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2. A TELA NA CENA, A CENA NA TELA

2.2 O ATOR NA TELA: UM DIÁLOGO COM SI MESMO

2.2.1 Entre imagens e sombras

“Quem está ali, quando o homem não está?” 102

Maurice Blanchot

A dimensão do corpo de quem está presente diante dos olhos daquele que vê encontra-se na fronteira entre a sombra e a projeção de imagens. A presença concreta desse ator é designada por sua capacidade de expandir até o espectador uma série de experiências sensoriais ao mesmo tempo em que se esconde atrás das imagens ou nas próprias imagens, transformando-se em sombra. Qual será a dimensão desse diálogo entre o ator e a câmera, tendo em vista que se fabrica outro tipo de presença?

A adaptação do ator contemporâneo ao olho mecânico da câmera faz com que pensemos no começo do cinema, início do século XX. Dessa maneira, procurarei percorrer alguns momentos em que começa esse diálogo, “no inicio, o ator de cinema foi um ator de teatro que descobria o registro da câmera” (ASLAN, 1994, p. 211). Tendo a pantomima como seu maior suporte, durante o cinema mudo, o exagero na fisionomia e nos movimentos dava a tônica dessa descoberta:

O cinema falado afastou do métier os menos dotados para a palavra, mas com frequência [sic] o ator do cinema falado não era mais sóbrio que o do cinema mudo; a palavra e a imagem cometiam pleonasmo, e a teatralidade, continuamente combatida, renascia sob outras formas (ASLAN, 1994, p.211).

O ator passa a deslocar-se no espaço em função da câmera, dos limites impostos pelo enquadramento. Sua presença está diretamente ligada a como e a que parte do seu corpo está sendo mostrada pela câmera. Suas emoções devem ser transmitidas através desse recorte que será projetado em uma tela:

102 BLANCHOT, Maurice.L’entretien infini, Paris: Galimmard, 1969, p. 363. Tradução livre minha do

A imagem que vemos – ou que cremos ver – [...] não passa, como se sabe, de um simples reflexo sobre tela branca de uma imagem vinda de outra parte (e invisível enquanto tal). Esse reflexo que se oferece em espetáculo (movimento, tamanho etc.) é literalmente impalpável. Nenhum espectador pode tocar esta imagem. Podemos eventualmente tocar a tela, mas nunca a imagem (DUBOIS, 2004.p.61).

Nos espetáculos teatrais que utilizam projeção, essa relação entre o palpável - ator fisicamente presente - e o que não é palpável, sua imagem projetada, torna-se um ponto fundamental para a “escritura visual”, para a aparição de uma “dramaturgia visual”. Ainda que exista uma resistência por parte de alguns criadores e atores de teatro, nota-se a influência e utilização das telas no palco contemporâneo como algo evidente. Uma cultura audiovisual com suas ferramentas tecnológicas está transformando a cena teatral. A dinâmica relacional entre o palco e plateia; o ator e o espaço cênico; e ator, espaço cênico e público está sofrendo mudanças em sua configuração comunicacional. Diante disso, afirma Picon-Vallin (1998, p.35)

As tecnologias são animais estranhos, elas não são somente instrumentos que tornam mais fácil nosso trabalho, a interatividade ou o entretenimento, elas são também experimentos sociais, a utilização das mesmas determina mentalidades e estruturas coletivas 103.

Nesse sentido, a imagem de corpos projetados em uma tela durante um espetáculo abre o espaço, desloca a característica intimista do encontro – ator/espectador – para fora daquele espaço que se restringe a caixa teatral. No momento que uma câmera registra o ator e o projeta em uma tela, o espectador adquire, neste instante, várias possibilidades de olhar para este ator. Outras janelas são abertas na perspectiva frontal desse espectador. Nas palavras da autora

as possibilidades de estratificação e de superposição de imagens intensificam ainda mais a coexistência de espaços e tempos heterogêneos no palco, em um processo de hibridização aonde se aprofunda o espaço intermediário -

103 Citação feita por Béatrice Picon-Vallin com a seguinte nota de roda pé: Omar CALABRESE, citado por

Paolo ROSA,”Images Sensibles(Du village global à l’homme total ?,[Studio Azurro], in Vidéoformes, n 15, Clermont – Ferrand, avril 1997,p.16. Tradução livre minha do original: “ les tecnologies sont des bêtes étranges, elles ne sont pas seulement des outils qui rendent plus faciles le travail, l’interactivité ou Le divertissement, elles sont aussi des expérimentations sociales, leur utilisation em fait determine des mentalités et des structures collectives”.

característico do espaço teatral (PICON-VALLIN, 1998, p.27).104

O teatro atual, de certa forma, não utiliza as câmeras, os projetores, o vídeo, os computadores e a tela como simples objetos absolutos da cena. A relação entre esses utensílios e o ser humano desestabiliza a noção de uma (re)presentação naturalista, tão valorizada até hoje no métier teatral. O jogo entre essas máquinas, ferramentas tecnológicas e os atores, determina que o ator fabrique uma relação presencial de outra natureza. Quero enfatizar que quando falo de outra natureza presencial, não me refiro às atuações ditas naturalistas105. Ao final dos anos 1940, momento em que o cinema

tentava se afirmar como linguagem, Charlles Dullin nos recorda

ainda que o teatro e o cinema sejam duas artes bem diferentes, elas têm um inimigo em comum: O Naturalismo. O Naturalismo tem uma influência nefasta sobre todas as artes, porque ele nos conduz, inevitavelmente, a uma arte sem imaginação106 (DULLIN, 1946, p.143-144).

Entendo que a presença é fabricada como tele/presença e acontece através de um jogo de descobertas “um jogo sensual” e imaginativo entre a câmera, instrumento óptico - com poderes de aproximação e distanciamento - e o corpo do ator. Ao estudarmos a fenomenologia dessa presença entendemos a força imperativa do instrumento mediador que expõe a condição humana do ator, pois scaneia sua intimidade e projeta na tela.

As evidências da capacidade invasiva da câmera acontecem de forma paradoxal, existe algo além da imagem, algo que está colocado atrás da própria imagem e está relacionado à nossa condição de seres humanos, não é necessariamente o que vemos que nos traz o tom dessa relação presencial por que “atuar é desnudar-se e fazer com que apareçam os impulsos orgânicos do humano que

104 Tradução minha do original: “Les possibilites de stratification, de surimpression intensifient encore la

coexistence d’espaces et de temps hétérogénes sue la scéne, dans um processus d’hybridation ou s’approfondit l’entre deux – caractérisque de l’espace théãtral”.(PICON-VALLIN,1998,p.72)

105 Esse termo tem sido usado de forma equivocada desde os primórdios do cinema no intuito de buscar

uma tal atuação naturalista(sic).Entendo o naturalismo como um movimento artístico com ênfase na literatura e jamais como uma forma ou método de atuação. Questiono tais práticas por serem imediatistas e visarem um resultado para a indústria cinematográfica. Lee Strasberg foi e ainda é até hoje um dos maiores difusores de tal nomenclatura como um método de atuação para cinema, através do seu Actors Studio.

106 Tradução livre minha do original:”Si Le théâtre et le cinema sont deux arts bien differénts, ils ont um

ennemi commun: Le Naturalisme. Le Naturalisme a une influence néfaste sur tous les arts parce qu’il conduit inévitablement à un art sans imagination.”

se esconde atrás da personagem” (ENAUDEAU, 2001,p.35)”107. É nessa perspectiva que se constrói outra possibilidade de presença entre o corpo que é visto e o corpo que não é visto. Essa percepção é trazida por Merleau-Ponty da seguinte forma:

aquele que percebe não está desdobrado diante de si como uma consciência

deve estar, ele tem uma espessura histórica, retoma uma tradição perceptiva e é confrontada com um presente. Na percepção, nós não pensamos o objeto e não nos pensamos pensando-o, nós somos para o objeto e confundimo-nos com esse corpo que sabe mais que nós sobre o mundo, sobre os motivos e os meios que se tem de fazer sua síntese (1996, p.320).

Assim, faz-se necessário que o ator compreenda a importância da ausência como totalidade do seu corpo presente no fenômeno teatral – como vimos no capítulo 1 - pois a consciência do ator sobre sua imagem projetada em uma tela e a ausência desta consciência são elementos fundamentais para o efeito de presença. Cabe ressaltar que muitas vezes valoriza-se apenas o que é visto de forma ampliada pelo enquadramento e projetado na tela. No entanto, o que está fora de enquadramento, isto é, o que não está sendo projetado na tela, tem a mesma importância do que está sendo visto, já que todo o corpo está em função deste enquadramento.