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2. A TELA NA CENA, A CENA NA TELA

2.3 TELE-PRESENÇAS: MATERIALIDADE DA CENA E IMAGENS

2.3.2 O triangulo: a relação presencial em 3 categorias

“Um conceito raramente surge à luz do dia tal qual, pronto, definido e acabado.”

Teixeira Coelho

O mal-estar da sociedade contemporânea passa por uma fragmentação da ordem, as incertezas tecem diretrizes em um não-lugar onde o “eu” esfacelado passeia por caminhos experimentais buscando mapear a instância material desse fenômeno complexo. Na tentativa de esclarecer estes processos de fragmentação do “eu” no contexto cênico e suas consequências no estado de Presença, nesta parte do texto trato de fazer uma reflexão crítica sobre a dilatação127 dos efeitos de Presença na cena

contemporânea.

Começo por problematizar a definições de Presença que nos apresenta Patrice Pavis no seu livro “Dicionário do Teatro”128. Para Pavis , ter Presença é “saber cativar a atenção do espectador e impor-se”, ou então, “provocar no espectador de forma imediata uma espécie de identificação.” No entanto, penso que tais definições não são capazes expressar a complexidade do encontro entre “aquele que se der a ver” e “aquele que vê ”, Pavis, reduz as possibilidades comunicativas deste encontro em uma forma de “imposição” e/ou “identificação”.

Em um mundo fragmentado, a verossimilhança não é mais previamente construída e testada na sua potência de convencer; não existe uma verdade unívoca e a cultura se organiza em processo. Os signos flutuam, são sugestões em busca de significados e os significados passeiam por signos e dissolvem-se em sentidos. Tais condições de agenciamento oscilam, são convites a uma experiência com “processos perceptivos e cognitivos a partir do relacionamento com o outro, com o mundo e

127 O termo dilatação aqui utilizado pode ser entendido como uma dilatação do conceito cunhado pelo

Diretor italiano Eugênio Barba “corpo dilatado”.Em nossa reflexão este corpo é corpo-ampliado,um corpo midiatizado que através da manipulação de computadores e olhos mecânicos determinam, o que deve ser visto e de que tamanho deve ser mostrado na cena.

128 Utilizamos o livro original na língua francesa,inserido nas referências bibliográficas, no qual a

consigo mesmo” (GREINER, 2005, p.89). Portanto, torna-se inconsistente aceitar essas definições de Presença, pois acredito que estas sejam primárias e inadequadas para analisar espetáculos que trabalham com ferramentas tecnológicas capazes de criar outra realidade. Tais fundamentos perdem-se , tornam-se obsoletos em um mundo submerso em tecnologias de projeção (vídeo, slides, multimídias..).

A entrada do vídeo129 na cena teatral faz com que a junção entre imagem e realidade ganhe uma nova dimensão, e é nesta dimensão que surge a tele/presença130. Esta fusão entre atuação -presencial- com público e tele/presencial com a imagem, “obriga” o ator encontrar uma forma de atuar diferenciada. Exigindo, em muitos casos, um alto grau de precisão no posicionamento em relação à luz. Um jogo entre: ausência, presença, tele/presença e co/presença. Sobre essa relação e atuação do ator Picon- Vallin (1998, p. 9-10) afirma:

É certo que esta erupção de imagens, em todo caso, destas imagens colocadas no palco, faz com que o ator se supere quando atua para estar a altura de seu duplo, fotografado ou filmado. E neste sentido, as projeções podem abrir a cena, para um novo espaço imaginário, modificado pelos modos de percepção do público, o que permite ao espectador a exploração de um mundo em transformação tanto em suas potencialidades quanto em seus perigos131.

Seria, então, nesse espaço imaginário descrito pela autora acima que a presença e a tele/presença geraria a terceira categoria de presença: co/presença? (pode transformar isto em afirmação só para fazer o link com a citação)

Voltemos ao espetáculo Somático, onde a através de movimentos coreográficos precisos, a performer Monica Siedler constrói, no chão, um bosque de pequenas telas com imagens pré-gravadas. Nas telas, Siedler aparece em várias situações e lugares diferentes em cada uma delas, estas imagens ficam se repetindo durante todo

129 È importante lembrar, ou melhor, reafirmar que Meyerhold, Piscator, Eisenstein já tinham feito

experiências com projeção de filmes na cena. Entretanto é através do vídeo, com imagem eletrônica e suas câmeras de fácil porte que a tele/presença se afirma. Sabemos que tal fenômeno se dá a partir dos anos 60 e que experiências feitas por artistas visuais, através de instalações, contribuíram muito com sua penetração na cena teatral.

130 Quando falamos em tele/presença nos restringimos a projeções feitas na cena teatral com a presença

de um público. Diferente da telepresença, veiculada pela internet.

131Tradução livre minha, no original: “Mais Il est certain que l’irrupition des images, em tou cãs de leurs

images sur Le plateua, invite les acterurs à se surpasser,cote jeu, pour être à la hauter de leur double,photografie ou bien filme. Et que les écrans peuvent ouvrir à la scéne de nouveaux espaces pour l’imaginaire, modifier les modes de perception ordinarire du public, lui peremetre l’exploration d’um monde em transformation,des sés potentialités comme de sés dangers.”

espetáculo para no final tornarem-se telas coloridas. Estas telas antes elementos “dispersivos” ao tornarem-se pontos coloridos canalizam nossa atenção para as projeções feitas em uma tela maior, que encontra-se posicionada no fundo do palco. Outras projeções são feitas no próprio corpo da performer, que se mistura com a tela maior. Deitada ou em pé, Siedler movimenta-se com exatidão, ou simplesmente, fica parada, ausenta-se, para que diversas personagens tele/projetadas saiam de seu corpo. Temos a sensação “fantasmagórica” de presenciar ou co/presenciar - e aqui a recepção faz o papel de co-autoria através da imaginação - a aparição de várias mulheres que saem do corpo-tela, que nos mostra a performer. O jogo entre vida e morte, ausência e presença manifesta-se na categoria de tele/presença e desloca nossa percepção, “através do espaço visível, ela insinua uma nova dimensão em que rebenta [...] o espaço claro das coisas percebidas e se redobra misteriosamente de um ‘espaço negro’ em que outras presenças são possíveis” (MERELEAU-PONTY, 1996, p.299-300).

A manipulação dessas imagens, em tempo real, aumenta a ‘veracidade’ desse ato ilusório, posso dizer, então, que durante todo espetáculo os computadores e o teatro mantêm em sua natureza uma força interativa. Roberto Freitas opera, de maneira determinante seus softwares, em dois computadores, para que público e artistas respondam a estímulos compartilhados em um espaço-tempo comum, de forma que a realidade virtual seja gerada no momento que ela é experimentada.

A relação ontológica de compartilhamento de espaço-tempo entre espectador e ator/performer, no fenômeno teatral, nesse caso, encontra-se dilatada pela tele/presença e se materializa no espaço da imaginação. Portanto, outra consciência configura-se através das imagens projetadas, e assim, uma nova experiência gera micropercepções diferenciadas em seu grau de afetação132 não se trata de identificação com a personagem e/ou de imposição de uma presença, como nos define Pavis, mas da instalação133 de um não-lugar onde passeiam diversos “eu” e todos encontram seu

espaço por alguns milésimos de segundo.

132 Termo aqui utilizado na acepção Spinoza que foi resgatado por Deleuze, onde existe um

agenciamento percepitivo-sensorial.

133 A palavra instalação, aqui , pode também ser entendida como uma forma artística, espaços sensoriais

para serem ocupados, bastante difundida nos anos 60,por artistas visuais com intuito de buscar uma maior interação entre obra e espectador.

Ao experimentar uma diversidade de estados presenciais o espectador participa de uma experiência sensível baseada no agenciamento, construída através das relações triangulares entre presença, tele/presença e co/presença. A meu ver o efeito de presença se estende às articulações estabelecidas nos campos da demonstração, interpretação e reinterpretação que se instala no espaço cênico através do diálogo entre a performer e o artista áudio/visual, uma relação somática que gera a co/presença. A partir dessa relação, a performer em Somático, produz duas impressões de si mesmo. Ela tem uma relação presencial e tele/presencial com o espaço, essas duas relações geram aos olhos daquele que vê uma relação co/presencial, a performer têm que ter um domínio de sua própria sombra, pois é através do jogo entre claro-escuro, ausência- presença, que é construída sua imagem bidimensional, como afirma Picon-Vallin: “a imagem é construída para ser percebida com o ator, que atua na imagem, em superposição e com a imagem.” (1998,p.28).

O jogo da performer com as projeções de sua própria imagem que aparece “travestida” em vários “seres ficcionais” coloca em evidência a força desse Teatro de Imagens, somos carregados por tele/projeções para ambientes onde a forma dramática clássica é subvertida. A manipulação dessas imagens, no momento que a cena é construída, potencializa a abertura de um espaço comunicativo que nos permite aceder a um mundo invisível em que as palavras não nos permitem chegar. “Talvez seja por isso que o Teatro de Imagens, na tentativa de se emancipar de sentidos pré-concebidos se abrindo a exploração de relações multi-sensoriais, foi considerado como teatro ‘mágico’” (HÉBERT; PERELLI-CONTOS, 1998, p.175)134.

Ao priorizar os signos visuais como elementos determinantes da escritura cênica e colocar a palavra, o texto dramático pré-estabelecido, em segundo plano, esse teatro visual evidência dois pontos importantes. Cito tais pontos para possibilitar uma melhor compreensão da relação triangular dessas 3 categorias de Presença. Nos mostra Chantal Hébert e Iréne Perelli-Contos135, em artigo que analisa a obra do diretor Robert

Lepage que: “o primeiro ponto é um dos pontos chaves do funcionamento da imagem

134 Tradução livre minha do original em francês: C’est peut-être sous cet angle que le théâtre de

l’image,em cherchant à s’émanciper du sens assigné et à s’ouvrir à l’exploration multisensorielle, a été tenu pour “magique”.

135 O artigo citado é “L’écran de la pensée ou les écrans dans Le théâtre de Robert Lepage, apresentado

[...] em sua natureza a imagem funciona por ‘assemblage’, combinação;o segundo ponto trata-se do fundamento de base do pensamento que é a montagem”136 (HÉBERT; PERELLI-CONTOS,1998,p.175). A maneira como o Teatro de Imagens absorve esses dois fundamentos, os quais sempre estiveram relacionados ao cinema e ao vídeo, é de fundamental importância para dilatação dos efeitos de presença. As possibilidades técnicas de corte, fusão, inserção de imagens em interface com

softwares faz com que “a isomorfia entre teatro e realidade virtual possam se

transformar, em um piscar de olhos, em uma heteromorfia irreconciliável, que se apresenta em interface entre o espectador e a cena” (BAUCHARD,1998,p.233). É nesse jogo visual de estranhamento e reconhecimento que atuam as 3 categorias presenciais abrindo janelas com vários pontos de vista na percepção daquele que “se dá a ver” e “aquele que vê”.

Nesse sentido, entendo que antes do Teatro de Imagens:

A imagem teatral era só uma pequena fresta aberta para o mundo: hoje ela está em interação permanente com os modelos de mundo, ou melhor, ela é um espaço de deslocamento, um local de virtualização. A imagem teatral contemporânea não enuncia nada que proceda de qualquer verdade estabelecida a priori; ela oferece um espaço de combinação, de correlação espacial e visual, impensáveis nos meios de representação linear.Com o Teatro da Imagem, a cena se transforma em um espaço de manipulação que permite ao criador (aqui compreendido, a grosso modo, em ator e espectador conectados na construção de sentidos)de se despregar de seus pensamentos, de um pensamento que não oculta mais o risco, que se permite assumir associações de idéias, de elementos, mesmo se eles são contraditórios, um pensamento multidimensional capaz de introduzir diferenças que possuem sua eficiência em si mesmo (HÉBERT; PERELLI-CONTOS,1998,p. 185)137.

Assim, as 3 categorias presenciais não podem ser vistas de forma dissociada, quando

136 Tradução livre minha do original em francês: “[...] le primier pointe l’image, soit la nature spatiale de as

structure qui est assemblage, combinaison [...]; le second concerne le fondement de base de la pensée qui est montage.”

137 Tradução livre minha do original em francês: “L’image théâtrale n’était qu’une percée ouverte sur le

monde: aujourd’hui elle est en interaction permanente avec les modèles du monde, mieux, elle est un espace de déplacements, un lieu de virtualisation. L’image théâtrale contemporaine n’énonce rien qui procéderait d’une quelconque vénité poseé a priori; elle offre un espace de combinaisons, de corrélations visuelles, impensables au moyen de représentations linéaires. Avec le théâtre de l’image, la scène se transforme en un espace de manipulations qui permet au créateur (entendu ici au sens large, puisque l’acteur et le spectateur se relayent pour édifier du sens) de se décharger de as pensée, d’une pensée qui surtout n’occulte plus l’aléa, qui permet d’assumerl l’association de notions, d’idées, d’éléments, même s’ils sont contradictoires: une pensée multidimensionnelle capable de saisir les décalages et qui possède son efficacité propre.”

falamos de Teatro de Imagens. Os corpos se somam para formar um único corpo, em

Somático, o espectador é mais um corpo co/presente que se desloca com e nessa

forma geométrica triangular das relações presenciais. “O homem é um sensorium comum perpétuo, que é tocado ora de um lado ora do outro” (HERDER apud MERLEAU-PONTY,1996, p.315).

Portanto, para aqueles que acreditam que o Teatro de Imagens não permite um diálogo direto entre ator e público, um “corpo-a-corpo" como se costuma falar, a dilatação das categorias de presença nos comprova que esses diálogos ganharam outra dimensão. A realidade natural (tudo que existe fora das criações humanas) e a realidade artificial (tudo que resulta da genialidade humana) dialogam de forma interativa agenciando experiências que nos colocam “na cara” a cada minuto a ambiguidade entre estar-presente / estar-ausente. Posso concluir que, em Somático, o teatro esse espaço de encontros, é o lugar no qual, essas duas realidades (natural e artificial) se (re)inventam para “matar” o tempo e através do jogo dos afetos causar estranhamento, possibilitar vivências, experimentar de outro modo o encontro com o mundo e com o outro, pois: “o corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão [...]” (MERLEAUY-PONTY,1996,p.315).