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AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DO PAISAGISMO MODERNO E SEUS DESDOBRAMENTOS NO BRASIL

PRAGMÁTICA” NAS CIDADES BRASILEIRAS

2.2 AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DO PAISAGISMO MODERNO E SEUS DESDOBRAMENTOS NO BRASIL

As experimentações iniciais em busca de um tratamento de espaços livres diferente do eclético ocorreram ainda no final do século XIX, com o diálogo12

que se estabeleceu entre a pintura impressionista e os jardins (POLIZZO, 2010). A utilização da vegetação pelo seu potencial colorístico ocorreu

12 Observa-se que o diálogo entre paisagismo e pintura ocorreu desde o final do

século XVIII, com o surgimento do movimento pitoresco e sua influência sobre a conformação dos jardins ingleses.

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primeiramente nos jardins de Claude Monet (1840-1926) pela própria vinculação do pintor ao Movimento, e nos jardins criados por Gertrude Jekyll (1843-1932) e William Robinson (1838-1935), onde é possível perceber alguma influência na disposição das vegetações como manchas coloridas, trabalhadas dentro do conceito de Wild Garden (Figura 2.11). Entretanto, como afirma Polizzo (2010, p. 54) os exemplos acima citados “não chegaram a se configurar como uma conformação espacial jardinística, mas se restringiram à estruturação das potencialidades cromáticas da vegetação na construção”, cromatismo, que, no entanto, acabou por influenciar a obra de alguns paisagistas modernos.

Figura 2.11 - Loseley Park Garden, projeto de Gertrude Jekyll. Observa-se que, apesar da forma sinuosa do traçado, característica do paisagismo inglês, a vegetação é disposta de maneira a tirar partido de uma combinação cromática.

Fonte: https://www.greatbritishgardens.co.uk/garden-designers/29-gertrude-jekyll- 1843-1932.html

No início do século XX, as conexões entre artes plásticas e paisagismo continuaram a ocorrer, como se pode observar com o surgimento de algumas movimentações em busca de desenvolver uma linguagem moderna para os jardins influenciadas por vanguardas artísticas como o Cubismo, as quais ocorreram especialmente na Áustria e na França (TAMARI, 2017).

Visualmente essas manifestações se aproximaram sobremaneira da geometrização moderna apresentada nas artes plásticas, trazendo inovações no campo estético, porém sem proporcionar grandes rupturas com movimentos passados no tocante à organização e concepção espacial. A

ideia de um espaço contínuo, de uma nova experiência da realidade criada pelo homem moderno não aconteceu, fazendo com que essas experimentações tivessem novamente, como ocorreu nos Wild Gardens, ficado restritas ao aspecto visual (POLIZZO, 2010).

Encontram-se dois grandes exemplos nos jardins de Gabriel Guevrékian (1902-1970) para a Exposição de Artes Decorativas ocorrida em Paris em 1925, denominado de Jardin d’eau et lumière” (jardim de água e luz) (Figura 2.12), e o projeto de André Vera e Paul Vera para a Villa Noaille (1926) (Figura 2.14). Em ambos os casos, a geometrização de canteiros e caminhos estruturavam o jardim, no qual a vegetação ficava limitada ao papel de adicionar cor à composição. Polizzo (2010, p. 56), ao analisar esses projetos, afirma que

tratava-se de tentativas cubistas que, no entanto, davam aos jardins características extremamente pictóricas e resultavam, por consequência, demasiadamente estáticos, ou seja, continuava presente o espírito clássico.

Figura 2.12 - Jardin d'eau et l'umière. Obra de Gabriel Guevrèkian para a Exposição de Artes Decorativas ocorrida em Paris em 1925.

Fonte: http://www.tehranprojects.com/The-Cubist-Garden

De fato, contrariando as inovações introduzidas pelo paisagismo inglês, o qual procurava retomar o contato do homem com a natureza, esses jardins, ao procurar manter um diálogo com a vanguarda artística do início do século XX, acabaram apresentando uma espacialidade mais próxima do jardim

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barroco, com o terreno aplainado e tratado como uma tela, cuja apreciação se daria de longe, como um espectador apreciaria uma pintura (POLIZZO, 2010) (Figura 2.14).

Figura 2.13 - Jardim para o Hôtel des Noailles, de Andre e Paul Vera. Nota-se o grande formalismo do jardim, que se apresenta como um quadro a ser apreciado e

não como um espaço a ser vivenciado.

Fonte: Ana Paula Polizzo, 2010

Figura 2.14 - Jardim de Gabriel Guevrékian para a Villa Noailles, em 1928

Fonte: https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/08.020/1734

Entretanto, é importante destacar que, a despeito das críticas sobre a qualidade da conformação espacial resultante dessas experiências, há uma relevante contribuição no que diz respeito às formas introduzidas a partir de

então: marcadas por uma geometrização que viria a ser o paradigma estético do paisagismo desenvolvido nas décadas seguintes. Nesse ponto, salienta- se a grande contribuição dos jardins apresentados durante a Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas ao estabelecer um novo paradigma estético, que acabou influenciando o paisagismo moderno (TAMARI, 2017).

No Brasil, a influência da estética moderna também foi sentida, porém essa nova visão acerca do paisagismo teve um importante e específico componente: a afirmação de uma unidade nacional, porém não com o viés político das obras públicas e sim, com o ideário de identidade própria. Essa busca teve como marco a publicação do “Manifesto Pau-Brasil”, de autoria de Oswald de Andrade, em 1924, “introduzindo uma problemática até então inédita na discussão da literatura modernista: o nacionalismo” (SEGAWA, 2014, p. 42).

Tal publicação, entretanto, foi precedida de uma movimentação que teve início na década de 1920 na cidade de São Paulo – a qual já se configurava como uma grande metrópole brasileira – e foi capitaneada por uma parte da elite urbana, cuja referência era a produção intelectual dos “centros irradiadores de cultura fora do país” (SEGAWA, 2014, p. 42).

Essa procura por um alinhamento com o que acontecia no exterior, especialmente com a Europa, aconteceu no âmbito das artes plásticas e da literatura num primeiro momento, tendo pouca expressividade na arquitetura (SEGAWA, 2014).

A busca por uma identidade nacional pós-Manifesto era marcada por uma “combinação positiva entre tradição e modernidade” (SEGAWA, 2014, p. 42), que se manifestou, a princípio, na arquitetura por meio da linguagem neocolonial.

Um indício de ruptura com esse contexto ocorreu no final da década, em 1928, com a obra da casa à Rua Santa Cruz, em São Paulo. O projeto de Gregori Warchavchik (1896-1972) para sua residência, considerado pioneiro da arquitetura modernista no país, também representou o nascimento de uma nova postura paisagística por meio dos jardins de Mina Klabin Warchavchik (1896-1969), paisagista e esposa do arquiteto.

Esses jardins (Figura 2.15) foram um marco da busca por uma linguagem moderna no paisagismo brasileiro e romperam com a tradição de produção de jardins ecléticos que se manteve ao longo da década de 1920 e 1930 em cidades como São Paulo e, em menor proporção, Rio de Janeiro.

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Sua obra apoiava-se em dois pilares principais: o estreito diálogo dos jardins com o projeto arquitetônico, potencializando ou suavizando as suas intenções com o uso de traçados geometrizados ou livres, e o uso de espécies tropicais, não necessariamente nativas, tendo como ícone as cactáceas como o Mandacaru (Cereus peruvianus).

Figura 2.15 - Jardins da Residência à Rua Santa Cruz de autoria de Mina Klabin, São Paulo, 1928

Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.029/740

Tais transformações inseriam-se dentro de um panorama maior, o qual caracterizava a postura da época e onde nascia o modernismo brasileiro: a sua relação com o nacionalismo e com a busca de uma identidade própria do país. Nesse sentido, os jardins tropicais de Mina (Figura 2.16) viriam a incutir certa “brasilidade” à arquitetura de linhas retas e sóbrias tipicamente modernistas:

O que não deixa espaço para dúvida como gesto de “abrasileiramento” da obra, no entanto, é o ato deliberado de sobrepor à imagem da casa a figura audaciosa de um jardim tropical [...]. O discurso reflete talvez a preocupação com a valorização da paisagem nacional e com a elaboração de um vocabulário formal de arte moderna que pudesse ser reconhecido como brasileiro, preocupação evidentemente tributária do debate artístico do período (PERECIN, 2003, p.144).

Figura 2.16 - Jardins da casa da Rua Bahia projetados por Mina Klabin Warchavick, em São Paulo, 1929. Nota-se a referência aos projetos de Gabriel Guevrèkian

(PERECIN, 2003), porém com o uso de vegetação tropical.

Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/918710/os-jardins-de-mina-klabin- warchavchik-modernidade-publica-e-privada

O trecho acima destaca algo que já era corrente também em outros campos do fazer artístico componentes do movimento moderno brasileiro, que tomavam como aporte a “coleta e anotação da paisagem, [...], das cores, dos tipos, da vegetação do país, em busca dos termos que ajudarão a compor um vocabulário artístico brasileiro” (PERECIN, 2003, p. 89). Estas manifestações ganharam forma nas pinturas de Lasar Segall e de Tarsila do Amaral, na qual o cacto ganha destaque na fase denominada Antropofágica.

O uso vanguardista da vegetação por Mina Klabin se inseria em um contexto de pequenas modificações nesse campo, como a inclusão de vegetação nativa, ainda que a importação de vegetação exótica tenha predominado. Tal alteração pôde ser observada nos jardins privados implantados na cidade de São Paulo no período, principalmente nos elaborados por Germano Zimber, paisagista muito atuante no local, conhecido por suas obras de gosto eclético.

É importante observar que, a despeito dessa pequena movimentação em direção a uma mudança de postura dentro do pensamento paisagístico vigente à época, o uso desse tipo de vegetação não pressupunha uma mudança no desenho dos jardins, configurando-se apenas como mais uma opção dentro do cardápio eclético utilizado. Tatiana Perecin (2003, p. 57) discorre sobre esse fato:

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[...] o uso de vegetação tropical não significa necessariamente um gesto de rompimento com a tradição eclética de paisagismo. Pelo contrário, este “panorama tropical” acabaria sendo incorporado como mais um dos estilos possíveis, sem que isto sugerisse alguma noção específica de brasilidade, nem qualquer contato específico com a paisagem natural do país.

Uma mudança mais representativa nesse sentido veio apenas com Roberto Burle Marx (1909-1994) e sua investigação do potencial paisagístico da flora nativa, cujo trabalho no Recife marcou o início de uma trajetória marcante na história do modernismo brasileiro.

A atuação de Roberto Burle Marx na cidade foi fruto da atitude inovadora de Carlos de Lima Cavalcanti (1892-1967), à frente do governo de Pernambuco na época. Tratava-se da criação do Setor de Parques e Jardins, o qual o paisagista coordenou de 1934 a 1937, locado na Diretoria de Arquitetura e Construção do Governo do Estado de Pernambuco, sob a chefia do arquiteto Luiz Nunes (1909-1937).

Durante esse período, houve uma intensa produção de projetos e intervenções nos espaços livres públicos da cidade capitaneados por Burle Marx. Como destaca Figueirôa Silva (2010, p. 201):

Num período de cerca de três anos, a atuação do paisagista Roberto Burle Marx delineou uma fase de produção paisagística do Recife com a realização de pelo menos sete projetos de ajardinamento, entre novos jardins e reformas, do total de catorze intervenções planejadas.

É preciso observar que, apesar de não terem representado uma ruptura com a tradição no que diz respeito ao traçado – uma vez que continuaram como referências a simetria dos jardins renascentistas ou a monumentalidade dos jardins barrocos – foi no uso da vegetação que essas intervenções inauguraram uma nova forma de pensar o paisagismo (FIGUEIRÔA SILVA, 2010).

Nessa fase da carreira do paisagista, o cacto reapareceu como símbolo de brasilidade, sendo utilizado como partido de uma das praças projetadas por Roberto Burle Marx em Recife – a Praça Euclides da Cunha (Figura 2.17), de 1935, inaugurando uma fase de experimentação no paisagismo das praças brasileiras.

Figura 2.17 - Desenho de Burle Marx para estudo do Jardim do Benfica (Praça Euclides da Cunha), 1935

Fonte: Aline de Figueirôa Silva, 2010

Figueirôa Silva (2010, p. 202) explica que a partir das obras em Recife:

A vegetação assumiu a condição de motivo principal do projeto, seja na criação de jardins temáticos [...], seja na especificação de espécies nativas para outros logradouros, não servindo apenas para “decorar” e “sombrear”, mas também, para “educar”.

De fato, o momento em que se deu a elaboração desses projetos marcou também a trajetória do paisagista quanto à construção de um repertório botânico de espécies nativas e sua valorização, o que vem ao encontro do pensamento moderno brasileiro quanto à construção de uma identidade nacional. Esse foi um dos traços definidores do seu trabalho ao longo da vida e foi um dos momentos-chave para a redefinição das práticas paisagísticas, principalmente no que diz respeito à sua adequação às questões ambientais, como clima, umidade, botânica e meio biótico (DOURADO, 2009).

O período de atuação do paisagista em Recife também trouxe grandes contribuições, principalmente no que diz respeito à metodologia de trabalho. Até aquele momento, década de 1930, a organização dos espaços verdes livres era feita durante a própria execução, sendo raros os casos em que havia um plano previamente concebido. Burle Marx introduziu a prática do planejamento prévio13, “enfatizando a importância da fase inicial de

13 Esse tipo de prática, infelizmente, demorou a ocorrer no país, dificultando não só

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prefiguração espacial, por meio de um conjunto de peças projetuais mais detalhadas – planos acompanhados da especificação vegetal, cortes e perspectivas” (DOURADO, 2009, p. 280). Tais contribuições foram essenciais para a conformação profissional da arquitetura paisagística no Brasil e configurando uma forma técnica de representação e detalhamento de projetos paisagísticos.

Burle Marx também esteve envolvido em outro evento fundamental para a história do modernismo brasileiro: o edifício sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, a qual contou com a participação do paisagista entre 1937 e 1938 na elaboração do projeto para a área central do conjunto, bem como de dois tetos-jardim. Sua colaboração envolveu um longo processo projetual com características plásticas inovadoras, que foram alteradas pelo próprio paisagista entre 1942 e 1944, trazendo um “criterioso lançamento de maciços vegetais com formas curvilíneas, em pontos desguarnecidos pelos volumes e elementos construídos” (DOURADO, 2009, p. 235) (Figura 2.18).

Figura 2.18 - Jardins do Edifício sede do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, projetados por Burle Marx em 1938.

Fonte: Ana Paula Polizzo, 2016

configurações assumidas ao longo do tempo, como é o caso do objeto de estudo dessa pesquisa.

O diálogo com a arte moderna torna-se ainda mais expressivo com o uso das formas ameboides encontradas na obra de Jean (Hans) Arp14 (Figura 2.21),

conforme observa Dourado (2009). A partir de então, as curvas livres se tornaram uma marca da expressividade plástica singular de Burle Marx, somada ao uso colorístico da vegetação.

Figura 2.19 – Configuration, litografia, Jean Arp (1951)

Fonte: https://www.moma.org/artists/11

Dessa forma, observa-se que as atuações pontuais de Mina Klabin Warchavchik em São Paulo e de Roberto Burle Marx em Recife e no Rio de Janeiro acabaram representando uma ruptura com o paradigma eclético que vigorava no paisagismo brasileiro até aquele momento. Essas novas posturas vieram a romper com uma tradição já estabelecida tanto no que tange à importação de espécies vegetais, como ao uso de elementos formais- compositivos como o traçado e a relação entre espaço livre e edificação.

Suas ações isoladas se deram em um momento no qual a prática paisagística não era efetuada por profissionais ligados à academia ou que tivessem algum tipo de formação vinculada à arquitetura, ficando a concepção e execução a cargo de jardineiros, que continuavam difundindo o gosto eclético (PERECIN, 2003).

14 Jean Arp (1886-1966), cujo nome de batismo era Hans Arp, foi um escultor

alemão, naturalizado francês, que desenvolveu uma série de obras de arte em alto relevo, cujas formas ameboides acabaram por influenciar o paisagismo moderno.

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Infelizmente, essas novas posturas não encontraram campo fértil em todas as cidades do país, as quais somente implementaram essas mudanças nas práticas paisagísticas algumas décadas depois, ainda que a paisagem das grandes cidades brasileiras estivesse se transformando rapidamente no período.

Fortaleza foi uma das cidades que, a despeito da proximidade com Recife, não apresentou manifestações desse tipo de tratamento paisagístico aos seus espaços livres, públicos ou privados, no período. Observa-se uma certa dualidade no tratamento dos seus espaços livres públicos, principalmente porque a maioria continuou apresentando uma feição romântica, constituindo a modernização pela qual passou a Praça do Ferreira uma exceção. Salienta-se, entretanto, que essa modernização tinha um caráter mais pragmático e, portanto, comum às outras cidades brasileiras do período, em nada se aproximando desse movimento de vanguarda paisagística que tomava forma no trabalho de Mina Klabin e Burle Marx.

2.3

A

MODERNIZAÇÃO

DE

FORTALEZA

E

A

TRANSFORMAÇÃO DA SUA PAISAGEM NA DÉCADA DE