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2. A TELA NA CENA, A CENA NA TELA

2.1 A CÂMERA NO PALCO

2.1.1 As novas tecnologias no teatro, nada tão novo assim

“[...] o teatro ainda não utilizou quase nada das novas tecnologias [...]”

Heiner Müller74

A aparição do vídeo75 - com câmeras mais leves que as do cinema - acentuou a

utilização dessa ferramenta na cena contemporânea. Novos aparelhos de projeção transformaram as condições de inserção das imagens no palco. Este subcapítulo trata do percurso histórico da inclusão de tais recursos tecnológicos e suas consequências, que supostamente abrem as janelas para outras categorias de presença do ator no palco contemporâneo. Nesse sentido, o vídeo e a tecnologia digital surgem como complemento que potencializa tais categorias de presença. Vejamos o que comenta Nicolas Borriaud (2009) sobre o surgimento do vídeo, na vídeo-arte, elemento fundamental para a introdução do vídeo na cena teatral:

Sua evolução quanto à câmera de cinema tem a mesma importância da invenção do tubo de tinta para a geração impressionista: instrumento leve e manejável, ele permite a tomada ao ar livre, além de uma desenvoltura diante do material filmado antes impossível com os pesados equipamentos cinematográficos. Assim, a forma dominante do povoamento videográfico é a sondagem, mergulho aleatório na multidão que caracteriza a era televisiva: a câmera faz perguntas, registra passagens, fica na altura das pessoas (BOURRIAUD, 2009, p.36).

Embora Bourriaud afirme que a aparição do vídeo seja uma “revolução” para as artes visuais e para as artes cênicas, pode-se constatar na história do teatro a existência de experimentos com telas e projeção no início século XX. Segundo Béatrice

74 Apud Picon-Vallin, 1998, p.17.

Picon-Vallin, em 1923, “paralelo às técnicas de montagem e de rapidez própria aos filmes policiais, Vservold Meyerhold insere no espetáculo La Terre cabrée projeções76 em uma tela suspensa sobre a boca de cena” 77 (PICON-VALLIN, 1998, p.15).

Experiências como essa feita por Meyerhold demonstraram, na época, uma necessidade de atualização do espaço teatral a uma realidade que se industrializa, de acordo com Odette Aslan (1994, p.246) “no nível dos encenadores: Meyerhold quis “cineficar” 78 o teatro”. Dessa maneira, o formato cinematográfico representa - de certa forma - esse pensamento mecanicista.

Erwin Piscator79, na Alemanha, utiliza projeções no espetáculo Drapeaux

(1924), depois insere fragmentos de filmes nos espetáculos Malgré tout (1925), Raz-de-

mareé (1926), entre outros. Essas imagens projetadas são uma combinação de filmes

documentários com roteiros didáticos que comentam as ações e esclarecem muitas vezes as rubricas:

Piscator utilizou projeções fixas e filmadas para vários fins: prolongar o espaço cênico, inserir documentos objetivos, informando o espectador acerca dos contrapontos de uma situação dada, substituir uma longa explicação dialogada por algumas imagens esclarecedoras [...] (ASLAN,1994,p.247).

Alguns experimentos feitos por Nina Tokumbet buscavam outros suportes para as imagens, no teatro e em óperas, com projeções sobre placas de vidro pintadas, o que foi chamado de “realismo mágico” (PICON-VALLIN, 1998, p.15). Nessa mesma época alguns outros diretores como S. Vakhtângov e M. Barktine também realizaram experimentos de projeção em outros suportes (materiais que poderiam servir como tela): nos tetos do teatro ou, simplesmente, na parede. “Por que não utilizar o cinema, não tratar o cenário como um simples quadro, como um primeiro plano convencional atrás do qual está aberto um caminho ao sonho, à memória e à imaginação?” 80

(CLAUDEL apud ASLAN, 1994, p. 246).

76 Ainda segundo Picon-Vallin em La Terre cabrée existiu uma tentativa de colocar fragmentos de filmes,

mas por razões técnicas só foram projetadas imagens fixas. Mais informações ver “Le cinéma, rival, partenaire ou instrument du théâtre meyerholdien?” in Théâtre et cinéma années vingt, études réunies par Claudine Amiard-Chevrel. Lausanne: L’Âge d’Homme, 1990, p. 252-254.

77 Tradução minha do original em francês.

78 Termo utilizado pela teórica Odette Aslan para definir a inserção e utilização de elementos

cinematográficos pelo diretor russo Meyerhold em alguns de seus espetáculos.

79 Ver Picon-Vallin, 1998, p. 15. Citado nas referências desta dissertação.

80 O espetáculo Le Livre de Cristophe Colomb, a partir da obra de Paul Claudel, foi encenado no ano de

Essas iniciativas no começo do século XX abriram as portas do espaço teatral para um dispositivo “sêxtuplo que permitisse montar obras ao mesmo tempo literárias e cinematográficas” (ASLAN, 1994, p. 247). As telas invadiram o palco e o ator passou a sentir-se quase como um objeto fotográfico para os olhos do espectador. Isso exigiu dos atores um sincronismo rigoroso com os aparatos técnicos e uma regularidade acentuada para uma apresentação ao vivo.

Em meados de 1960, alguns artistas norte-americanos como Carolyn Brown, Barbara Lloyd e Steve Paxton81 dançaram na frente de um enorme balão, usado como

suporte para a projeção de imagens atuais. No decorrer dos anos, vários foram os artistas que se encantaram com “o poder da projeção”, e as utilizaram em suas performances e instalações (PICON-VALLIN, 1998, p.16). Dessa maneira, percebo que essas manifestações artísticas – performance e instalação - muitas das vezes com pertinência maior nas artes visuais, foram de fundamental importância para o que seria mais tarde determinado como Teatro de Imagens82, assunto de que trataremos no subcapítulo posterior. Portanto, é a partir dessas práticas já hibridizadas — com atores, dançarinos e imagens projetadas em telas ou em monitores — que veremos uma busca de outras possibilidades comunicativas:

Assim, toda obra de arte pode ser definida como um objeto relacional, como o lugar geométrico de uma negociação com inúmeros correspondentes e destinatários. Cremos ser possível explicar a especificidade da arte atual com o auxílio da idéia de produção de relações externas ao campo da arte (em oposição às relações internas, que lhe oferecem substrato socioeconômico): relações entre indivíduos ou grupos, entre o artista e o mundo e, por tran- sitividade, relações entre o espectador e o mundo (BOURRIAUD, 2009, p.12).

O teatro, ainda que seja considerado o espaço do ator, na busca de outras possibilidades relacionais sempre soube dialogar com as invenções tecnológicas, em sua época, sejam elas mecânicas, elétricas, radiofônicas, fílmicas ou eletrônicas, e sempre as incorporou em seu espaço. A utilização de novas tecnologias, assim como constamos, não é uma novidade da cena contemporânea nem das criações pós-

81 O espetáculo Ballon foi encenado no ano de 1965, por Carolyn Brow, Barbara Lloyd e Steve Paxton. 82 Essa denominação é usada para definir o Teatro Visual de Robert Lepage. Os autores do estudo

“L’écran de la pensée: ou les écrans dans le théâtre de Robert Lepage, Chantal Hébert e Irène Perelli-

Contos, utilizam tal denominação associada à idéia de uma escrita visual ou a de uma dramaturgia visual. Tal estudo foi apresentado no seminário Relations de la scène aux images, feito pelo Laboratoire de

dramáticas83, para utilizar o conceito que nos trouxe Hans-Thies Lehmann. A história do teatro no século XX esta repleta de exemplos [famosos] em que a cena teatral é invadida por telas, câmeras, projetores e “outras máquinas da imagem”.

É nesse contexto de criação de uma “sociedade do espetáculo”, como a chamou Guy Debord84 para definir uma sociedade que está sendo invadida pelas telas, que surgem, aos poucos, as novas invenções tecnológicas que transformariam o espaço cênico em um cenário onde a sincronia toma o lugar da diacronia e potencializa outras categorias de presença. A co-presença toma o lugar da sucessão e o presente desloca- se entre a “presentação” e a representação.

Diante desse breve histórico, percebe-se que a tecnologia digital surge como complemento que potencializa essas categorias de presença. No entanto, antes de falar da imagem informática, da imagem digital ou virtual que aparecem através de máquinas computadorizadas, capazes de refazerem e produzirem um status de realidade – creio ser importante ater-se ao surgimento do vídeo85.