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AGRICULTURA E O AGRONEGÓCIO 156 5.1 Território e Conflito Ambiental

6 AS FLORES DESENHANDO A LUTA PELA ÁGUA 230 1 Projetos coletivos de defesa da água

2.1 As Raízes: a práxis de uma ciência descolonial

As raízes do presente trabalho - levando-se em consideração o território ético- político onde ele se fixa e os nutrientes que permitem seu cultivo - compõem o que se denomina de Metodologia e são, a partir de agora, detalhadas para que o(a) leitor(a) deste texto conheça os caminhos que determinam o processo de construção da investigação que será apresentada.

Para iniciar a discussão, informa-se que esta pesquisa não começa com o ingresso no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará (Prodema-UFC). Ela parte de uma práxis coletiva inscrita no Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas-UFC) e fundamentada, por sua vez, em uma concepção de descolonialidade do saber, do poder e do ser. Assim, tenta colocar em prática a função social da universidade e da ciência que se pretende aprofundar e semear - para além dos limites deste texto.

Cumpre resgatar que, historicamente, a constituição das disciplinas científicas associa-se à experiência europeia e, por consequência, à tentativa de imposição de um metarrelato universal baseado na ideia de que todas as culturas e todos os povos devem ser conduzidos de um estágio “primitivo” a uma fase “moderna” (LANDER, 2005).

Essa característica permitiu - e ainda permite - que as formas de conhecimento tecidas para a compreensão das sociedades europeias se convertessem nas únicas consideradas válidas, objetivas e universais. Isso foi aplicado tanto em relação às categorias, aos conceitos e às perspectivas (Estado, sociedade civil, mercado, classes...) que a ciência moderna utilizou para analisar qualquer realidade quanto em relação às proposições normativas de que também dispôs para definir como deveria ser o futuro de todos os povos do planeta (LANDER, 2005):

Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência, colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior e universal. Mas é ainda mais que isso. Este metarrelato da modernidade é um dispositivo de conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade de povos, tempo e espaço como parte da organização colonial/imperial do mundo. Uma forma de organização e de ser da sociedade transforma-se mediante este dispositivo colonizador do conhecimento na forma “normal” do ser humano e da sociedade. As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as outras formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas,

tradicionais, pré-modernas. São colocadas num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade (Fabian, 1983), o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade. (LANDER, 2005, p. 13, destaques no original).

Partindo-se da constatação da violência colonizadora dessa abordagem, que desconsidera os conhecimentos de outros povos e comunidades; apresenta as comovisões desses sujeitos como obstáculos ao desenvolvimento (LANDER, 2005) e tem sido responsável por uma crise que coloca em xeque a continuidade da vida humana no planeta, surge a necessidade de buscar formas alternativas de conhecer, interpretar e agir (MONTERO apud LANDER, 2005).

Na América Latina, muitas iniciativas têm tentado realizar essa perspectiva de

ciência1, chamada de descolonial. Para Montero (apud LANDER, 2005), as ideias

articuladoras de seu paradigma são:

- Uma concepção de comunidade e de participação assim como do saber popular, como formas de constituição e ao mesmo tempo produto de uma episteme de relação.

- A idéia de libertação através da práxis, que pressupõe a mobilização da consciência, e um sentido crítico que conduz à desnaturalização das formas canônicas de aprender-construir-ser no mundo.

- A redefinição do papel do pesquisador social, o reconhecimento do Outro como Si Mesmo e, portanto, a do sujeito-objeto da investigação como ator social e construtor do conhecimento.

- O caráter histórico, indeterminado, indefinido, inacabado e relativo do conhecimento. A multiplicidade de vozes, de mundos de vida, a pluralidade epistêmica.

- A perspectiva da dependência, e logo, a da resistência. A tensão entre minorias e maiorias e os modos alternativos de fazer-conhecer.

- A revisão de métodos, as contribuições e as transformações provocados por eles.

(MONTERO apud LANDER, 2005, p. 15, destaques no original).

As ideias articuladoras do que tem se convencionado chamar de “descolonialidade” estimulam a participação dos sujeitos com os quais se pesquisa e incentivam a concretização de outros modos de vida - diferentes daquele propagado pelo capitalismo. Buscam respostas, portanto, que tentem superar tanto a violênca simbólica da ciência moderna quanto a violência material dos processos que esse tipo de ciência, historicamente, contribuiu para formular, como os relativos à expropriação territorial; à desqualificação dos povos tradicionais e à captura de subjetividades para uma única forma de existência.

1 Entre elas, destacam-se a Teologia e a Filosofia da Libertação e os estudos de Paulo Freire, Orlando Fals

Tentar construir uma ciência descolonial, por sua vez, traz desafios significativos, associados aos padrões institucionais adotados pela universidade; à formação dos(as) pesquisadores(as) e à consideração de relações inscritas em questões de gênero, raça, etnia, geração, classe e modos de vida, todas elas perpassadas, ainda, por contextos individuais e coletivos de diferentes tempos e dinâmicas.

É precisamente nessas ideias articuladoras e nesses desafios que se fundamenta a práxis do Núcleo Tramas e, por conseguinte, do presente trabalho. Para que o(a) leitor(a) vislumbre como se chegou, de forma específica, à investigação que ele apresenta - com a consequente discussão de um conflito ambiental que envolve a disputa pelo direito à água entre Estado, empresas do agronegócio e comunidades camponesas do município de Apodi (RN) -, cumpre explicitar uma síntese da história do próprio Tramas e do seu encontro com tais comunidades. Como se perceberá, o resgate desse histórico sustenta o cultivo da dissertação e conduz o diálogo entre os pressupostos teóricos e metodológicos, o desenho da pesquisa de campo e a análise que será realizada.

2.2 O Caule: o Núcleo Tramas, seu encontro com Apodi e o Mapa das Águas