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2. A TELA NA CENA, A CENA NA TELA

2.1 A CÂMERA NO PALCO

2.1.2 Vídeo: uma forma de ver e se dar a ver

“Toda imagem é, então, objeto de uma luta onde a sombra procura luz 86.”

Bruno Tackels “Existo mais enquanto imagem do que enquanto ser real, pois minha vida consiste

em fazê-las.” Godard

83 Conceito que nos oferece uma visão dos processos multifacetados que caracterizam o teatro dos anos

1970 até os dias atuais. Embora seja um conceito bastante discutível em relação a sua pretensiosa abrangência, torna-se importante para o entendimento da cena contemporânea. Ver: LEHMANN, Hans- Thies. Teatro pós-dramático, São Paulo: Cosacnaify: 2007, citado nas referências.

84 Sobre isto ver DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do

espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 237 p. Tradução Estela dos Santos Abreu.

85 De acordo com Philippe Dubois (2004), a aparição do vídeo na primeira metade dos anos 1960 se

definiu como uma arma contra a televisão.

As facilidades determinadas pelo dispositivo vídeo87 são de certa forma elementos determinantes para o povoamento dos palcos com câmeras, monitores e telas desde meados dos anos 1960 até hoje. Nesse intuito, farei uma breve definição do aparato tecnológico que terá influência direta na transformação e construção do estado de presença do ator na cena contemporânea.

A palavra video (eu vejo) é a primeira pessoa do presente do verbo videre (ver). Essa informação nos interessa nesta pesquisa, pois sua utilização sintática flutua, normalmente, aparecendo antes ou depois do nome — “verbo que engloba toda ação constitutiva do ver: video é o ato mesmo do olhar” (DUBOIS, 2004, p.71). A máquina vídeo rompe com as marcas do espaço tradicional, dirigindo nosso olhar para outro lugar, fora da perspectiva ilusória, existente até então, e a que o palco italiano nos acostumou. O olhar do espectador, através das projeções vídeograficas, desloca-se em um campo prismático e fractal do espaço cênico. Segundo Frédéric Maurin88, tal

fenômeno acontece no momento em que:

[...] o vídeo desintegra o espaço euclidiano homogêneo e o recicla em um espaço descentrado, descontinuo e acidentado. O campo óptico se desestabiliza porque seus objetos não ocupam a mesma natureza nem o mesmo grau de realidade (MAURIN apud CHALAYE, 1998, p. 113).

Os espaços de projeção de vídeos (telas ou monitores) se tornam mais um elemento incorporado na cena e propõem ao espectador outra relação com o tempo e o espaço. O efeito de ilusão proposto pelo vídeo não ocupa o espaço da representação do real, ele está colocado em um espaço intermediário que se encontra entre a materialidade da cena, em si, e a imaterialidade das imagens projetadas em uma tela: “O vídeo é bem o lugar de todas as flutuações [...]” (DUBOIS, 2004, p. 72) e é nesse espaço feito para o diálogo entre essas duas realidades que são fabricadas as conexões por aquele que vê. O espectador torna-se, ao mesmo tempo, um tele/espectador: aquele que se encontra “mixado” entre o jogo simbólico da imagem reabilitada em sua teatralidade e a censura dos pensamentos regidos pela imaginação.

87 É importante frisar que o vídeo instaura novas modalidades de funcionamento do sistema de imagens.

Estamos diante de uma nova linguagem, de uma nova estética, diferente do que o cinema vinha apresentando.

88 Ver Frédéric Maurin, “Scène, mensonges et vídeo”, in Théâtre/Public, nº 127, Gennevilliers, janvier-

A caixa cênica é invadida pela câmera que aproxima, manipula e reforça o olhar sobre a ambiguidade do espetáculo teatral aprisionado entre o que é “verdadeiro” (real) e o que é “falso” (imagem). O olho mecânico seleciona e enquadra o que deve ser visto. Percebo, assim, que a inserção do dispositivo vídeo nos palcos parece reforçar a ideia de que a caixa cênica ganha outra dimensão e transforma-se em uma “caixa mágica”, alimentando a imaginação da recepção – que por sua vez oscila entre dois espaços físicos: da projeção e da caixa cênica em si mesmo. Para Giorgio Corsetti89 “a relação entre a frieza do vídeo e o calor do corpo humano desperta imediatamente outras possibilidades” 90 (CORSETTI, 1998, p. 307). Essas outras possibilidades apresentadas

por Corsetti acontecem porque “o vídeo deve ser trabalhado em um nível diferente do que o de uma simples ilustração imagética. Ele deve criar uma situação conceitual entre as palavras e a situação” 91 (CORSETTI, 1998, p. 309).

Poderíamos então pensar que a chegada do audiovisual nos palcos proporciona ao espectador múltiplas possibilidades de escolhas reelaboradas através de efeitos ópticos de aproximação ou distanciamento, daquilo que ele (o tele/espectador) quer ver, assim:

Este poderá ver não somente a imagem selecionada pelo encenador (em tantas imagens quantas câmeras ele dispuser), mas ser-lhe-ão projetadas várias imagens possíveis de um mesmo momento do espetáculo e ele escolherá sua visão (ASLAN, 1994, p. 313).

Esse aspecto é de fundamental importância para a compreensão da nova relação que se estabelece entre aquele que assiste e aquele que é assistido. Instaura- se uma relação entre o conjunto do que está sendo colocado em cena, a presença real do ator e sua tele/presença, ou seja, sua presença eletronicamente re/presentada em uma tela são re/configuradas a partir da percepção individual de cada espectador, que oscila seu olhar, a todo o momento, entre a tela (de projeção) e o palco.

89 Giorgio Barberio Corsetti é considerado um dos maiores diretores do teatro de pesquisa italiano,

conhecido por seus trabalhos com projeção junto com o Studio Azzurro, um grupo internacional de artistas da nova mídia, fundado em 1982, com sede em Milão.

90Tradução livre minha do original em: “le rapport entre le froid de la vidéo et la chaleur du corps faisait

immédiatement éclater les choses. A palavra choses foi traduzida aqui como possibilidade para contextualizar minha argumentação.

91Tradução livre minha do original em francês: “[...] la vidéo opère sur un niveau différent de celui de

Considerando o processo de constituição do espaço construído pela câmera e colocado na tela, percebo que muitas vezes o diálogo entre essas duas realidades diferentes - o enquadramento92 e a caixa cênica – gera um estado de “confusão”, ou

melhor dito, de conflito - fundamento essencial para um texto dramático. Compreendo que nesse instante, o conflito não aparece somente na estrutura intertextual: ele se dá a

ver de forma concreta no espaço, pois o tele/espectador, nesse caso, tem elementos

para editar93, “a olhos nus”, a estória que ele quer ver ser contada. O vídeo se introduz na cena como mais um espaço que amplia a capacidade de agenciamento do espectador sobre a linha narrativa daquilo que está sendo contado/mostrado. Assim,

O vídeo é, na verdade, esta maneira de pensar a imagem e o dispositivo, tudo em um. Qualquer imagem e qualquer dispositivo. O vídeo não é um objeto, ele é um estado da imagem. Uma forma que pensa. O vídeo pensa o que as imagens (todas e quaisquer) são, fazem ou criam (DUBOIS, 2004, p. 116).

Uma nova perspectiva se instaura, o vídeo se insere como excrescência, abre e fecha parênteses no interior da estrutura narrativa. Atravessa o espaço cênico, provocando, sobretudo, uma quebra com a homogeneidade. Desdobra e desafia a relação do ator com o espaço criando a relação de campo e contra-campo. A relação de ilusão, inerente à caixa cênica, ganha uma personalização dependendo da forma como são operacionalizados os recortes daquilo que é visto. O Teatro de Imagens aparece nesse contexto como “[...] Uma máquina que produz metáforas onde o primeiro “motor” da cadeia de transformação é a “caixa negra” de cada um [...]” (HÉBER; PERELLI-CONTO, 1998, p. 184)94, ou seja, essa máquina possibilita que nossos pensamentos, ou melhor, nossa imaginação se distancie do momento presente (“real”) e nos leve para um mundo além daquele espaço físico, propriamente dito, onde o espectador está inserido. Para o ator e diretor canadense Robert Lepage, um dos maiores difusores do Teatro de Imagens, a introdução do vídeo na cena contemporânea é comparada à aparição da milenar técnica de sombras chinesas.

92 Aquilo que está sendo mostrado pela câmera, que foi colocado no quadro. Também conhecido como

plano ou take.

93 O termo editar é aqui utilizado como na linguagem videográfica: é a forma como são selecionadas ou

agrupadas as cenas gravadas em função da linha narrativa de determinada estória a ser contada.

94 Tradução livre minha do original em francês: “[...] une machine à produite des métaphores dont le

Eu comparo freqüentemente [sic] a utilização do vídeo a todas as técnicas milenares de sombras chinesas. Essa “tecnologia” consiste em a luz de uma chama ou de uma lâmpada elétrica, e um sujeito que vem interromper a luz para criar uma poesia visual ou uma linguagem visual. Tal “tecnologia” é aceita pelo espectador por que ele sabe como é feita, afinal todo mundo um dia brincou com sua própria sombra (LEPAGE, 1998, p.326). 95

Esse tipo de teatro traz um envolvimento sensório-perceptivo que conecta o tele/espectador a aceitar de forma evidente o espaço teatral como um espaço de convenções. A integração de uma série de elementos técnicos como imagens, luz, sombras, atores, telas, etc., transforma esse encontro comunitário entre artista e tele/espectador em um convite para uma viagem conduzida pela imaginação em um mundo “(in)imaginável” por cada um deles: “A facilidade de utilização inerente ao vídeo permite, enfim, efeitos do tipo interativo que desconcertam o espectador” (PICON- VALLIN, 1998, p. 23)96 – fazendo com que ele possa sentir-se livre para criar suas

próprias narrativas, e consequentemente, interagir com as imagens projetadas e a presença física (real) do ato na cena.

Dessa maneira, a autora citada argumenta que os recursos de montagem diluem a relação tempo e espaço. As imagens projetadas nos fazem perceber um teatro dentro do próprio teatro. Tal recurso técnico introduz múltiplas possibilidades de variação em relação à distância e aproximação física e ou mental entre aquele que se dá a ver e aquele que quer ver (PICON-VALLIN, 1998, p. 23).

Assim, o Teatro de Imagens traça um caminho que explora os recursos audiovisuais em diálogo direto com o que acontece ao vivo na cena teatral. Nesse fluxo constante entre a descoberta de um mundo físico, real, e o mundo virtual das projeções de imagens, constrói-se a “engrenagem” de um teatro meio humano, meio máquina. O olho mecânico, a câmera, funciona como uma lente de aumento que dilata a percepção sensorial daquele que assiste e estabelece um elo entre os dois mundos.

Nesse contexto, a obra teatral não é completamente realizada somente no palco: convém ao artista e ao espectador construírem uma rede de troca rizomática e dilatada

95 Tal afirmação é oriunda de uma entrevista feita com Robert Lepage escrita por Fouquet, em 3 de junho

de 1997, Québec.

96 Tradução livre minha do original em francês: “La facilité d’utilisation prope à la vídéo perment enfin des

em seus sentidos. Tal rede vai da periferia ao interior da obra, e é capaz de integrar e induzir as imagens e os sons propostos a uma memória personalizada (HÉBERT; PERELLI CONTOS, 1998, p. 185-186) 97.

Lepage98 tem como um dos princípios básicos de sua criação artística a ideia de

um holograma99, onde cada partícula da cena contém em si mesmo o todo que está sendo representado: “Algumas cenas comportam em si mesmo um verdadeiro microcosmos do espetáculo e transformam-se em um holograma, onde cada partícula contém a imagem completa do objeto representado” (LEPAGE apud HÉBERT; PERELLI-CONTOS, 1998, p.193) 100.

Os suportes de projeção de imagens utilizados na cena contemporânea (telas, monitores, MP4, paredes, e o próprio corpo do ator) abrem e fecham as perspectivas visuais desse espectador, mostrando que a caixa teatral torna-se “caixa mágica” que explora a capacidade imaginária do tele/espectador. Afinal, que tipo de sensação é experimentada pelo espectador e, por conseguinte, pelo ator, em termos de percepção de um espaço onde o sonho e a realidade se fundem? Pois bem, haja vista que em uma época onde as telas invadem nossa vida cotidiana como símbolos de uma transformação tecnológica, a câmera colocada na cena, diretamente, ou apenas representada pelas imagens projetadas, torna-se um prolongamento do olho observador do espectador, conduzido de forma detalhada pelo olho que se encontra atrás da câmera (diretor/diretor de fotografia) – cujo objetivo é abrir canais perceptivos (que se cruzam no espaço transitório entre a tela e o espaço cênico como um todo), os quais alimentam a imaginação do tele/espectador.

Os dispositivos midiáticos (principalmente a câmera) comentados na presente

97 Tradução livre minha do original em francês: “Dans ce contexte,l’oeuvre théâtrale n’est pas

complètement réalisée sur scène;c’est à chacun (artiste et spectateur) de construire um réseau de renvois internes,d’étendre les rhizomes de sens,de circuler à l’interieur de l’oeuvre, puis d’intégrer les images et les sons proposés à une mémoire personelle”.

98 È importante frisar que não tivemos como ponto de análise nenhuma das obras de Robert Lepage,

apenas nos apoiamos em alguns fundamentos teóricos propostos pelo próprio Lepage em seu processo de criação e em algumas considerações traçadas sobre sua obra pelos autores que estamos citando nesta dissertação.

99 Fotografia que produz uma imagem tridimensional e que devido a uma manipulação do feixe de luz põe

à mostra as imagens que estão superpostas. (Definição retirada do Dicionário Eletrônico Houaiss, citado nas referências).

100 Tradução livre minha do original em francês: “Certaines scènes [prennent] l’allure de véritables

microcosmes du spectacle et deviennent comme um hologramme, dont chaque particule contient l’image complete de l’objet représenté”.

dissertação estão espalhados nas esquinas, nas ruas, nas praças, nas casas, pois fazem parte de um grande teatro social de imagens. Nesse sentido, a introdução dessas ferramentas no espaço cênico – propriamente dito – faz com que o ator tenha que acompanhar sua época, levando-o a aperfeiçoar o seu estado de presença, quando dialoga com uma câmera, independentemente de atuar ou não para o cinema ou para a televisão, como comentamos no capítulo anterior. Afinal, como afirma Bruno Tackels, “o teatro jamais deixou de colocar em questão o mundo que ele representa” (TACKELS, 1998, p. 124). Portanto,

O corpo morada dos outros, reserva de histórias que foram sendo armazenadas em pontos tão resguardados, tudo o que de nós mesmos nos protegemos, nossos fantasmas, nossos medos, culpas, repressões, fantasias, desejos mais ocultos, falta de carinho e aconchego, pedidos mudos de ajuda (AZEVEDO, 2008, p. 128-129).

É no corpo do ator na atualidade101 e na antiguidade que se escreveram e se escrevem os vestígios, sejam eles tênues ou densos de sua presença. É esse corpo que sofre consequências diretas da ação teatral e revela sua vida pelos poros, ainda que seja através de uma imagem projetada.

A fronteira existente entre a presença e a tele/presença pressupõe um desafio a ser transpassado pelo ator, já que, seu corpo (em carne e osso) é revelado pelas múltiplas imagens espalhadas pelos computadores, telas, ou monitores em diversos espaços da cena. Dentro dessa perspectiva, o ator passa a guiar sua presença pelo jogo entre seu corpo vivo, presença real, e seu corpo re/cortado, esquadrinhado, colocado em uma tela ou monitor: um jogo espectral entre ele – ator – e os fragmentos de si mesmo em estado de tele/presença - como afirma Lepage (1998, p.326) um jogo com a própria sombra, um diálogo com sua imagem projetada. Passemos agora a questão relativa à dimensão do diálogo entre o ator e a câmera.

101 Alguns autores já começam falar na existência de um ator pós-dramático. Preferimos não usar tal

denominação. Para quem quiser saber mais sobre o ator pós-dramático, ver: “O pós-dramático: um conceito operativo”, J. Guinsburg e Silvia Fernandes (org.). São Paulo: Perspectiva, 2008 (Coleção Debates).