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Sinopse 1 – Os modos individuados de relação à Iniciativa Novas

O vai e vem constante entre as existências individuais dos nossos entrevistados e as dimensões societais em que os mesmos estão emersos permitiu-nos encontrar diferentes modos individuados de relação à Iniciativa Novas Oportunidades. Um primeiro código em análise em torno da relação à identidade profissional subjectivamente percebida permitiu-nos perceber uma oposição entre, por um lado, aqueles que estão ligados ao exercício do oficio de formador de forma secundarizada e por outro lado, os que têm uma relação à prática da educação e formação de adultos que marca de forma central as suas identidades profissionais. Para os primeiros, a formação aparece sobre a forma do

“complemento”, de um “acréscimo”, do “part-time” ou mesmo do “escape” a uma outra actividade ocupacional considerada a sua verdadeira “profissão”, para os segundos a formação de adultos aparece como central na sua relação à ocupação. Dentro destes últimos, para alguns, o programa de políticas públicas “Novas Oportunidades” foi decisivo no processo de fabricação de si. Os cursos EFA e o trabalho nos Centros Novas Oportunidades foram essenciais não só do ponto de vista da sua construção como profissionais mas também no seu processo de individuação. O fecho dos Centros Novas Oportunidades por decreto governamental é sentido por alguns entrevistados com um sentimento de crise do ponto de vista da sua identidade social e profissional. Outros ainda, vivem a formação de adultos no âmbito da Iniciativa Novas Oportunidades como uma modalidade formativa entre outras e a sua relação subjectiva à ocupação de formador é feita ao mundo social da formação de forma mais abrangente. A análise dos dados empíricos permitiu ainda a constatação de uma relação à identidade profissional

165 sobre a forma da incerteza e da ambiguidade e por outro lado, uma relação à identidade profissional centrada em certezas solidificadas. Esta incerteza pode estar associada a uma identidade “projecto” que depende da existência ou não de projectos de inserção profissional futuros no mundo social da formação mas pode também estar dependente das suas múltiplas inserções simultâneas que estão na base da produção social de identidades híbridas. Pode estar ainda associada ao frágil reconhecimento societal do mundo social da formação e à sua dependência face aos investimentos nacionais e europeus das políticas públicas de educação e formação de adultos. Uma forte retracção no investimento público compromete a continuidade da fabricação da sua identidade sócio-profissional podendo inclusivamente inverter brutalmente a fabricação societal do seu processo de individuação. O sistema de sentidos associados à certeza de si do ponto de vista profissional, em minoria na amostra do nosso estudo, aparece sobretudo nas representações dos técnicos de RVCC com vinculação contratual aos CNO e nos peritos que exercem outras actividades profissionais estabilizadas e que secundarizam a sua participação na acção pública do trabalho de formar. Outras formas individuadas de estar ligado à Iniciativa Novas Oportunidades remetem para a relação dos formadores e dos técnicos à pertença ou não às instituições para quem trabalham. Foi possível constatar uma oposição forte entre os formadores da “casa” e os formadores de “fora” remetendo o primeiro modelo para os formadores “internos” que manifestam uma relação de pertença às entidades a que estão ligados sobre a forma da “fusão” e o segundo modelo para os formadores “externos” cuja ligação às entidades se faz sob a forma da “independência”. As identidades individuais no primeiro caso fundem-se com as identidades colectivamente construídas organizacionalmente sobre a forma do

“enraizamento”. No segundo caso as identidades individuais no trabalho constroem-se através da distância e do “desligamento” face às pertenças organizacionais. As pertenças dos formadores segundo o modelo da “fusão” estão associadas à ideia de

“permanência”. A história da organização cruza-se de forma intensa com a vida de trabalho dos indivíduos. O modelo da “independência” está associado à ideia de

“transição”. As organizações de formação tornam-se lugares de passagem entre projectos e são lugares a que se pode não mais voltar. Para uma minoria dos formadores entrevistados a sua ligação às entidades faz-se, portanto, sobre uma forma “sólida”. O espaço da formação chega a ser sentido como uma “segunda casa” senão mesmo como

“uma primeira casa” que marcou o trabalho de toda uma vida. Para a maioria são as ligações “líquidas” aquelas que caracterizam a sua relação às entidades. Trata-se de

166 fazer, desfazer e recompor laços com actores, organizações e recursos à medida das mutações constantes e profundas dos mundos sociais da formação. Os múltiplos modos de individuação face à Iniciativa Novas Oportunidades podem ser também compreendidos a partir dos modos de envolvimento na medida por parte dos técnicos que têm a responsabilidade de a implementar. Aparece assim uma oposição entre o modo de envolvimento sobre a figura do “mercenário” e o modo de envolvimento à maneira do “missionário”. Os primeiros não estacionam muito tempo no espaço da formação e são portadores de uma elevada mobilidade. Têm um fraco nível de envolvimento e de participação nos dispositivos EFA. Pouca disponibilidade para assumir um compromisso intenso e duradouro com o projecto que assumiram. A formação EFA é uma passagem rápida e intermitente entre os múltiplos projectos que assumem em simultâneo. Movem-se por motivações materiais e prevalece a lógica do interesse. Os segundos têm um forte envolvimento e uma activa participação nos cursos EFA e nos processos de RVCC. Dispõem da máxima disponibilidade para as necessidades pedagógicas do projecto. Prevalece a lógica do compromisso interiorizado sobre a forma de uma missão. Para estes últimos não são os meros interesses materiais aquilo que verdadeiramente os faz mover no mundo social da formação mas o projecto que assumiram é vivido sob a forma da “paixão”. O código que incide sobre a análise da condição face ao trabalho permitiu ainda desenhar três modelos culturais que remetem para três modos individuados de relação à iniciativa. O primeiro modelo associado a uma condição laboral sob a forma de uma instalação “estável” percebida de forma confortável. O serviço de formação que se presta no âmbito das “Novas

Oportunidades” é um complemento remuneratório interessante a uma profissão outra onde se usufrui de um vínculo laboral estabilizado ou o próprio trabalho de formação é realizado para organizações estatais sob a forma de uma vinculação definitiva. Neste modelo predomina o emprego protegido com os respectivos direitos de propriedade social (Castel e Haroche, 2001) e esta é uma situação que estes formadores procuram manter e prolongar. O segundo modelo cultural remete para um modo de ligação à medida sobre a forma da instalação “instável”. Neste modelo a condição face ao trabalho está dependente do mercado dos projectos que condiciona não só as trajectórias individuais dos técnicos e dos formadores como também a própria sobrevivência das organizações a que estão ligados e está ainda dependente das políticas nacionais e europeias de financiamento às políticas de formação. Secando a torneira do financiamento europeu é a própria identidade sócio-profissional que estoira em

167 migalhas. Este é um modelo onde reina uma incerteza face ao futuro condicionado pela capacidade da organização a que se está ligado de se fazer existir. O terceiro modelo remete para um modo individuado de relação ao mercado de trabalho da formação sob a forma da precariedade flexível ou da precariedade total. É o reino da instalação na instabilidade e do emprego sem direitos. Salta-se intermitentemente de projecto em projecto sem garantias de continuidade. É preciso ser “flexível”, “adaptável”,

“disponível”. As novas lógicas de funcionamento do capitalismo e as próprias exigências do Novo Espírito do Capitalismo (Boltanski e Chiapello, 1999) a isso obrigam. Uma outra forma individuada pela qual os técnicos se apropriam diferencialmente da Iniciativa Novas Oportunidades remete para os diferentes modos de relação à pedagogia. O material empírico permitiu a construção de dois sistemas de sentidos opostos que põem em confronto um modo escolar de educar com um modo não escolar de educar. No primeiro modelo a experiência de vida dos aprendentes fica à porta da escola. No segundo modelo as experiências de vida dos beneficiários que frequentam a medida são o material nuclear a partir do qual todo o processo educativo se desenrola. Trata-se para usar a feliz expressão de Quintas (2008) a propósito da construção curricular dos cursos EFA de pôr a “vida no currículo” e o “currículo na

vida” e promover um processo de formação assente nas competências de que os adultos são portadores. No modo escolar de educar valoriza-se a transmissão de conteúdos

“escolares”, dá-se prioridade ao conhecimento teórico e à abstracção, os formadores são encarados como donos de um saber que devem distribuir aos formandos encarados estes como meros recipientes sobre quem se despeja esse mesmo saber. Predomina o modo de ensinar à maneira da “escola”. Na designação etnometodológica de alguns dos entrevistados estes são os “formadores-professores”, não se adaptaram à formação de adultos e escolarizam um modelo educativo que dizem não dever ser escolarizado. No caso do modo não escolar de educar é privilegiada uma abordagem pelas competências80. Trata-se de reconhecer, validar e certificar competências em detrimento da mera transmissão de conhecimento escolar. Reconhece-se o lugar e a importância das aprendizagens formais, não formais e informais que os indivíduos adquiriram nos diversos contextos de socialização onde circularam. São sobrevalorizadas as

80 Para a compreensão do conceito de competência a partir de uma abordagem multidisciplinar

recomendamos a leitura da tese de doutoramento de Pires (2005:257). A distinção entre o paradigma da qualificação e o paradigma da competência é clarificada, por exemplo, em Canário (2000:45). Para se perceber como a “vulgata da competência” se foi impondo com cada vez mais força no mundo educativo importada do mundo do trabalho e da empresa consulte-se a obra de Dubar (2006:98).

168 aprendizagens “práticas” e subvalorizadas as “teóricas”. Os formadores não recorrem a um modo de trabalho pedagógico meramente transmissivo e são considerados verdadeiros suportes de um caminho autónomo que os destinatários das “Novas

Oportunidades” devem fazer por si próprios. A desescolarização dos modos de educar é central neste modelo. Nestes dispositivos de educação de adultos “não se ensina como

na escola”. Não ignorando o papel das aprendizagens formais e portanto, o papel da escola nas sociedades contemporâneas o caminho apontado faz-se de certa forma no sentido da proposta de Illich (1971) da valorização de uma “sociedade sem escola”. Este modelo centrado no modo não escolar de educar é claro nas representações da maior parte dos formadores entrevistados. Trata-se de reconhecer que há mais vida para além da escola. Estes já não são “formadores-professores”, estes são pois nas suas representações os verdadeiros formadores de adultos. Por fim, os múltiplos modos individuados de enfrentar os desafios das “Novas Oportunidades” permitiram ainda constatar dois sistemas de sentidos opostos em torno das temporalidades e da intensidade dos laços sociais estabelecidos na ligação dos técnicos à medida. Um primeiro modelo que remete para uma ligação temporal longa e um intensidade forte na ligação ao projecto EFA, é o caso dos formadores de “longa duração” e “alta

intensidade” no estabelecimento de laços sociais quer com outros colegas técnicos de educação quer com os destinatários e um segundo modelo que remete para os formadores de “curta duração” e “baixa intensidade” de ligação ao projecto, no caso dos formadores que têm apenas tempos “ocasionais” ou “intermitentes” com as acções em que participam. Enquanto os técnicos e formadores enquadrados no primeiro modelo acompanham em “permanência” e com ligações sociais fortes o trabalho que desenvolvem no âmbito da Iniciativa permitindo-lhes isso uma visão holística dos projectos em que participam; no caso específico do segundo modelo a duração curta do seu contacto com a Iniciativa e as ligações sociais fracas apenas lhes permitem uma visão parcelarizada desses mesmos projectos. A compreensão das diferentes temporalidades de ligação à Iniciativa Novas Oportunidades é essencial ao entendimento dos modos de apropriação da acção pública. As temporalidades difractam-se diferencialmente pelos diferentes posicionamentos dos técnicos face à iniciativa.

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6. Modos de representação dos beneficiários, provações e gratificações dos