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2. A TELA NA CENA, A CENA NA TELA

2.2 O ATOR NA TELA: UM DIÁLOGO COM SI MESMO

2.2.2 Eu ator, figura e fragmento

“O ator é aquele que ressurge sempre”. 108

Valére Novarina

Em uma caixa teatral para ser percebido pelos espectadores o ator é “obrigado” a ampliar, dilatar sua gesticulação de forma exagerada para se fazer notar, contudo, essa “dilatação” não evidencia o fenômeno aqui caracterizado como presença cênica. Tal fato faz com que constatemos uma inversão da relação física que o ator estabelece com uma câmera, ou seja, o que no teatro é sinônimo de exagero (ou uma invocação à

107 Afirma Corine Enaudeau no artigo Le corps de l’ absence publicado in FARCY e PRÉDAL, 2001,

citado nas referências dessa dissertação Tradução do autor da dissertação: “Jouer,c’est mettre à nu les impulsions organique de l’humains qui se cachent d’ordinaire sous les clichê des caractères”

108 Valère Novarina, Carta aos atores e para Louís de Funés, Tradução:Angela Leite Lopes, Rio de

ampliação), na tela é uma possibilidade óptica trazida pela aproximação e direcionamento dado pelo enquadramento exercido pelo “olho mecânico” – a câmera.

“O corpo é certamente o primeiro intérprete do real, no entanto é também o seu primeiro enigma, porque compreende o mundo, o questiona lhe responde sem ter necessidade de representá-lo para si ” 109 (ENAUDEAU, 2001, p.44). A aparição da câmera na cena teatral faz com que a imagem do corpo do ator exerça uma credibilidade cênica que dialoga com sua presença física ao vivo. As dimensões desse diálogo acontecem a partir de estratégias cognitivas que transitam entre o real e o virtual (representado pela tela).

A ênfase dada à capacidade expressiva desse ator encontra-se entre a projeção em telas ou em outros suportes e a noção de presença exteriorizada através de suas emoções pelo jogo entre a linguagem do vídeo e a teatralização da mesma. Surge no espaço cênico o campo propício para relações intersubjetivas que se materializam na inter/ação ator/imagem/plateia. Lehman nos mostra que: “Essa ‘presença’ não pode ser definida simplesmente pelo factum da percepção sensorial em si, mas está ligada a ele na medida em que aí se põe em jogo a possível influência real de quem percebe no objeto de percepção” (LEHMANN, 2007, p.366).

A relação do ator com a câmera na cena teatral é distinta daquele que trabalha com a câmera no cinema e/ou na televisão? Aparentemente, poderíamos dizer que ao ter o olho mecânico como mediador essas formas de atuar tornam-se mais próximas. No entanto, existe uma relação complexa quando essas duas categorias de presença (tele/presença e presença) contracenam. Tal relação gera outra categoria de presença: a co/presença. E é nessa relação conflituosa, eu diria, nessa dramaturgia visual que surge o que tínhamos de forma invisível no texto dramatúrgico.

Na atualidade o ator que atua utilizando novas mídias se posiciona entre ser figura (presença física) e fragmento de si mesmo (imagem). A concorrência entre a presença física e a tele/presença eletrônica, imposta pela imagem videografica, determina que o ator seja muitas vezes sombra de si mesmo para que aquele instante cênico ganhe a credibilidade necessária inerente a um fenômeno teatral.

109 Tradução minha do original: “Le corps est certes Le premier interprète du réel, mais aussi la premiére

Esse jogo duplo entre ser visível em determinados momentos e ser invisível em outros momentos para enfatizar a relação entre o eu/ator e o eu/imagem, gera pontos de fuga na percepção do espectador e constrói a espetacularidade necessária ao evento teatral. A materialidade do corpo do ator em movimento na cena é fundamental para a construção de uma “realidade” integrada pelas máquinas que determinam o grau de ilusão que as novas tecnologias convertem para a “caixa cênica” ou “caixa mágica” como irá chamar Robert Lepage.

Existe uma coisa que me fez interessar pelo teatro, é a possibilidade de poder tornar mais lento o tempo, acelerá-lo ou mesmo marcar bem os acontecimentos que devemos relembrar. È interessante ver um personagem em tempo real, que faz uma ação qualquer, banal mas que devemos perceber atrás dele o rastro de sua sombra, a lentidão de seus atos ou uma imobilidade mesmo que o personagem deva ficar em atividade. Isto me fascina muito. [...] Não é como no cinema, onde as imagens são escolhidas com precisão, nesse tipo de teatro existe um lado aleatório que muda a relação do ator110 (LEPAGE, 1998, p.328).

Ao comentar o papel do ator em dois de seus espetáculos111, Lepage nos explica como desenvolveu o que veio a ser chamado de Teatro de Imagens - conceito criado por Bonnie Marranca112. O encenador e ator Robert Lepage conta-nos sobre sua

fascinação por este jogo, entre o real e a possibilidade de manipulação das imagens projetadas, o que gera consequentemente, um efeito de ilusão no tele/espectador. Em suas palavras

O ator deverá produzir duas impressões dele mesmo. Ele deverá ser um ator- da-cena113 e também um ator-da-tela114- desde já bem compreendida esta expressão - quero dizer que ele deverá ter consciência de sua sombra, da mesma forma que tem de sua presença física, ele deverá construir sua imagem bidimensional (LEPAGE, 1998, p.326). 115

110 Entrevista dada por Robert Lepage a Ludovic Fouquet, em Quebec no dia 03 de junho de 1997. 111Os dois espetáculos de Lepage intituilam-se por: Elseneur e Les Sept Branches de la rivère de Ota. 112 Bonnie Marranca utiliza esse conceito para qualificar obras de encenadores como Robert Wilson,

Robert Lepage entres outros. Sobre isso ver MARRANCA,Bonnie. Ecologies of Mind. Baltimore (Md): Jonhs Hopkins University Preas, 1996.

113 acteur “scénique” assim posto no original 114 acteur écranique assim posto no original

115 Tradução livre minha da entrevista dada por Robert Lepage a Ludovic Fouquet em Québec no dia 03

de junho de 1997, retirada do original: “L’acteur doit produire deux impressions de lui-même. Il doit être um acteur “scénique”, Il doit être aussi “écranique” – j’ai déjá entendu ce mot -, c’est-à-dire qu’il doit être conscient de son ombre, autant que de sa présence physique, Il doit construire son image bidimensionnelle.”

Tais afirmações fundamentam como o ator deve agir com seu corpo quando contracena com essas máquinas de imagens. Cabe-nos refletir sobre os efeitos que nos comenta Lepage como sua fascinação em parar, acelerar ou tornar lento o tempo e o jogo do ator com si mesmo (LEPAGE, 1998, p.328). A fabricação de tais efeitos em tempo real, à cena aberta, desloca a relação previsível da montagem das imagens, feitas através de edição prévia. O cinema e a televisão116, que com algumas experiências ao vivo, antes do surgimento do vídeo-tape, sempre “namoraram” a efemeridade e a imprevisibilidade, apesar de seus planejamentos técnicos serem fatores de limitação. Fato que faz com que o cineasta surrealista espanhol Luis Buñuel em busca de tal imprevisibilidade afirmasse que o acaso é o senhor de todas as coisas117. No Teatro da Imagem a mesma estória pode estar sendo contada simultaneamente pelas duas linguagens teatro e vídeo.

Nesse Teatro em que as imagens são elementos importantes para a construção de uma dramaturgia visual. O ator caminha entre sombras e parece ver os “fantasmas shakesperianos” transformarem sua forma de atuar. As energias se cruzam, o homem e as máquinas dialogam criando outra categoria de presença. Linguagens aparentemente distanciadas se hibridizam, para abrir as capacidades perceptivas e sensoriais do espectador. E como nos afirma o “bruxo imagético” da cena contemporânea Lepage: “O teatro e o cinema do futuro118 são duas formas de expressão que estarão misturadas, e isso já começou”(LEPAGE, 1998, p.332).

116 Quero chamar atenção para alguns experimentos televisivos na atualidade buscam este “gostinho”

ilusório da imprevisibilidade. Qual seria verdadeira razão para tais experimentos? Bom, penso que este é um assunto que deveríamos retomar em outro momento.

117 Ver: “Mon Dernier Soupir”, Luis Buñuel, Paris: Robert Lafond, 1982,p.265. 118 Eu diria o audiovisual