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3 AS TERRAS: O REFERENCIAL TEÓRICO E A PROBLEMATIZAÇÃO QUE LOCALIZAM ESTA PESQUISA

3.4 O direito humano à água

A água não esteve presente, de forma expressa, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (UNESCO, 1998), e no PIDESC, de 1966 (BRASIL, 1992). De acordo com a ex-relatora especial da ONU sobre o tema:

Esta omissão deve ser entendida no contexto mundial da época, muito diferente do atual; o colonialismo seguia sendo uma força dominante e muitos dos países cujas populações sofriam por falta de acesso à água e ao saneamento não estavam presentes na mesa de negociação. Naquele momento, a sociedade civil não desempenhava um papel tão notório como na atualidade, chamando nossa atenção e a dos nossos governos sobre o sofrimento das pessoas no mundo. Os países apresentavam um menor grau de urbanização, com um reduzido número de assentamentos informais densamente povoados, o que significava que o

problema da falta de água e saneamento das zonas urbanas não era tão extremo como é na atualidade (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p. 29-30, traduziu-se). Não se concorda, todavia, com essa afirmação, pois, conforme lembra Porto- Gonçalves,

[...] tudo parece indicar que enquanto a água foi um problema somente para as maiorias mais pobres da população o assunto se manteve sem o devido destaque. Ou, quando foi considerado um tema politicamente relevante, o foi em uma perspectiva de instrumentalização da miséria alheia, como no caso das oligarquias latifundiárias do semi-árido com a famosa “indústria da seca”, assim como, também nas cidades, não foram poucos os “políticos de bica d’água” que, populisticamente, se constituíram por meio da miséria dos sem- água, parte, na verdade, de um quadro geral dos sem-direitos (PORTO- GONÇALVES, 2012, p.413-414).

Nesse sentido, importa enfatizar que, se hoje a água não é mais um tema localizado e não apresenta as oligarquias latifundiárias regionais ou os políticos populistas como os únicos manipuladores de seu controle e sua gestão, é porque esses sujeitos estão sendo substituídos (no debate público) por novos protagonistas, assentados em um discurso de pretensa cientificidade (PORTO-GONÇALVES, 2012) - e juridicidade. Há, portanto, muito mais de política entre a antiga “omissão” e o atual reconhecimento formal do direito à água do que podem sugerir as declarações internacionais.

Com efeito, as Nações Unidas começaram a lidar com o tema da água a partir de 1977, por meio da Conferência do Mar del Plata (Argentina). Depois desse primeiro momento, outras conferências, programas e planos de ação se debruçaram sobre o assunto, mas de forma extremamente tímida se comparada à atual (PORTO- GONÇALVES, 2012).

Somente em 2002, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais78 da ONU

(CDESC-ONU), por meio do Comentário Geral79 nº. 15/2002, citou, pela primeira vez, a

existência de um direito humano - e independente - à água; elaborou seu conteúdo normativo e estabeleceu, formalmente, as tipologias e a extensão das obrigações dos Estados em relação a esse “novo” direito (BULTO, 2015).

Apoiando-se nas normas internacionais de Direitos Humanos, Direito Ambiental e Direito da Água, aquele Comentário Geral evidenciou que o direito à água estaria

78 Esse Comitê é o órgão “responsável por supervisionar o cumprimento do PIDESC por parte dos Estados” (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p.30).

79 Os Comentários Gerais são interpretações oficiais dos órgãos de monitoramento de direitos humanos; têm a finalidade de apresentar o conteúdo de tais direitos e, apesar de serem bastante persuasivos, não criam obrigação jurídica (BULTO, 2015; ALBUQUERQUE; ROAF, 2012).

implicitamente disposto nos artigos 11 e 12 do PIDESC, a partir dos direitos a um padrão de vida adequado e ao mais elevado nível possível de saúde física e mental (BULTO, 2015).

Enfatizou, ainda, que ele corresponderia à previsão de que todas as pessoas tivessem o direito à água suficiente, segura, aceitável culturalmente, acessível fisicamente e disponível a preços razoáveis para usos pessoais e domésticos (CDESC-ONU, 2002). Entretanto, tal Comentário Geral não tinha caráter jurídico vinculante. Assim, em 2007,

O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), a pedido do Conselho de Direitos Humanos, realizou um estudo sobre o alcance e o conteúdo das obrigações pertinentes em matéria de direitos humanos relacionadas ao acesso equitativo à água potável e ao saneamento (A/HRC/6/3). Nele, concluiu que havia chegado o momento de considerar o acesso à água e ao saneamento como um direito humano. (ACNUDH; PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS ASSENTAMENTOS HUMANOS - ONU-HÁBITAT; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE - OMS, 2011, p.5, destaques no original e tradução livre).

O trecho acima reforça, assim, o discurso de pretensa cientificidade (PORTO- GONÇALVES, 2012) - e juridicidade - que tem permeado os novos protagonistas da busca pelo controle e pela gestão da água. Em paralelo, demonstra o caráter político da escolha do “momento” de inseri-la na categoria de direito humano.

Cumpre lembrar que o acesso da água a essa categoria foi posto em votação na Assembleia Geral das Nações Unidas anos depois da publicação do Comentário Geral nº. 15/2002, a partir de uma proposta apresentada pela Bolívia e da atuação destacada de países como o Equador e o Uruguai (SOUZA, 2015).

A aprovação, por sua vez, ocorreu em 28 de julho de 2010, por meio da Resolução A/RES/64/292 (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012; ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 2010). Na ocasião, foram 122 votos a favor, 29 ausências, nenhum voto contra e 41 abstenções - observando-se, entre estas, as dos Estados Unidos, da Grécia e do Japão (BRITTO, 2015; CASTRO; HELLER; MORAIS, 2015).

Em setembro de 2010, por meio da Resolução A/HRC/RES/15/9, o Conselho de Direitos Humanos da ONU também confirmou por consenso a existência do direito humano à água e ao saneamento - tornando nítidos seus fundamentos e sua condição juridicamente vinculante (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012).

De acordo com a ONU, o conteúdo da água como direito humano envolve cinco grandes critérios: a disponibilidade, a qualidade (segurança), a aceitabilidade, a acessibilidade física e a acessibilidade financeira (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012).

A disponibilidade refere-se ao fato de que os Estados são responsáveis por garantir

sistemas e estruturas que assegurem os “serviços de água e saneamento em todas as

esferas da vida, inclusive no trabalho” (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p.41, traduziu- se). Está restrita, todavia, à quantidade de água suficiente para uso pessoal e doméstico, o que inclui “o consumo, a lavagem de roupa, a preparação de alimentos e a higiene” (ACNUDH; ONU-HÁBITAT; OMS, 2011, p. 12, traduziu-se).

A qualidade (ou a segurança), por sua vez, vincula-se ao fato de que “a água não

deve conter contaminantes orgânicos ou químicos que possam ser prejudiciais à saúde”.

Refere-se, também, à necessidade de que “os banheiros sejam bem construídos, de forma

que não suponham perigo à saúde física, tragam facilidade para a sua manutenção limpa

e ofereçam acesso descomplicado a qualquer pessoa, inclusive à noite”

(ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p.41, traduziu-se).

Já a aceitabilidade remete ao fato de que “os serviços de água e saneamento devem ser aceitáveis para qualquer pessoa do ponto de vista cultural”. Nesse sentido, ressalta a ideia de que a localização desses serviços (inclusive no caso de hospitais, escolas, mercados e transportes) deve respeitar o contexto de que a água e o saneamento estão sujeitos, com frequência, a costumes ou a requisitos de caráter cultural ou religioso (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p.41, traduziu-se).

A acessibilidade física, por seu turno, associa-se ao fato de que “os serviços de água

e saneamento devem ser facilmente acessíveis para qualquer pessoa, incluindo crianças, idosos(as) e pessoas com deficiência”. Assim, remete à necessidade de que tais serviços “estejam no interior ou perto das casas, do lugar de trabalho e de todas as demais esferas da vida, a fim de que proporcionem o máximo benefício em termos de saúde, segurança e dignidade (especialmente no caso do saneamento)”. Implica, ainda, “no requisito de que as pessoas não devem fazer fila ou esperar durante um tempo excessivo para acessar aqueles serviços” (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p.41-42, traduziu-se).

A acessibilidade financeira, por fim, vincula-se ao fato de que o pagamento por serviços de água e saneamento, “em nenhum caso, deve se constituir como um fator limitante para que as pessoas desfrutem de outros direitos humanos, como a moradia, a

alimentação e a saúde”. Nesse sentido, dispõe que tal exigência pode ser garantida, por

exemplo, “mediante uma estrutura tarifária eficaz, que assegure que os lugares mais pobres paguem uma tarifa inferior por dispor de uma quantidade básica de água” (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p. 42, traduziu-se).

Devido ao fato de se relacionarem a direitos humanos, todos esses cinco critérios estão alinhados, normativamente, com a obrigação de que os Estados respeitem, protejam e cumpram o direito à água a partir dos princípios da não-discriminação, da participação e da responsabilidade (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012).

Inscrevem-se, ainda, no princípio da “realização progressiva” e nas “limitações de

caráter técnico, econômico e político” que caracterizam os direitos econômicos, sociais e culturais, exatamente os aspectos que não têm existido para a expansão do capital, conforme se observou no tópico anterior:

Todos os direitos econômicos, sociais e culturais, incluídos os direitos à água e ao saneamento, estão sujeitos ao princípio de “realização progressiva”. Dizer realização progressiva é quase tanto como afirmar que os Estados partes têm o dever ante o PIDESC de adotar “medidas deliberadas, concretas e seletivas” em prol do cumprimento das obrigações contraídas em virtude do Pacto, reconhecendo ao mesmo tempo que a plena realização dos direitos humanos é um processo a longo prazo que, frequentemente, enfrenta numerosas limitações de caráter técnico, econômico e político. A finalidade da realização progressiva não é oferecer aos Estados uma desculpa para a não-ação, mas sim reconhecer o fato de que, em geral, a realização plena se alcança pouco a pouco e que sempre há margem para melhorar as condições. (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p. 28, traduziu-se).

A partir desses pressupostos, assinala-se que existem muitos limites políticos no conteúdo normativo do direito humano à água. Entre eles, destaca-se o fato desse direito apresentar uma abordagem bastante individualizada, associando-se apenas ao abastecimento para uso pessoal e doméstico e não se relacionando a um vínculo imprescindível que precisa ser considerado não apenas pelas políticas públicas de acesso à água, mas por todas aquelas que possam afetar um povo ou uma comunidade: as ligações da água com as diferentes formas de uso e apropriação dos territórios e, consequentemente, com a manutenção de diferentes modos de vida.

Com efeito, de acordo com os documentos oficiais, o direito humano à água não compreende “a água para a agricultura, a pecuária ou a manutenção dos sistemas ecológicos” (ACNUDH; ONU-HÁBITAT; OMS, 2011, p. 12, traduziu-se), visto que,

segundo a ONU, o acesso hídrico para essas atividades, “em particular para os(as)

pequenos(as) proprietários”, formaria “parte do direito a uma alimentação adequada” (ACNUDH; ONU-HÁBITAT; OMS, 2011, p. 12, traduziu-se).

Assim, por mais que o Comentário Geral nº. 15/2002 reconheça que devam ser priorizados os “recursos hídricos necessários para evitar a fome e as enfermidades, assim como para cumprir as obrigações fundamentais entranhadas em cada um dos direitos do

Pacto [PIDESC]” (CDESC-ONU, 2002, p.3, traduziu-se), esse reconhecimento deixa de incidir sobre os vínculos territoriais e os modos de vida que a eles se relacionam.

Para exemplificar isso, acrescenta-se que, embora a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2008) ressalte o direito que esses povos têm de manter e fortalecer sua própria relação espiritual com as águas, os mares costeiros

e os outros bens que tradicionalmente utilizam80, ela não evidencia o vínculo que outros

povos - como quilombolas, camponeses(as), ribeirinhos(as), faxinalenses e comunidades

de fundo de pasto81 - também estabelecem com as águas. Além disso, na prática,

representa um reconhecimento formal que infelizmente não tem sido respeitado, mesmo que se faça uma análise da aplicação da norma restringindo-a apenas aos territórios

indígenas82.

Desse modo, importa considerar que o processo constitutivo do significado da água como direito humano universal “é inseparável do processo de constituição de uma

categoria de agentes que se apropriam desse universal”, que o monopolizam e que

desapropriam os sujeitos que constroem aquele significado em escala territorial (BOURDIEU, 2012, p. 1-2). É possível perceber isso na própria explicação que a ONU confere à obrigação imediata de respeitar, proteger e cumprir o direito humano à água:

Todos os direitos humanos impõem aos governos três tipos de obrigações: a de respeitar, a de proteger e a de cumprir. No caso dos direitos à água e ao saneamento, a obrigação de respeito determina que os Estados não devem impedir que as pessoas que já desfrutam dos direitos sigam fazendo isso, por exemplo, mediante a venda de terras onde há uma fonte de água impedindo que os usuários possam continuar acessando essa fonte sem lhes proporcionar uma alternativa adequada. A obrigação de proteção dos direitos à água e ao saneamento sugere que os Estados devem evitar a contaminação das fontes de água por parte de agentes externos. A obrigação de cumprimento dos direitos à água e ao saneamento requer que os Estados garantam as condições necessárias para que toda pessoa possa desfrutar desse direito. Isso não significa, necessariamente, que o Estado tenha que se encarregar da prestação dos serviços, mas sim que deve adotar as medidas adequadas para que eles

80 De acordo com o artigo 25 da referida Declaração, “Os povos indígenas têm o direito de manter e de fortalecer sua própria relação espiritual com as terras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos que tradicionalmente possuam ou ocupem e utilizem, e de assumir as responsabilidades que a esse respeito incorrem em relação às gerações futuras” (ONU, 2008, p.14).

81 No Brasil, muitas comunidades de fundo de pasto se remetem, inclusive nos nomes de suas associações, ao uso comum da água, fazendo referências às aguadas, aos poços e às nascentes que utilizam, como ocorre, por exemplo, nos Fundos de Pasto Lagoa das Baraúnas, Olho d’Água e Lagoa do Anselmo, todos localizados na Bahia (ALMEIDA, 2008).

82 No Brasil, provas disso são os impactos da construção das Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio (Rondônia), Jirau (Rondônia) e Belo Monte (Pará) ao direito à água e aos demais direitos territoriais das comunidades indígenas e ribeirinhas que vivem nas regiões dos Rios Madeira (no caso das duas primeiras usinas) e Xingu (no caso da última). Para uma análise detalhada desse tema, recomendam-se as leituras de Almeida (2009) e Oliveira e Cohn (2014).

sejam prestados, seja através de uma agência externa ou de serviços municipais, seja mediante a facilitação e a promoção dos serviços. Em determinadas circunstâncias onde existam coletivos que não possam exercitar seus direitos através de outros mecanismo, o Estado deve prestar aqueles serviços diretamente (ALBUQUERQUE; ROAF, 2012, p.27, traduziu-se). Como se verifica, as obrigações estatais em relação ao acesso universal à água também estão inscritas em padrões limitantes. De fato, a obrigação de respeito restringe o Estado a assegurar uma alternativa adequada de acesso hídrico, não a respeitar formas de apropriação e uso da água que componham um determinado território e que imponham a não-desapropriação deste para a implantação de qualquer empreendimento que possa comprometer tais formas de uso e apropriação, por exemplo.

A obrigação de proteção, por sua vez, sugere que os Estados evitem a contaminação das fontes de água por parte de agentes externos, mas nada apresenta sobre a necessidade de reduzir e eliminar atividades poluidoras; sobre a importância de que os critérios para a adoção ou não de uma determinada atividade sejam definidos pelos territórios que possam ser impactados por ela e sobre a responsabilização estatal em relação à contaminação das águas, visto que instituições públicas também têm sido promotoras dessa contaminação.

A obrigação de cumprimento, por seu turno, ao se associar ao pressuposto de que o Estado deve garantir as condições necessárias para que toda pessoa desfrute do direito à água, omite que esse mesmo Estado está imerso em uma teia de relações políticas, econômicas e institucionais que o fazem empreendedor, facilitador de empreendimentos e violador de direitos territoriais (ACSELRAD; BEZERRA, 2010). Reforça, ainda, a ideia de que se adotem medidas (novamente) adequadas para que os serviços de água sejam prestados não necessariamente em caráter público, o que espalha as possibilidades de violação que podem ser trazidas pela privatização dos bens hídricos.

Diante dessas características, observa-se que o conteúdo normativo do direito humano à água, dos princípios gerais aos quais ele se vincula e das obrigações estatais às quais também se associa apresenta características bastante restritas em relação às apropriações e aos usos dos territórios que constroem aquele direito a partir de diferentes modos de vida.

No caso do território desta dissertação, formado por comunidades camponesas do semiárido brasileiro, cumpre elencar, portanto, o que tem sido a “concretização” formal do direito à água por parte do Estado através das políticas públicas que ele tem, historicamente, determinado para aquela região.

A partir daí, poderão ser desenhados os elementos do conflito ambiental que caracteriza a disputa hídrica em Apodi, assim como os desafios que as comunidades camponesas e os demais povos do campo no semiárido enfrentam para a efetivação material - e territorial - do direito à água.