• Nenhum resultado encontrado

1. DA AUSÊNCIA SE FAZ PRESENÇA

1.3 O OLHO VORAZ DA CÂMERA

“No cinema, posso ver tudo de perto, e bem visto, ampliado na tela, de modo a surpreender detalhes no fluxo do acontecimento dos gestos.”

Ismail Xavier

1.3.1 Tomada um: um jogo entre o ator, o olho mecânico e o tele/espectador

O corpo que se encontra na frente da câmera é enquadrado, colocado dentro do “olho mecânico”, está delimitado de forma explícita pela relação dialética entre a presença e ausência. Aquilo que é visto na tela é diretamente conduzido pelo olhar selecionador de quem está atrás da câmera, ou seja, a intencionalidade do recorte é uma evidência. É nessa perspectiva que Jacques Aumont afirma “o cinema é ‘uma máquina simbólica de produzir ponto de vista’” (AUMONT apud MARTINS, 2010, p.227). Portanto, uma experiência audiovisual pode produzir possibilidades que impulsionam um jogo entre presença e ausência, identificação e distância, aqui e lá. Segundo Arlindo Machado, a arte cinematográfica tem como objetivo principal “produzir um efeito de continuidade sobre uma sequência de imagens descontínuas” (MACHADO, 2008, p.22), consequentemente cada indivíduo estabelece com as imagens uma espécie de conversação, de experiência singular e subjetiva.

fundamentais para gerar uma relação de afeto no encontro do tele/espectador com a tela. É pertinente pensar sobre as condições relacionadas ao encaixe desse corpo no quadro determinado pelo “buraco infinito” dessa máquina de imagens. Deve-se lembrar de que inicialmente o corpo do ator está fragmentado, dilatado, (re)cortado pelo olho mecânico da câmera. Além disso, é importante problematizar a “superação” da artificialidade tecnológica para a impressão das emoções do ator na tela. A natureza invasora desse olho mecânico mede o grau de intimidade entre o corpo do indivíduo exposto e o olhar do indivíduo que descobre esse corpo. Assim, por meio da “máquina de imagem” inicia-se um jogo entre: alguém que recorta o que deve ser visto desse corpo, o corpo que é visto e o corpo daquele que vê o que foi determinado para ser visto. A meu ver, o estado de presença (tele/presença) do ator plasmado na tela, está diretamente relacionado com o “esquartejamento” de seu corpo feito pela câmera e a forma como ele se deixa revelar. Segundo Sophie Lucet (2001, p.92) “a presença é, então, primeiramente, uma luta contra a fixação de formas pré-estabelecidas, um ato de resistência em favor do processo vital que está por trás da forma” 68. É nesse conflito, entre estar dentro de uma moldura e manter a vitalidade, que se encontra o ator dentro do enquadramento.

Ao considerar tal fato, qual seria o grau de consciência que tem o ator sobre a existência do “olho mecânico” e a maneira pela qual essa máquina de imagens “scaneia” o seu corpo? Seus gestos, seus comportamentos, enfim, seus movimentos nos mínimos detalhes acusam suas fragilidades. Sua intimidade é revelada dando visibilidade no que existe de mais frágil na condição humana: o medo da sua própria imagem – e isso configura, a meu ver, um estado de tele/presença. A humanização da imagem representada na tela e associada à descoberta das fragilidades do tele/espectador em outro ser humano (ator/atriz), implica no reconhecimento de um canal perceptivo e sensorial – o que por sua vez “consagra” a existência da tele/presença.

Nesse sentido, Vincent Amiel (2001, p.263) afirma: “a presença é então esta realidade que, apesar de tudo, que apesar das necessidades do papel, é transparente como a

68 Tradução livre minha do original em francês: “La présence est donc d’abord une lutte contre la fixation

verdade do ator que aparece através de signos necessários e incontrolados.” 69 De que forma esse “corpo transparente” do ator age sobre o espectador que o descobre? Talvez naquele lugar - em um detalhe (close-ups) - quase imperceptível do corpo do ator, surja uma relação de tensão do homem com essa máquina de captar imagens.

Considero que no ato de captá-las, acontecem negociações de ordem estética de suma importância para a construção de um estado de (re)presentação, ou seja, de um estado de tele/presença. Portanto, é na sua materialização na tela que aparecem possibilidades de conexão entre os corpos de quem assiste e de quem é assistido.

1.3.2 Tomada dois: dimensões desse jogo

A partir do que foi discutido anteriormente, levanto algumas indagações para pensar a relação do ator/atriz nesse jogo de presença e efeito de presença que acontece entre: (1) o olho mecânico da câmera, (2) aquele que é visto (ator) e (3) o reconhecimento óptico daquele que assiste (tele/espectador). A primeira questão a ser colocada aqui, advém do fato de que se considerarmos os meios audiovisuais como máquinas de imagens, que papel teria o ator nessa engrenagem70? Diante disso, seria o ator uma fábrica de imagens de si mesmo? E por fim, pode o ator burlar, ou melhor, dissimular, o estado confessional de seu corpo diante de uma câmera em função de um “efeito de verdade”? Quero enfatizar que quando falo de estado confessional do corpo, refiro-me a algo revelador, alguma coisa encontrada no plano da invisibilidade e que se

presentifica71, algo singular à condição humana que o tele/espectador identifica no

ator/atriz através de sua imagem projetada na tela.

A primeira indagação lançada consiste no fato de compreender a intencionalidade da câmera como instrumento que dilata, delata, detalha e analisa a intimidade do corpo do ator através do enquadramento – assunto discutido no subcapítulo anterior. Consequentemente, o papel do ator estaria relacionado a um jogo

69 Tradução livre minha do original em francês: “La présence est alors cette réalité qui, malgré tout,

malgré lés nécessités du rôle, transparâit comme la vérité de l’acteur au travers de signes nécessaires et incontrôlés.”

70 Aqui entendido como uma peça do jogo audiovisual.

71 Neologismo para aquilo que “salta” aos olhos do tele/espectador, algo que se evidencia aos poucos,

que causa um efeito de intimidade com o ator. O que materializa em sua aparência uma relação de “amizade” a distância.

daquilo que pode ou não ser visto. Dessa forma cria-se uma linha tênue entre a materialidade da imagem projetada (confundida, por vezes, com o corpo do indivíduo/ator/personagem) e um simulacro que se legitima através de: efeitos de verdade e efeitos de presença.

Na busca de convencer o tele/espectador de seu compromisso com a realidade, a arte audiovisual tem se aprimorado em tentar metamorfosear o dia a dia. Atores ou não-atores devem dominar sua presença, devem “impressionar”, através de sua performance gestual. Aquele que assiste deve se sentir preenchido pela imagem “divina” projetada na tela, deve assimilá-las sem dissimulá-las, assumi-las como simuladas verdades estrategicamente montadas para o prazer de seus olhos e ouvidos. Seria nessa perspectiva que o ator fabricaria imagens de si mesmo? Pois bem, de uma maneira geral tudo nos leva a crer que, segundo, a fórmula lançada por Edgar Morin (1921 -), ao comentar sobre o ator no cinema, “o eu penso do ator de cinema é um eu sou..”72 (MORIN apud LIBOIS, 2001, p.353). Assim, o que acreditamos ou não acreditamos é registrado por nosso corpo, e dessa maneira, uma quantidade enorme de imagens explode contra esse mesmo corpo. Compreendo também que a dimensão da presença nos meios audiovisuais, se dá na forma como se revela a intimidade de um corpo que é dissecado em sua gestualidade. É na tensão que existe entre o olho humano e olho mecânico, no momento de captar as qualidades expressivas do ator, que aparecem os testemunhos da invisibilidade da matéria humana.

Retomando a terceira questão lançada no início dessa discussão, sobre a possibilidade do ator burlar e/ou dissimular o estado confessional de seu corpo diante de uma câmera em função de um “efeito de verdade”, o crítico e diretor francês, François Truffaut (1932- 1984) afirma que, o mítico ator, americano, Humphrey Bogart (1889 – 1957) - famoso por seu estilo natural - possuía o corpo que melhor se encaixava na tela. Bogey man, como ficou conhecido esse ator, dominava como ninguém as sutilezas de seus gestos na frente de uma câmera. Entretanto, do outro lado do “espelho” alguns atores e diretores insistem em que quanto menos se atua no cinema mais o ator se aproxima da “verdade”. Para o diretor Robert Bresson (1901- 1999) “o ator ideal para o cinema é a pessoa que não expressa nada. [...] O ator deve

ser ele mesmo” 73 (BRESSON apud LIBOIS, 2001, p.355). O que seria esse não expressar nada?

Tal forma de pensar da escola francesa de cinema, enfatizada por Bresson, se justifica no exagero gestual dos atores da Comedie Française quando eram convidados para participarem de experiências cinematográficas no início dos anos 50. A busca por uma espontaneidade, uma presença que afastasse de forma definitiva o “fantasma” do ator teatral das telas fez com que muitos diretores e críticos optassem trabalhar com “não-atores”. Alguns diretores daquela época e alguns diretores ainda hoje defendem a importância de colocar um “corpo virgem”, sem vícios teatrais, na frente das câmeras, em função de uma “presença espontânea”, “natural”, “verdadeira”. Talvez, dessa maneira possa se surpreender com algo que sempre estará tocando a fronteira do real e do ficcional - qualidade expressiva inerente à arte audiovisual e detectada nos primórdios da linguagem cinematográfica.

Pelo que precede, concluo que somos testemunhos ativos de experiências audiovisuais, pois aceitamos o jogo do simulacro, assim como assistimos o encontro do corpo do ator com o corpo do tele/espectador, enfim, participamos de uma batalha efêmera, que se propaga na imagem projetada na tela durante alguns poucos minutos. Para compreender a “invasão” dessas novas tecnologias na cena contemporânea e como se constrói essa experiência permeada por outras categorias de presença (como a tele/presença e a co/presença) passemos então para o capítulo 2, intitulado: “A tela na cena, a cena na tela”.

73 Tradução livre minha do original em francês: “ l’acteur idéal de cinéma, c’est la personne qui n’exprime