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Mercenários e Missionários

A isotopia sobre os modos de envolvimento no modelo de formação EFA permite a construção de dois sistemas de sentidos opostos em relação à forma como os formadores se “engajam” no trabalho de formação. O modo de envolvimento sobre o modo “Mercenário” diz-nos que estamos perante um formador que opera na sua prática quotidiana com um modus operandi mais perto do formador “tradicional” cujas características são diferentes do Formador EFA. É um formador com elevada mobilidade que “vai dar formação e vai embora”, não fica, portanto, no espaço da formação o tempo que se considera que “seria necessário” para um tipo de envolvimento mais intenso conforme ao que é entendido como a exigência de um curso

143 EFA. É um formador que tem dificuldade de participação nas dinâmicas da equipa pedagógica pois que “não partilha, não discute e não se interessa”. Tem dificuldade em fazer actividades articuladas com as diferentes áreas de formação. Tem dificuldade em reunir com a restante equipa formativa pois não demonstra muita disponibilidade para isso. A sua presença nas reuniões, quando ocorre, é sentida sobre a forma da obrigatoriedade. Não revela interesse e motivação para participar activamente no projecto de formação. Tem pouca disponibilidade para assumir o “compromisso” que exige um projecto com a envergadura e a dimensão de um curso de Educação e Formação de Adultos. É alguém que revela um “espírito mercenário”, ou seja, é

“alguém que está ali só porque aquilo é pago a X à hora”. É alguém que cumpre o seu serviço de formador sem uma implicação para além das obrigações “mundanas”. Cumpre a sua função, sem a exigência de uma implicação sobre a forma da “paixão”. O modo de envolvimento sobre o modo “Missionário” por sua vez diz-nos que “o

formador EFA tem ou deve ter algumas características diferentes do formador tradicional”, não é um formador como todos os outros, tem as suas especificidades e particularidades. Não é um formador de elevada mobilidade, que “vai dar formação e

vai embora” revelando um baixo nível de envolvimento. É um formador que não tem dificuldade de participação no projecto EFA uma vez que “partilha, discute e interessa-

se”. Não tem dificuldades em fazer actividades em articulação com as diferentes áreas de formação em torno da proposta do “tema de vida”. Não tem dificuldade em reunir com a equipa formativa. A sua presença nas reuniões não é sentida sobre a forma da

“obrigatoriedade” mas sim do “voluntarismo”. Demonstra interesse e motivação na realização das suas actividades em função do projecto EFA. É um formador com “muita

disponibilidade” para assumir o compromisso EFA. É alguém que revela gosto pelo que está a fazer. É alguém que mais do que fazer da formação EFA a sua obrigação sobre a forma de uma mera “profissão”, envolve-se no trabalho de formar sobre a forma da

“paixão”.

O discurso da Sónia é muito significativo para a compreensão do sistema de sentidos que opõe o tipo-ideal do “Missionário” ao tipo-ideal do “Mercenário”. Fazendo parte dos formadores da “casa”, está afecta ao projecto EFA a cem por cento com as funções de mediadora e formadora do curso de Apoio Familiar e à Comunidade. O discurso desta entrevistada que podemos situar a partir do seu modo de envolvimento na formação EFA do lado dos “Missionários” permite identificar alguns dos traços típicos do modelo dos “Mercenários”. Os formadores que se enquadram neste modelo são

144 descritos como tendo um menor envolvimento, implicação e disponibilidade para o trabalho de formação tal como este modelo de formação e educação de adultos o exige. São formadores que “agarram tudo” em termos da oferta formativa que lhes propõe o mercado da formação e depois andam “atarefadíssimos” e não conseguem assumir os seus compromissos face às exigências inerentes ao modo prescrito de se ser formador EFA. Este menor envolvimento e disponibilidade obriga a alterações constantes no desenrolar do percurso de formação e cria dificuldades na gestão do cronograma dos cursos uma vez que a menor disponibilidade de alguns formadores tem que ser compensada com maior disponibilidade da parte de outros, obrigando a mediadora a gerir frequentemente substituições de formadores “imprevistas” de modo a assegurar as suas “ausências”.

Tomemos atenção ao discurso da Sónia na primeira pessoa do singular:

“Entrevistador – Na sua opinião no aspecto do trabalho de formação com os colegas de equipa pedagógica o que acha que seria benéfico melhorar, alguma coisa que se pudesse melhorar, que melhorava o desempenho, o funcionamento do curso.

Entrevistada– Hum, mais disponibilidade, que eu sinto às vezes que há formadores que tentam agarrar tudo e portanto, todas as oportunidades que têm, para ir fazer formação, não sei depois quais são os motivos que estão por de trás disso, não é, nem me compete avaliar isso, mas às vezes sinto isso, portanto, a pessoa agarra tudo, não diz que não a nada e depois está atarefadíssimo, têm mil e uma coisas e depois não consegue vir à reunião, ou não consegue alterar um dia, porque já tem a agenda cheia e portanto aquele dia em que era preciso fazer uma outra actividade qualquer, a pessoa não pode dispensar, depois não tem outro dia para agendar e isso tem sido talvez o problema maior com os formadores, com alguns formadores é evidente, com alguns casos pontuais, não com todos, portanto, seria, seria bom que as pessoas quando assumem este compromisso, tivessem consciência que era por um período prolongado e que avaliassem a sua inteira disponibilidade para participar nisto, não é. E, e isso nem sempre se verifica (…)” (EIL1/pág. 35)

“(…) há formadores que quando eu peço para alterarem datas, olha o formador tal não pode vir naquele dia, nem naquele, nem naquele dia, não podes alterar? E já há pessoas que me dizem, caramba, mas esta sempre a pedir para mudar. Porquê que aceitam tanta coisa? E isto depois reflecte-se também nos colegas, não é. Que se disponibilizam para mudar, mas que às vezes se chateiam também de andar sempre a alterar a sua vida porque os outros por motivos de exteriores ao curso EFA não podem assegurar os dias que tinham sido previamente planificados.” (EIL1/pág. 37).

O Mário é um exemplo típico do formador que se aproxima do tipo-ideal do modo de ser formador sob a forma do “Missionário”. Para este formador a “maneira” e a

“postura” como o formador se posiciona face à formação EFA “não é indiferente”. Para os beneficiários da formação uma coisa é ter pela frente “alguém que sabe o que

está a fazer” e que “gosta do que está a fazer” outra coisa completamente diferente é ter “alguém que está ali só porque aquilo é pago a X à hora” e isso “é um

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complemento interessante para o seu salário ou então vive disso” e portanto, nesse caso, a sua postura é muito mais “desligada”. Ser formador no âmbito dos cursos EFA é muito mais do que uma mera “profissão”, é uma coisa que exige uma certa “dose de

paixão”. Recorrendo a uma metáfora religiosa conta-nos que o formador EFA funciona para os adultos em formação como uma “bóia de salvação” o que implica que à maneira do padre, assuma, muito mais do que o papel do mero “profissional”, o papel de “confessor”. A sua “missão” como formador EFA “é qualquer coisa que exige

muito mais do que chegar ao escritório fazer o seu trabalhinho e depois fechar a porta e ir embora”. A exigência colocada pelos “problemas” particulares dos formandos faz com que tenha que existir na relação com o outro significativo sobre o qual se trabalha

“uma reciprocidade que ultrapassa e muito o exercício de uma mera profissão”. O que não é o caso no modo como percepciona o trabalho que faz que nos diz “ter outras

exigências”.

Tomemos atenção mais em pormenor ao discurso do Mário:

“E portanto, a maneira como nós estamos, seja no que for, não é indiferente e no caso concreto duma formação deste tipo, uma pessoa que está ali com a função de formador, que é o título dado, quer queiramos, quer não, é uma referência e as pessoas por muito limitadas que possam ser, por muitas limitações que possam ter, percebem perfeitamente quem é que têm na frente, se é alguém que sabe o que está a fazer, que gosta do que está a fazer e que comunica de uma certa forma, que isto está tudo ligado, ou se é alguém que está ali só porque aquilo é pago a X à hora e é um complemento interessante para o seu salário ou então vive disso; sabemos que há profissionais disso, só fazem isso e não fazem outra coisa. E portanto, arranjaram ali o seu nicho e tal e portanto a postura é muito mais desligada” (EIL4/pág. 5)

“(…) portanto, eu acho que pode ser uma profissão para muita gente e bem feita enquanto profissão, mas acho que é mais do que isso, acho que é uma coisa que exige uma certa dose de paixão, porque estar com as pessoas, como sabe, certamente, pessoas que têm vidas desgraçadas, a maior parte, vidas familiares, pessoais, percursos terríveis, etc, em certos momentos é quase e eu não sou propriamente atreito à religião, no sentido tradicional mas o nosso papel é muitas vezes quase…hum… quer dizer, se estarmos nisto com esta perspectiva, de tudo aquilo que eu disse para trás, a nossa postura, somos vistos em muitos casos, como uma bóia de salvação, digamos assim, a expressão é um bocado forte, as pessoas continuam a viver nos seus esquemas e tal e orientam-se mas em muitos momentos somos nós que as ouvimos realmente. Somos nós que tentamos perceber até através das suas próprias dificuldades em operacionalizar este ou aquele conceito ou tema e não sei quê e percebemos através disso, dessa percepção que temos daquela pessoa, isso muitas vezes abre caminho a que acabemos por estar a falar de coisas que não têm nada a ver. Ou seja, sobre esses aspectos eu uso um bocado, vou utilizar uma imagem, as imagens são muito grosseiras, mas pronto, um bocado confessores, também desse ponto de vista, portanto, não é tanto assim uma profissão, embora possa ser realmente (…) é qualquer coisa que exige muito mais do que chegar ao escritório, fazer o seu trabalhinho e depois fechar a porta e ir-se embora, porque estamos realmente a lidar com pessoas, e pessoas que têm problemas e que nos põem problemas, com os quais temos de ligar, problemas de indisciplina, de incumprimento vário, variadíssimos incumprimentos, variadíssimas incapacidades, etc, portanto e lidar com isto, nem sempre é pacífico. Há pessoas, há pessoas que o fazem assobiando para o lado, pessoas que o fazem há moda de antigamente, isto aqui é assim e ponto final, eu é que mando, há pessoas que tentam perceber um bocado

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aquilo, mesmo impondo regras, tem de ser, naturalmente, mas tentando perceber o que é que está na nossa frente e é uma coisa que nos questiona todos os dias. Não há dia nenhum em que, praticamente, nos dias de formação, etc, quando há um ou outro acontecimento menos agradável, isso acontece amiúde, em que uma pessoa não se põe em causa, não se questiona. Para nós é também, portanto também desse ponto de vista, para nós, um formador ser posto em causa, não só nos seus conhecimentos mas na sua postura, na maneira como resolve as coisas, representa também uma oportunidade e um processo de crescimento pessoal ou seja há aqui uma reciprocidade que ultrapassa e muito na minha opinião, ultrapassa e muito o exercício de uma mera profissão, portanto, uma pessoa que vá, com todo o respeito evidentemente, que vai para a obra e está ali a assentar tijolos e a medir o tamanho da janela e tal e pronto, isso não exige grandes preocupações de ordem metafísica ou por aí adiante, isto não, isto tem outras exigências. (EIL4/pág. 5-6).

Outro critério analítico que nos permitiu a construção de novas isotopias relacionadas ainda com os modos individuados de ser formador de adultos no âmbito das políticas públicas da Iniciativa Novas Oportunidades é a condição face ao trabalho. Aqui surge uma diferenciação social nítida entre a condição dos que se encontram numa zona de

“estabilidade confortável”, aqueles que enquadrámos no modelo da “estabilidade

instável” e a condição daqueles que se encontram numa situação de “precariedade

total” ou “precariedade flexível” e que representa a situação da grande maioria dos formadores que trabalham na educação e formação de adultos.

5.6. Entre a estabilidade confortável, a estabilidade instável e a precariedade