dos sentidos das normas sociais, das relações que os indivíduos estabelecem com as mesmas e salienta a exigência de se repensar, neste contexto, a questão da construção dos laços sociais. Em jogo está também para este autor o estatuto teórico do conhecimento sociológico.

Do ponto de vista de uma sociologia jurídica, ponto de vista central na proposta teórica avançada, a desformalização compreende-se em oposição ao esquema clássico da relação à lei em que o sentido das normas é pressuposto como claramente definido à priori, à semelhança do paradigma sociológico de inspiração Durkheimiana, presente nas propostas teóricas da sociologia dita clássica, quer do próprio Durkheim, quer do estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons, quer da visão sociológica da sociologia clássica proposta por Nisbet. Nesta representação social da sociologia parte-se do princípio que os actores assumem e interiorizam os julgamentos de valor predominantes no seu meio social e que os modelos culturais e os sistemas de sentido preexistem e orientam o comportamento dos indivíduos. Os paradigmas jurídicos e sociológicos dominantes são assim postos em causa quer do ponto de vista empírico, quer do ponto de vista teórico (De Munck e Verhoeven, 1997:6).

Do ponto de vista empírico, assiste-se ao surgimento de condutas e de atitudes que não se deixam compreender a partir de esquemas clássicos. Surgem modalidades novas de coordenação da acção, modos relativamente inéditos de resolução de conflitos e novas montagens institucionais marcadamente heterodoxas que põem em causa os pressupostos da abordagem normativa tradicional. Do ponto de vista teórico e sociológico caminhamos progressivamente para novas formas de relação à norma caracterizadas pela desformalização que os autores fazem questão de distinguir dos meros processos de desregulação do social. Para André Berten uma sociedade desregulada não pode existir. A desregulação é ela mesmo fruto de uma regulação social

55 e política e aquilo para que chama a atenção a crítica da formalização das normas sociais e a ideia de desformalização é precisamente a emergência progressiva de novas formas de regulação social que já não são mais meramente impostas de cima para baixo pelas instâncias de produção normativa estatal.

Segundo Berten (1997:6) de entre as evoluções que permitem compreender a obsolescência progressiva do paradigma normativo clássico, o fenómeno central é o da pluralização das ordens normativas. O pluralismo das normas de coordenação da acção, normas que devem orientar e estruturar a vida económica, social, política e jurídica nas sociedades pós-industriais levanta um dos problemas maiores das políticas de regulação. O pluralismo torna complexa a acção colectiva. Do ponto de vista da coordenação da acção, é necessário desde logo abandonar a representação do mundo que fornece o quadro geral do que há ou não a fazer e, em consequência, a questão da coordenação é reenviada para os próprios actores. Segundo Berten (idem: 7) estes descobrem-se cada vez mais como cooperantes pragmáticos, partilhando de maneira estratégica, pontual ou durável, um ou mais projectos parcialmente comuns. Em tempos de desformalização dos universos normativos o que prevalece é a pluralidade dos quadros de referência da experiência subjectiva e o que é actualmente percebido e vivido pelos actores que circulam nos diversos cenários da vida social é a pluralidade irredutível dos modelos culturais (idem:7). A pluralidade de mundos e as múltiplas versões do mundo social traz consigo associados novos problemas do ponto de vista da coordenação da acção a muitos (ibidem:7). Este pluralismo generalizado no tecido social está intimamente ligado ao processo de desformalização. A incerteza e a indeterminação das regras normativas obrigam necessariamente a abandonar as referências tradicionais na relação às normas e a fazer os actores adoptar uma conduta reflexiva, a procurar formas de transacção a inventar no terreno e de se submeter a uma elaboração construtiva e intersubjectiva das orientações da acção. Enquanto o formalismo só é possível nas situações de normatividade evidente e clara, ele estilhaça nas situações de incerteza. A norma passa a ser a desformalização.

A incerteza resulta assim necessariamente do pluralismo normativo pois este torna evidente a contingência das normas. O pluralismo faz estilhaçar o quadro estreito das interpretações unívocas, alarga os horizontes e abala o carácter fixista da norma, a sua aparente eternidade, a sua essência e imutabilidade. A norma passa agora a ser compreendida como um processo, como o resultado de compromissos políticos e sociais

56 intersubjectivos, variáveis no espaço e no tempo. O pluralismo prepara, deste ponto de vista, o caminho para a procedimentalização da norma.

Quanto à procedimentalização André Berten começa por assinalar os limites da teoria do agir comunicacional de Habermas e sublinha pelo contrário que a pesquisa das formas procedimentais de produção de normas e de resolução de conflitos implica, paradoxalmente, um certo formalismo.

Segundo Berten:

“O índex formal é deste ponto de vista insuficiente para orientar as condutas (…) o que mudou profundamente é a “relação à norma”, o mesmo é dizer a capacidade reflexiva tomada pelos indivíduos face às diversas ordens normativas com as quais são confrontados” (ibidem:11).

Esta capacidade reflexiva deve permitir dar razão dos comportamentos, de os avaliar e de os mudar eventualmente. Enfim, é preciso sublinhar que se a norma cessou de ser imperativa e altiva (imposta a partir de cima), a transformação da relação à norma não se efectua na solidão dos “egos transcendentais”, mas na incerteza e indecidibilidade das comunicações intersubjectivas. As normas adquirem então uma dimensão cognitiva (ibidem:11). Num contexto de informação limitada, elas apresentam-se como as formas possíveis de aprendizagem em situação de incerteza. Elas fazem apelo às competências reflexivas dos actores. É necessário insistir sobre o potencial reflexivo que contém esta pluralização das referências normativas. Segundo Berten (ibidem:11) a pluralização das referências normativas obriga frequentemente a explicitar a “teoria do mundo” que é implícita na submissão aos conjuntos normativos tradicionais. Por exemplo, se temos que coordenar diversos mundos, é necessário, praticamente, construir mundos comuns mais largos, mais diversificados, mais heterogéneos, mas ao mesmo tempo mais universais, mais gerais. Ora esta operação faz aparecer de maneira retrospectiva que os nossos mundos comuns são já mundos híbridos, mundos heterogéneos. A relação às normas pode com efeito ser de parte a parte uma relação conflitual ou apenas parcialmente coerente. Seguindo Berten (1997) podemos dizer que a situação pós- moderna manifesta à luz do dia a ausência da força constrangente de todas as normas, quaisquer que elas sejam. A procedimentalização cognitiva abre um relevo ao mesmo tempo praxeológico na resolução das incertezas da acção colectiva e metodológica ou

57 epistemológica nas mutações que ela impõe à análise sociológica. De Munck e Verhoeven (1997:13-14) propõem-se abordar as transformações da modernidade a partir das relações à norma. O foco do seu interesse principal centra-se assim na construção dos dispositivos de produção normativa. Para estes autores não se trata de atribuir uma qualquer “causalidade em última instância” às normatividades do social, mas de dar centralidade a esta perspectiva nas mutações que atravessam as sociedades modernas e contemporâneas. Não são, portanto, os factores de ordem política, económica ou tecnológica que são postos aqui em relevo mas sim a decifração das mutações em relação à norma que se considera estar no centro de uma das maiores transformações das sociedades actuais. Os conceitos centrais que orientam a discussão das mutações em relação à norma na modernidade são os conceitos de “desformalização”, “des-

substancialização” e de “procedimentalização”. A “desformalização” da norma não significa qualquer desaparecimento da influência da esfera das normatividades. Nenhuma sociedade pode existir sem normas e sem regras. Destaca-se o progressivo abandono do ideal formalista que estruturou de forma hegemónica a relação à norma na modernidade. Ideal este assente em três características principais. No ideal de relação à norma típico do formalismo a acção social deve ser guiada por um conjunto de regras estabelecidas a priori, formando entre elas um código de conduta coerente que prevê todas as situações possíveis. Uma segunda característica importante do formalismo é que este supõe um funcionamento hierárquico da norma. A norma produz-se e controla- se a partir do exterior recorrendo a mecanismos de tipo autoritário e a sua aplicação é tida como não exigindo qualquer esforço reflexivo por parte dos actores na sua apropriação. Por último, a racionalidade formalista é equacionada como funcionando de forma binária encerrando o mundo em antinomias supostamente claras. Categorizações tais como privado/público, exterior/interior, norma/real são eminentemente fundadoras da ordem social (ibidem:16). Quanto à “des-substancialização” ela caracteriza a perca progressiva de importância na estruturação das normas da racionalidade substancial. Neste modelo de racionalidade, à semelhança do modelo de racionalidade formal, a norma é também suposta existir ex-ante, independentemente do esforço de construção dos actores na produção da mesma. Contudo, ao contrário do modelo formalista a norma não existe aqui sob a forma de um código de regras abstractas, mas sim sob uma forma viva e concreta, desde logo em estado latente nas práticas sociais. O controlo normativo não passa exclusivamente pelas autoridades externas aos actores, ele é também interiorizado sob a forma de disposições e de motivações pessoais e colectivas.

58 A autoridade, neste modelo de racionalidade, não depende simplesmente da hierarquia formal mas é objecto de reconhecimento comunitário. Por último, a razão substancial recusa a mera estruturação formal das antinomias tão cara ao modelo formalista. De Munck e Verhoeven (1997) dão-nos como exemplo o binómio Estado/Sociedade Civil tão caro a este último modelo e que na lógica da razão substancial seria ultrapassado por uma totalidade mais englobante e subsumido no conceito de comunidade (ibidem:16). Estes dois modelos de racionalidade, formal e substancial estruturaram de forma dominante a relação à norma na modernidade. Eles já não permitem dar conta de um número significativo de transformações da relação à norma das sociedades contemporâneas. A uma tendência crescente de desformalização e de des- substancialização das normatividades sociais associa-se um espaço de crescimento progressivo do modelo procedimental de racionalidade. Neste terceiro modelo não se supõe a existência de uma norma construída aprioristicamente. Entende-se pelo contrário, que é no curso da acção que a norma se define. Os dispositivos de controlo são pensados fora da concepção Durkheimiana do constrangimento exterior, os controlos assentam numa lógica horizontal não hierárquica e em fluxos comunicacionais que permitem um ajustamento interaccional permanente. O modo de estruturação das normas sociais e das categorias da acção social é irredutivelmente construtivista (ibidem:17). É este modelo racional-negociado que se demarca dos outros modelos de racionalidade que marcaram o desenvolvimento da modernidade. São os modos de fabricação do social que se alteram profundamente na contemporaneidade. O conceito de procedimentalização ganha agora centralidade analítica.

1.8. Problematizando a procedimentalização: Polissemia, complexidade e