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As perspectivas marxistas: da dominação e reprodução capitalista aos arranjos de poder

2. A REGIÃO E SUA DISCUSSÃO: DA CLASSIFICAÇÃO DE ÁREAS À

2.2 As perspectivas marxistas: da dominação e reprodução capitalista aos arranjos de poder

Especificamente dentro da ciência geográfica, o pensamento regional emerge a partir da crítica radical realizada a partir da década de 1970, que propõe uma renovação da disciplina à luz do materialismo histórico. Neste sentido, Haesbaert (2014) aponta para um movimento duplo: alguns dos teóricos abordam a região como resultado da articulação espacial GRFDSLWDORXWURVIDODPGD³PRUWH´GDUHJLmRSHODKRPRJHQHL]DomRGRHVSDoRSHORFDSLWDO Nesta parte do trabalho, são usadas as contribuições de três autores: Alain Lipietz (1988), David Harvey (2013) e Francisco de Oliveira (1981).

Lipietz (1988) propõe uma análise da região a partir da articulação dos modos de produção no espaço. Há um modo dominante e um modo dominado, próximo daquilo que estabelecia o pacto colonial: há a tendência de que um grupo social estabeleça uma relação de dominância com espaços regionais inteiros. Tal relação teria ligação com o estágio técnico de evolução das sociedades. A articulação entre estes modos de produção dá origem a uma HVWUXWXUDUHJLRQDOVHQGRSDUD/LSLHW]³XPDUHJLmRGHDUWLFXODomRGHUHODo}Hs sociais que não dispõe de um aparelho de Estado completo, mas onde se regulam, todavia, as contradições VHFXQGiULDV HQWUH DV FODVVHV GRPLQDQWHV VRFLDLV´ S   2 SURFHVVR RFRUUH HP HVWiJLRV inicialmente, o capital rompe a autossuficiência do modo com o qual está se articulando (entra aqui o papel da colonização); daí pratica trocas com os setores da divisão do trabalho onde não domina; finalmente, os produtos advindos do modo capitalista pela importação tornam-se mais baratos que os do modo dominado, completando o ciclo (e criando, obviamente, dependência). Desta forma, para Lipietz, as regiões são definidas a partir destas relações de dominação impostas entre elas. Ele articula a existência da região com a divisão do trabalho imposta pelo capitalismo, na medida em que, após a dominação inicial, passa a vigorar uma divisão espacial do trabalho que origina as diferenciações regionais.

A visão de Lipietz confronta, claramente, a perspectiva da Geografia teorética- quantitativa, ao abordar a perspectiva de que as regiões são produzidas a partir de relações desiguais e não apenas organizadas a partir das funções assumidas pelas regiões. Neste sentido, esta parte da crítica marxista busca deslocar a visão do espaço, de simples organização para uma produção desigual. Esta primeira aproximação aponta para um modelo regional pautado quase na perspectiva de dominação de uma região sobre a outra, não especificamente de sociedades umas sobre as outras. Além disto, as relações de dominação são fundamentais para a compreensão da forma como os espaços regionais são produzidos, mas acabam por resvalar

num modelo de região fechado, dominado por outra região, sendo incapaz de enxergar, por exemplo, como fatores internos levam à situação de pobreza ou às desigualdades internas.

Neste mesmo quadro, há o trabalho de David Harvey (2004; 2013). Seu intento inicial é a espacialização dos conceitos marxistas, considerando a lacuna existente na obra de 0DU[SRUFRQWDGHXPFHUWR³PXWLVPR´VREUHRHVSDoR6XDDUJXPHQWDomRDVVLPcaminha no sentido de demonstrar que o espaço é uma categoria fundamental à existência e reprodução do capitalismo, tanto quanto o tempo. Ele identifica a seguinte contradição: dado que, no capital, há uma tendência de aniquilação do espaço pelo tempo, por meio, por exemplo, da construção de infraestruturas, o capital precisa organizar o espaço, afim de superar as limitações que este impõe à sua reprodução. A partir dos ajustamentos no espaço, é possível reduzir o tempo necessário de circulação do capital, um dos objetivos fundamentais da implantação de infraestruturas. Surge, deste intuito e segundo Harvey, uma coerência estruturada, que precisa organizar no espaço os processos de produção e consumo.

Esta coerência estrutural acaba por ser minada e contradita por algumas tendências próprias do capital, das quais Harvey destaca as pressões sofridas por uma determinada região, que pode levar a fluxos não desejados pelo capital (como a entrada de imigrantes), ou ainda a maior liberdade locacional que os empreendimentos gozam a partir dos avanços tecnológicos (permite que escolham outras regiões). Harvey aborda ainda a questão da necessidade da construção de estruturas fixas no espaço que permitam o desenvolvimento do capital, retomando a importância do espaço e mesmo das regiões. Desta necessidade de estruturas fixas, Harvey busca aproximar o pensamento histórico de Marx do geográfico de Lênin, apontando para a necessidade da criação de uma aliança de classes regional para que o desenvolvimento capitalista ocorra. Harvey aponta que o capital se incumbe da tarefa de criar as duas características regionais. Entra aqui a importância do Estado, elemento capaz de forjar tanto as estruturas quanto a aliança entre as classes. O tema das estruturas espaciais fixas será retomado a frente, na parte do capítulo três que discute o tema das infraestruturas na criação (ou suporte) de redes e fluxos.

Harvey apresenta, desta forma, uma visão em que a produção das regiões é algo ligado a alianças de classes formadas, e, a partir delas, das estruturas criadas para permitir e acelerar a circulação do capital. Neste sentido, por este acordo formado entre as classes, pode- se enxergar certa convergência em relação a visão de Lipietz, em que pese uma certa UHODWLYL]DomR GD SHUVSHFWLYD GR ³LPSHULDOLVPR´ H[HUFLGR HQWUH XPD UHJLmR H RXWUD +DUYH\ avança também ao incluir o tema das estruturas criadas como essenciais na perspectiva do

entendimento da região, uma vez que elas se tornam o elemento palpável da produção das regiões.

Outro autor fundamental à corrente em discussão é Francisco de Oliveira (1981), especialmente por sua obra em torno da região Nordeste. Antes de falar especificamente sobre o desenvolvimento nordestino, aborda alguns temas importantes em sua exposição, como a questão do planejamento regional, buscando analisá-lo a partir dos desequilíbrios regionais brasileiros e da atuação do Estado brasileiro, que se deu apoiada na perspectiva estruturalista, esteio das políticas nacional-desenvolvimentistas do séc. XX. Desta forma, refletindo especificamente sobre o que seria uma região, Oliveira aponta para a tendência ao sumiço destas a partir de uma homogeneização do capital (como o que ocorria, então, nos EUA) ± no Brasil haveria ainda um longo caminho para chegar a tal estágio. Neste sentido, para aquele país, ele DILUPD³QmRKiPDLVUHJL}HVQRSDtVQRUWH-americano; há zonas de localização diferenciada de atividades HFRQ{PLFDV´ S  ± JULIR GR DXWRU  'Dt HOH FRQFHLWXD TXH ³DV UHJL}HV VHULDP definidas pelo caráter diverso das leis de sua própria reprodução e pelo caráter de suas relações FRPDVGHPDLV´ S (OHDSRQWDDVVLPSDUDXPFRQFHLWRGHUHJLmRTXHSULYilegia as formas de reprodução do capital no espaço, apontando para a tendência de homogeneização anteriormente posta ± ainda que, não plenamente realizada no Brasil, já que haveria aqui ainda regiões desiguais e diferenciadas.

Em Oliveira encontra-se uma relativização da própria ideia de região, o que torna sua preocupação em delimitá-las reduzida. Apesar disto, o Nordeste retratado em sua obra não tem suas fronteiras contestadas ou mesmo opostas, sendo aceito como região ali já posta (ou produzida) pela marcha do capital no espaço brasileiro. É bem verdade que ele reconhece a H[LVWrQFLD GH ³YiULRV 1RUGHVWHV´ DR ORQJR GD KLVWyULD EUDVLOHLUD PDV QmR VH TXHVWLRQD especificamente sobre o Nordeste em si. É como se desde a implantação do capitalismo no país, ainda na colônia, o capital houvesse definido alguns papeis para a região, sem antes mesmo tê- la criado. Da perspectiva dos papeis desempenhados pela região pode-se resgatar um tema essencial no entendimento da perspectiva de Oliveira, que é a questão da divisão regional do trabalho. As regiões, como entes econômicos e políticos, desempenham papeis a elas atribuídas pela organização espacial do capitalismo, que articula as partes ao todo, ou a uma lógica única. Como se viu, na perspectiva de Oliveira à mediGDTXHDV³EDUUHLUDV´HVSDFLDLVVmRUHGX]LGDVRX relativizadas, o capital tenderia a homogeneizar o espaço, eliminando as regiões.

Assim, a visão proposta por Oliveira se contrapõe, relativamente, à perspectiva de Harvey e Lipietz no sentido de enxergar DVUHJL}HVFRPRFULDo}HV³SURYLVyULDV´GRFDSLWDOj medida que este precisa suplantar as diferenças regionais. Por outro lado, ao apontar que o

capital tem este objetivo, Oliveira converge com as ideias de Harvey, que analisa a composição das regiões justamente a partir da implantação da infraestrutura necessária à sua reprodução. Por ter uma visão de dissolução das regiões, ainda que partindo da premissa da divisão regional do trabalho (que parece comum à Harvey e Lipietz, especialmente quando estes tratam das alianças de classe ou da dominação de uma região por outra), Oliveira acaba por convergir com a visão de Albuquerque Jr. (1999) da corrente pós-moderna, brevemente comentadas a seguir: propõe, de certa forma, não haver base espacial específica que crie (ou seja parte do processo de criação das regiões) as regiões, sendo estas pura produção social.

Considerando a questão dos processos espaciais que atuam na produção dos espaços regionais, Lipietz e Harvey apontam que estes devem ser estudados a partir do arranjo de poder que se forma na produção das regiões, responsável, desta forma, pela produção da estrutura QHFHVViULD/LSLHW]HQ[HUJDTXHWDOSURFHVVRRFRUUH³GHIRUD´GDUHJLmRDSDUWLUGDUHODomRGH dominação de uma região por outra, ao passo que Harvey considera haver uma aliança de classes que pode ser interna à região. Oliveira analisa também uma produção a partir de fatores externos, notadamente a divisão regional do trabalho, organizada pelos centros do capitalismo global e que acaba por disciplinar o processo produtivo e a organização regional global. Analisando as contribuições acima, pode-se apontar que a visão clássica do marxismo sobre as regiões indica, no que tange à ideia de região, para um conceito atrelado ao processo geral de reprodução o capital no espaço, o que, é uma diferenciação importante em relação ao modelo de região produzido pela Geografia teorética-quantitativa. Esta se notabilizou pela identificação da região a partir de uma metodologia própria, porém mantendo a perspectiva das regiões como dadas, analisando sua organização. Ao propor um modelo de análise em que a região é fruto dos arranjos de classes diferenciados, internos ou externos a região, a perspectiva de uma região natural começa a ser relativizada. Entretanto, os marxistas não avançaram, com exceção de Oliveira, na ideia de que as regiões podem ser puros constructos humanos, logo passíveis de relativização; Harvey e Lipietz parecem mais preocupados com os desdobramentos das associações classistas no entendimento da dinâmica regional do que na gênese delas. Oliveira não chega a questionar a região, mas advoga a possibilidade de sua extinção.

Antes de passar ao debate das perspectivas neomarxistas, deve-se considerar, brevemente, outras perspectivas que falam nD³PRUWH´GDUHJLmRFRQIRUPHSRVWDSRU+DHVEDHUW (2014). Neste sentido, há os trabalhos de Giddens (1989) e Albuquerque Jr. (1999). Giddens analisa a região a partir da teoria da estruturação e da perspectiva de um tempo-geografia, no qual o caráter rotinizado da vida é algo fundamental na determinação dos espaços regionais. A

partir das restrições existentes na vida cotidiana, surge a região: ³RPRYLPHQWRGHWUDMHWyULDVGH YLGDDWUDYpVGHFHQiULRVGHLQWHUDomRTXHWHPYiULDVIRUPDVGHGHPDUFDomRHVSDFLDO´ (p. 136). A delimitação das regiões ocorre a partir das limitações da vida cotidiana, específicas do que Giddens chama de domínios.

-i$OEXTXHUTXH-U  HPVHXWUDEDOKRDFHUFDGD³FRQVWUXomR´GR1RUGHVWH, parte da premissa de que a espacialidade advém das percepções espaciais presentes na linguagem e tem relação com o campo de forças que constitui tais percepções. Desta forma, Albuquerque Jr parte da ideia de que as regiões são construídas a partir dos discursos produzidos sobre elas. Não há, desta forma, uma região dada, uma vez que os discursos e as identidades são produzidos por diversas forças. No caso concreto do estudo de Albuquerque Jr, ele aponta como a delimitação do Nordeste iniciou-se a partir da visão da população do Sul e Sudeste brasileiro sobre um Norte distante, dividido entre a Amazônia e as secas da porção Nordeste desta entidade regional primitiva.

A visão destes dois últimos autores, que pode bem ser associada a algo como um pós-modernismo, parte de uma crítica à formulação regional fechada e dada da visão da Geografia teorética-quantitativa e do marxismo clássico. Tal crítica é centrada na questão das UHJL}HV FRPR ³QDWXUDOPHQWH´ SRVWDV DSRQWDQGR QD UHDOLGDGH SDUD R YDORU GH HOHPHQWRV simbólicos e das relações sociais na determinação dos espaços regionais. Mais do que VLPSOHVPHQWH³PDWDU´DUHJLmRRVGRLVDXWRUHVEXVFDPDSRQWDUTXHDVUHJL}HVVmRFRQVWUXFWRV sociais mutáveis. Desta forma, podem ser postos em alguma afinidade com Oliveira, mas diferentemente dele não argumenWDP SHOD ³PRUWH´ GD UHJLmR D SDUWLU GH XPD WRWDO homogeneização do espaço (algo amplamente refutado, especialmente por Giddens). Esta crítica, levará, entre outros fatores, à inserção nas análises marxistas da perspectiva de regiões fragmentadas.

Assim, embora se adote uma perspectiva histórica da região (algo não tido na perspectiva teorético-quantitativa, e posteriormente adotado pelas correntes pós-modernas), no marxismo clássico as regiões ainda são vistas de forma relativamente rígida, como entes fechados a partir dos processos de produção capitalista que as organizam. A introdução de uma perspectiva diferenciada, em que as regiões podem ser algo fragmentado e não um todo comum estarão mais presentes nos trabalhos dos neomarxistas, a seguir.

2.3 Os neomarxistas: globalização, arquipélagos fraturados, relações sociais e região como