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AS PRAÇAS DE FORTALEZA E SEUS JARDINS PÚBLICOS

URBANO NA PAISAGEM DAS CIDADES BRASILEIRAS NA PASSAGEM DO SÉCULO XIX PARA O

1.5 AS PRAÇAS DE FORTALEZA E SEUS JARDINS PÚBLICOS

A formação dos primeiros núcleos urbanos no território cearense se deu inicialmente no interior da Capitania, que até 1799 era vinculada administrativamente a Pernambuco. Impulsionadas pelo recurso financeiro proporcionado pela atividade pecuária, as pequenas vilas que primeiro se desenvolveram foram fundadas na interseção dos caminhos das boiadas, nas margens dos rios ou “próximas às zonas para agricultura, na maioria das vezes em regiões serranas ou em suas proximidades” (JUCÁ, 2007, p.225

apud ANDRADE, 2012, p. 28).

Cidades como Icó, Aracati e Sobral foram as primeiras e se destacar como núcleos urbanos prósperos e Fortaleza, ainda que desfrutasse da condição de Vila a partir de 1726, ainda não desempenhava o papel proeminente que viria a assumir posteriormente.

Entretanto, essa condição iria mudar a partir da independência administrativa do Ceará em relação a Pernambuco e da alteração da base da economia cearense, possibilitada pelo desenvolvimento da agricultura do algodão com fins de exportação, sobretudo a partir dos conflitos da Guerra de Secessão norte-americana (1861-1865).

Nesse contexto, o fim do monopólio português sobre as relações comerciais da colônia brasileira marca o início de um período de prosperidade, com reflexos profundos no espaço urbano e no modelo de vida adotado pela sociedade brasileira. Fortaleza sentiu os primeiros sinais dessas transformações em 1802, quando a economia da cidade e algumas edificações públicas se estruturaram em volta do Porto, por onde era escoada a grande produção de algodão proveniente do interior do território cearense.

Após a abertura dos portos brasileiros em 1808, estabeleceram-se no país bancos, firmas e empresas de origem britânica, trazendo um conjunto de influências que foi além das comerciais ou financeiras, tendo reflexos nas práticas de uso das praças, bem como influenciando a utilização de alguns elementos como os gradis, presentes nas squares inglesas.

A partir desse período, teve início um processo de consolidação e expansão do espaço urbano da incipiente Vila que culminou com as ações de ordenamento e aformoseamento da cidade ocorridos da segunda metade do

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século XIX até o início do século XX, em um cenário comum a diversas cidades brasileiras, período denominado por Ponte (1999) de Belle Époque. Tais ações faziam parte do ideal de progresso existente no país, “quando se desejava construir cidades modernas e civilizadas” (MOURA FILHA, 1998), principalmente após a Proclamação da República, quando a cidade começou a crescer de forma mais contundente. Segundo Paiva (2016), “Em 1800, Fortaleza contava com uma população de 3 mil habitantes, passando para 16 mil, em 1863, e 21 mil, em 1872. Em 1900 contava com 48 mil e vinte anos depois, por volta de 79 mil”.

Foi justamente neste período, conhecido como República Velha (1889-1930) durante a gestão do governador Nogueira Accioly e do intendente Guilherme Rocha, entre 1896 e 1912, que a maioria das obras de aformoseamento urbano foi executada, embora já existissem espaços públicos voltados para o lazer desde o Período Imperial, como o Passeio Público (Figura 1.11), no local onde existia o Campo da Pólvora (1880), e o Parque da Liberdade em 1890, completamente equipado apenas em 1922.

A cidade também recebeu um importante Plano de Expansão em 1875 (Figura 1.12), de autoria do Engenheiro Adolfo Herbster (1826-1893). O Plano, que na época era denominado simplesmente de “Planta”, não rompeu com o traçado xadrez imposto anteriormente por Silva Paulet, porém apresentou contribuições modernizantes ao traçado da cidade, propondo a abertura de largos boulevards inspirados nas realizações de Haussmann em Paris.

Figura 1.11 - Avenida Caio Prado, Passeio Público de Fortaleza. Percebe-se no lado direito, a presença de um cata-vento, utilizado como força motriz para bombear a

água aprovisionada nas caixas d’água, utilizada para manutenção dos jardins.

Figura 1.12 - Planta da Cidade de Fortaleza e Subúrbios, Adolfo Herbster (1875)

Fonte: José Liberal de Castro, 1994

Essas grandes avenidas6, que hoje correspondem à Avenida do Imperador,

Duque de Caxias e Dom Manuel, foram traçadas em atendimento a uma decisão da Câmara Municipal com o objetivo auxiliar na expansão da cidade e ultrapassar a barreira representada pelo Riacho Pajeú. Segundo Castro (1994, p. 67):

Essa solução ficara estabelecida com a introdução de um contorno de avenidas, chamadas “boulevards”, formando um quadrado (aberto no lado que faria face com o mar) com avenidas que ainda respondem pela circulação de veículos na zona comercial da cidade de hoje.

A necessidade de controlar a expansão urbana, preocupação típica do período, aparece nos planos de Herbster para a cidade, tanto no de 1875, quanto no de 18887. Tal fato demonstra uma visão bastante alinhada com o

6 Avenida era o termo empregado no período, conforme as atas da Câmara

Municipal, pois a denominação boulevard surgiu posteriormente, de acordo Castro (1994, p. 76)

7 Castro (1994, p.70) ressalta que o Plano de 1888 foi elaborado por decisão

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que vinha acontecendo em diversas cidades do país e da Europa. No que diz respeito aos espaços livres públicos, os planos não propuseram a construção de novos, apenas mapearam os existentes, conformando-os dentro da malha urbana ortogonal.

Aline de Figueirôa Silva (2016), em sua tese de doutorado intitulada Entre a

implantação e a aclimatação: o cultivo de jardins públicos no Brasil nos séculos XIX e XX, realizou importante pesquisa histórica sobre os jardins

públicos construídos nas praças de Recife, João Pessoa e Fortaleza, trazendo relevantes dados para o estudo aqui empreendido.

De acordo com a autora, algumas das praças mais antigas da cidade, que ainda hoje permanecem como tal, também foram agenciadas nesta época, como a Praça do Ferreira, a Praça José de Alencar, a Praça Capistrano de Abreu, a Praça do Coração de Jesus, Praça Castro Carreira e a Praça General Tibúrcio. (Figura 1.13).

Todas as praças acima citadas receberam obras de ajardinamento no início do século XX e segundo Figueirôa Silva (2015, p.96):

As praças, quando ajardinadas, recebiam nomes que se justapunham às designações anteriores: Jardim Sete de Setembro da Praça do Ferreira (1902), antes Largo das Trincheiras, Praça Pedro II e Praça Municipal; Jardim Caio Prado da Praça da Sé (1903), antes Praça do Conselho e da Matriz; Jardim Nogueira Accioly da Praça Marquês do Herval (1903), antiga Praça do Patrocínio e atual Praça José de Alencar; Jardim Thomaz Pompeu da Praça Comendador Theodorico (1930), antes Praça da Lagoinha e atual Praça Capistrano de Abreu, e Jardim Bárbara Alencar da Praça José Júlio ou do Coração de Jesus (1931), antiga Praça da Boa Vista.

Figura 1.13 - Praça General Tibúrcio, Fortaleza.

Nesses jardins públicos, algumas das principais características formais de matriz eclética estavam presentes, como os canteiros ajardinados com arbustos e os caminhos geometrizados, a existência de equipamentos de maior vulto como quiosques e coretos de ferro pré-fabricados ou de alvenaria e concreto, esculturas (réplicas da estatuária clássica) e fontes, que eram alimentadas pela água acumulada nas caixas d’água de estrutura metálica. O armazenamento da água era possível graças ao bombeamento possibilitado pela força motriz dos cataventos, que já eram utilizados nos quintais das residências, “os quais utilizavam a energia eólica como força motriz para puxar água de poços e cacimbas” (FIGUEIRÔA SILVA, 2017, p. 66).

Os cataventos, então, já faziam parte da paisagem da cidade, constituindo um dos principais equipamentos de provisão de água, em um momento em que a cidade não possuía uma infraestrutura para tal. Conforme Girão (1979, p. 227):

Continuava a cidade a suprir-se do precioso líquido retirando-o de cacimbas escavadas nos quintais das casas e elevadas por moinhos de vento a rodare desesperadamente dia e noite. Pelo seu crescido número, às centenas, ofereciam esses cataventos sugestivo aspecto a quem observasse a cidade de qualquer ponto mais saliente.

Desta forma, observa-se que da mesma maneira que a presença dos cataventos8, constituíam uma característica ímpar da paisagem de Fortaleza,

na época. A presença desses equipamentos9 somados às caixas d‘água nos

jardins públicos da cidade também se tornou uma das singularidades do paisagismo realizado nos logradouros cearenses (Figura 1.14) por viabilizar a implantação dos jardins públicos nas praças da cidade, dadas as condições climáticas inóspitas a esse tipo de agenciamento.

A intensa arborização das ruas e praças, com seus jardins públicos, também era uma característica do paisagismo eclético implementado na cidade no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. A presença de árvores como a Castanholeira (Terminalia catappa) e a Mongubeira (Pachira

8 Chamados por Girão de “moinhos de vento”, denominação comum a outras

literaturas.

9 Aline de Figueirôa Silva assinala que os cataventos existentes na cidade no período

eram de procedência norte-americana em sua maioria, ratificando a informação fornecida por Raimundo Girão, o qual afirmou que eram “quase todos dos tipos Dandy e IXL” (1979, p. 227).

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aquática) é mencionada por Liberal de Castro (2012, p. 35) como sendo

antiga na cidade.

A utilização de ostensiva arborização tinha como objetivo amenizar as condições climáticas e viabilizar o uso dos jardins públicos ao longo do dia.

A vegetação constituía um recurso de amenidade climática e remodelação da fisionomia da cidade, trazendo benefícios diretos ao bem-estar da população, à estética e à salubridade urbana.

Desse modo, a seleção das espécies botânicas, especialmente das árvores, nativas ou exóticas, que identificamos nos jardins, podia vincular-se tanto aos seus aspectos ornamentais (floração, atributos das copas, troncos e folhagens) quanto utilitários (sombreamento, rápido crescimento e resistência à estiagem) (FIGUEIRÔA SILVA, 2017, p. 61).

Figura 1.14 - Jardim Nogueira Accioly na Praça Marquês do Herval (atual Praça José de Alencar). Percebe-se a presença da caixa d’água e do cata-vento.

Fonte: Acervo Nirez

Destaca-se, ainda, a utilização de gradis de influência da square inlgesa, que muitas vezes precediam o próprio ajardinamento da praça e funcionavam como um elemento de proteção contra a invasão de animais e também como instrumento de controle de uso do espaço (FIGUEIRÔA SILVA, 2016). Embora tenha tido certa importância na aplicação de um modelo estrangeiro na cidade, há registros da sua utilização apenas em três locais: no Passeio Público (Figura 1.15), no Jardim Caio Prado da Praça da Sé e no Jardim 7 de Setembro da Praça do Ferreira (Figura 1.16).

Figura 1.15 - Passeio Público de Fortaleza

Fonte: Acervo Nirez

Figura 1.16 - Jardim Sete de Setembro na Praça do Ferreira

Fonte: Álbum de Visitas do Estado do Ceará (1908), edição fac-similar.

Assim como o gradil, o coreto era um dos primeiros equipamentos a serem construídos, permitindo assim o uso parcial do espaço que, posteriormente, receberia o ajardinamento. Tal construção era utilizada para diversos fins além daquele para o qual era projetado, que era abrigar as bandas na ocasião das retretas (FIGUEIRÔA SILVA, 2016). Discursos políticos são

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exemplos de atividades passaram a ocorrer neste tipo de equipamento, como narrado nas crônicas de Raimundo Girão e Mozart Soriano Aderaldo10.

No que tange ao uso, é importante observar que as praças, uma vez ajardinadas, potencializavam o uso do espaço como pontos de encontro e locais de lazer da sociedade fortalezense do século XIX e início do XX, que passa a se comportar de acordo com um novo código de conduta, mais formal (PONTE, 1999). Nota-se, portanto, uma grande alteração, pois esses locais deixam de ser espaços utilizados para trocas comerciais para serem sedes das práticas de lazer da população.

Dentre estas estava o footing, caminhada ao ar livre nos logradouros urbanos com fins de relaxamento e interação social, que também funcionava como um tipo de lazer contemplativo, pois era um momento de apreciação da nova paisagem urbana, composta pela vegetação, pelas fontes, pelos novos mobiliários urbanos e ornamentos.

O footing, que era realizado no período noturno, após o expediente de trabalho ou depois das missas dominicais, estava ligado a outro tipo de divertimento que ocorria frequentemente nas praças ajardinadas: as apresentações musicais conhecidas como retretas, “realizadas pelas sociedades musicais civis ou bandas policiais ou de outras corporações oficiais” (FIGUEIRÔA SILVA, 2016, p. 99). É importante ressaltar que o uso noturno dos jardins só era viabilizado por causa da iluminação pública, que alterava a maneira de fruição dos espaços urbanos.

Essas atividades, que ocorriam corriqueiramente durante o período, envolviam também uma nova forma de se portar que compreendia o uso de vestuário vindo de Londres e Paris e maneiras polidas no trato social (PONTE, 1999).

Algumas atividades esportivas também se desenvolveram dentro dos jardins públicos localizados nas praças, como a patinação. Tal prática, já realizada a partir do século XIX, continuou a acontecer nesses locais embora de forma mais improvisada no início do século XX. Um exemplo é a utilização de um pavilhão de madeira no Jardim Nogueira Accioly na Praça Marquês do Herval para tal fim (Figura 1.17).

Figura 1.17 - Pavilhão de madeira utilizado como rinque de patinação no Jardim Nogueira Accioly, localizado na Praça Marquês do Herval, atual Praça José de

Alencar.

Fonte: Acervo Nirez

O uso cotidiano dos jardins públicos situados nas praças também ocorria em virtude da existência de algumas edificações importantes na sua vizinhança, normalmente sedes de instituições públicas e culturais ou educativas, como os teatros e as escolas.

No século XX, notadamente a partir de 1910, a influência americana se fez mais presente e novos tipos de usos dos jardins se desenvolveram, como as

garden parties. Conforme Figueirôa Silva (2016, p. 141):

[...] tratava-se de um evento recreativo, de cunho temático, cívico ou político, no qual eram instalados palcos e tablados, mesas e barracas de bebidas e comidas, iluminação espacial, com ocorrência de retretas, danças e competições, novamente ressaltando a importância da música para ouvir e dançar, os eventos noturnos nos jardins, a prática de espostes e passeios ao ar livre.

Nesse período, a influência americana se fez notar em dois outros aspectos: o primeiro é a inserção de novos ritmos musicais que passaram a ser executados nas retretas e garden parties como ofoxtrote, o Charleston e o jazz, e o segundo é o uso do automóvel, que passa a ser símbolo de status

social e afeta o modo de usufruto do espaço urbano ao possibilitar os longos deslocamentos para áreas até então consideradas periféricas como os parques e as praias (FIGUEIRÔA SILVA, 2016).

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Assim, tem-se, novamente, uma alteração do uso das praças, que deixam de ser o principal espaço de fruição e lazer, sendo paulatinamente substituído pelo rádio, cinema e pelos banhos de mar.

Há, com isso, uma gradativa diminuição de uso das praças, que no final do século XIX e início do século XX eram espaços de lazer contemplativo e ativo, locais adequados para caminhar, ouvir música, contemplar a vegetação, fontes e ornamentos, realizar exercícios físicos, encontrar-se após a escola ou o teatro ou conversar sobre os assuntos do cotidiano da cidade.

Por fim, percebe-se que o ajardinamento das praças e os passeios públicos não estavam vinculados somente às práticas do urbanismo sanitarista que se desenvolveu no final do século XIX e início do XX. Destaca-se que esses lugares também desempenhavam um relevante papel no tocante à recreação urbana, sendo um dos mais importantes da cidade o Jardim Sete de Setembro, localizado na Praça do Ferreira.

1.6 A PRAÇA DO FERREIRA E O JARDIM SETE DE