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2. A TELA NA CENA, A CENA NA TELA

2.3 TELE-PRESENÇAS: MATERIALIDADE DA CENA E IMAGENS

2.3.1 A materialidade do invisível

“A fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.”

Martin Heidegger

O presente subcapítulo trata de tecer reflexões acerca da utilização da projeção de imagens na cena teatral e dos diversos níveis de presença em trabalhos teatrais que incorporam elementos midiáticos. O objeto de análise aqui em questão é o espetáculo

Somático119, apresentado na cidade de Florianópolis pela atriz Monica Siedler e pelo artista visual Roberto Freitas. Sobre esta montagem serão desenvolvidas aqui reflexões sobre as três categorias de presença: presença, tele/presença e co/presença. O objetivo é revelar como essas categorias presenciais dialogam com estratégias estéticas que deslocam a relação entre o ator e o espectador para uma dimensão espacial interativa que oscila entre o real e o virtual. As observações se direcionam para o entendimento da incorporação e absorção de ferramentas midiáticas no espetáculo teatral como um espaço de diálogo entre ausência e presença. A intenção teórica é mostrar como o corpo da atriz (presença), sua imagem projetada (tele-presença) e o diálogo entre as duas categorias geram, conjuntamente, uma terceira, a co/presença.

Inicialmente, percebe-se que tais procedimentos presenciais resultam em possíveis (trans)formações da capacidade perceptiva e sensorial do espectador, para Hans-Thies Lehmann, “as imagens fotográficas em movimento e depois eletrônicas atuam sobre a imaginação – e sobre o imaginário – de maneira muito mais forte que o corpo vivo presente no palco” (LEHMANN, 2007, p. 366). Se considerarmos essa perspectiva em âmbito audiovisual, realmente o poder da imagem se concretiza como algo “muito mais forte que o corpo vivo”, já que o corpo do ator está plasmado em uma tela – é uma imagem. Tratando-se do Teatro de Imagens, conceito cunhado por Bonnie Marranca, tal afirmação trazida por Lehmann, a meu ver, não contemplam o espetáculo

119 O espetáculo foi visto pela primeira vez no Vértice, Encontro e Festival de Teatro Feito por Mulheres,

aqui analisado120, assim como as experiências feitas por Robert Lepage, Robert Wilson entre outros – pois a coexistência das categorias de presença: presença, tele/presença e co/presença dialogam entre si criando um campo comunicativo de forte poder sobre o imaginário dessa recepção que oscila no papel de espectador e tele/espectador.

Antes de prosseguir, esclareceremos o sentido do termo “somático”. Segundo o

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Houaiss, 2003), o adjetivo “somático” é

descrito como “relativo à, ou próprio do organismo considerado fisicamente; físico, corporal.”, ou numa segunda acepção, “diz respeito ao corpo, excetuadas as vísceras”. O que quero frisar é que a palavra escolhida como título do espetáculo já oferece, em sua carga semântica, argumentos para uma reflexão sobre os diversos níveis de presença. Isso nos permite discutir de forma dialética a sua própria materialidade, através do corpo como imagem, ou corpo-imagem, em situação de tele/presença.

No espetáculo em questão, a inclusão de imagens ou de efeitos controlados e criados por um software é o que nos tele-trans-porta para uma realidade (quase) virtual. Nesse sentido, é no jogo de esconde-esconde entre o corpo vivo da performer121 e suas imagens projetadas ora em uma tela, ora em pequenas telas dispostas pelo palco ou sobre seu próprio corpo, que passeia a imaginação do espectador. Um convite para um exercício estético desliza diante dos olhos da recepção a cada fração de milésimo de segundo. Algumas vezes, parece que espectador, ou melhor, tele/espectador, está envolvido pela tradição milenar do teatro de sombras, com a diferença que, desta vez, são computadores e olhos mecânicos (câmeras) que manipulam o que deve ou não ser visto, o palco (a cena) transforma-se em uma “máquina de efeitos”. Dessa forma, o que ocorre é: uma intensificação e uma desconstrução do teatro em vários níveis. Por um lado, o teatro “vivo” é posto em suspensão (desconstruído) e passa a ser uma ilusão, um efeito de uma máquina de efeitos. Por outro lado, experimenta-se na atmosfera intensa e vital do espetáculo uma tendência inversa, ou seja, a tecnologia das mídias é

120 No espetáculo Somático o corpo da performer tem um papel, que entendo como fundamental, para o

jogo entre o real e o virtual. A platéia oscila seu olhar entre as imagens projetadas no corpo-tela da atriz e sua presença física - que se transforma em um exercício de alto teor imaginativo.

121 No início do texto, foi feita a apresentação de Monica Siedler como atriz, a partir de agora utilizaremos

o termo performer por entendermos que tal termo se ajusta com maior facilidade às reflexões sobre as categorias de presença. Da palavra performer queremos ressaltar seu sentido mais flexível que se encontra entre a atriz e dançarina provocadora de sentidos. Ademais, Monica Siedler, em entrevista no dia 23/08/2010, informou –me que considera seu espetáculo uma performance, o que confere mais legitimidade ao nosso próprio uso do termo quando aplicado ao trabalho da atriz aqui em questão.

teatralizada (LEHMANN, 2007, p. 384).

Em Somático, o teatro mais uma vez acompanha a lógica de seu tempo, incorporando, historicamente, as novas invenções tecnológicas. Nos últimos anos, percebo que esse fenômeno torna-se contemporâneo em algumas práticas teatrais, sobretudo, nas que fazem uso do conceito do Teatro de Imagens em suas criações. Entretanto, aparecem na história do teatro do último século, inúmeros exemplos da utilização de projeções fílmicas em espetáculos. O procedimento se difundiu, a partir da invenção da máquina cinematográfica, ao longo do século XX. Porém, para Béatrice Picon-Vallin (1998), a aparição de imagens projetadas na cena teatral começa bem antes, com o advento das lanternas mágicas inventadas por Nicola Sabbatini, século XVII, uma invenção que tinha a função de “fazer aparecer fantasmas na cena”. Em seu relato histórico, Picon-Vallin afirma “mesmo o teatro dos jesuítas fizeram uso de imagens projetadas, transportadas por luzes ou utilizando-se da técnica do Padre Kircher122 para impressionar o espectador”123 (PICON-VALLIN, 1998, p. 14).

As transformações ocorridas no espaço cênico, quando integra essa espécie de maquinaria em sua estrutura, permitem ao teatro produzir o extraordinário e o inimaginável. A absorção de novas invenções no espaço teatral - mecânicas, elétricas, radiofônicas, fílmicas ou eletrônicas - traz um conjunto de transformações no processo de criação e uma série de questionamentos na relação presencial.

Mais adiante desenvolvo também uma reflexão sobre como a mediação tecnológica possibilita criar uma fusão entre o corpo-vivo e o corpo-imagem, caracterizando outra dimensão tele-projetada na cena, em tempo real. Nesse sentido, a distância que separa os dois corpos – o presente e o tele-presente - é de ordem espacial e não temporal, dessa forma evidencia-se através da técnica de vídeo a “copresença de imagem de vídeo e de ator vivo funcionando de maneira bem geral como ‘auto-referencialidade’” (LEHMANN, 2007, p. 383) do teatro (re)transmitido através de telas.

A relação entre a performer e a tela, acontecendo ao vivo, desloca as fronteiras

122 Imagens pintadas sobre uma superfície de vidro que iluminadas, tornam-se estratagemas ópticos e

produzem fenômenos de ordem ilusionista, com um efeito mágico.

123 Tradução livre minha do original em francês: “Même le théâtre des Jésuistes a eu affaire aux images

projetées,transportée par la lumiére,et aux techniques du pére Kircher pour impressioner leurs spectateur.” Tradução livre do autor da dissertação.

entre o teatro, o cinema e uma possível arte midiática. Essas interfaces se friccionam, o resultado é um nível de teatralidade que se desdobra em vários registros de presença, as quais ocupam diversos espaços de projeção onde a dimensão do que é material e do que é imaterial ganha uma tensão particular.

Assim as noções de: identificação, ilusão, espectador, presença, abrem-se sobre um trilho de transformações onde a virtualidade implica um novo tipo de espetáculo, de percepção e de participação onde a figura do ator – do “interator”- transforma-se no elemento central em questionamento ao papel do autor e do espectador (PICON- VALLIN, 1998, p. 12).

Dessa forma, uma nova experiência se instaura: o espaço não mais se subordina ao ordenamento da perspectiva ou da separação interior e exterior, surge então um campo de tensões entre a sombra e a luz, o vazio e o cheio, o próximo e o distante, o virtual e o espiritual, o presente e o ausente; enfim, entre o corpo vivo da performer e suas múltiplas projeções no espaço cênico. É nesse espaço redimensionado, investido de sentidos e pleno de significação que percebo que “a espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 206).

Para Merleau-Ponty, essa espacialidade é possível por se alimentar de nossa capacidade de reconhecer, de um só golpe, a representação visual daquilo que, na experiência empírica de observação de nosso corpo é invisível. É no palco dos sentidos que se abre a porta das conexões, consequentemente, isto nos transporta para um não- território, um não-lugar124 onde as possibilidades de relação fazem-se presentes o

tempo todo. Constitui-se, um corredor de intermediações entre o corpo da performer e o ambiente. No espetáculo Somático, o fluxo de imagens projetadas opera de forma singular. Não se trata de reconstituir uma narrativa, uma história, e sim de aceitar o jogo visual com a nossa percepção. A especificidade não está nas “coisas” que essas imagens representam, mas sim no “modo” como elas operam entre si. Nessa perspectiva, durante o espetáculo, enfatizo a participação direta do artista audiovisual125 Roberto Freitas que manipula dois computadores, um para o tratamento

124 AUGÉ, 2008. Para Marc Augé, “não-lugares” são diametralmente opostos ao lar ou espaço

personalizado, representados pelos espaços públicos de rápida circulação: são espaços de transição.

do som e outro para projeção e manipulação das imagens.

Freitas dialoga com a performer e interfere através de suas máquinas, em tempo real, nos lugares onde são feitas as projeções e na velocidade das mesmas, além de (des)construir a emissão dos efeitos sonoros. Como operadores esses artistas, a

performer e o artista audiovisual, controlam, manipulam e operam tais técnicas, mas

também são operados por elas. E é nessa relação dialógica que a plateia experimenta o estado de co/presença.

Para Nicolas Bourriaud (2009), tais relações são entendidas como relações tecnestésicas, são trocas entre artistas e técnicas midiatizadas que deflagram uma experiência íntima e transformadora da percepção do artista com o mundo. As trocas, por sua vez, terão reflexos imediatos na percepção sensorial dos espectadores e/ou telespectadores, papel que o público exerce, de forma transitória, durante todo o espetáculo. Diante disso, as ferramentas tecnológicas não funcionam exclusivamente como modos de produção: são também modos de percepção do mundo, como descreve Merleau-Ponty:

A sensação, tal como a experiência a entrega a nós, não é mais uma matéria indiferente e um momento abstrato, mas uma de nossas superfícies de contato com o ser, uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço único,condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço (MERLEAU-PONTY, 2006, , p. 209).

Portanto, o teatro da imagem - ou teatro visual - fragmenta o espaço cênico, na medida em que tais fragmentos são utilizados pelo espectador para a (re)construção de outras categorias de presença. Enfim, ao dialogar com um tipo de teatro que constrói um ambiente propicio à “estética da comutação”126 (LEHMANN, 2007, p. 386), percebe-

se que nesse emaranhado de sentidos surgem outras categorias de presença, diretamente conectadas com uma escritura cênica que (trans)forma-se em escritura visual, na qual se instaura uma nova ordem visual desvinculada das obrigatoriedades da mimese tradicional.

denominação de artista audiovisual é o modo que encontrei para descrever sua forma de participação no espetáculo.

126 Termo com que Hans-Thies Lehmann se refere a uma estética sobre o que acontece entre corpos

humanos, fragmentos destes corpos, movimentos, imagens, sons, computadores, projeções, luzes, sombras etc., elementos heterogêneos que se articulam sensorialmente através de um espaço onde um poder midiático dilata a forma como cada espectador exercita sua capacidade perceptiva e sensorial.