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4 ÁGUA, SEMIÁRIDO E ESTADO

4.1 O Semiárido: entre o território da diversidade e o combate à seca

Segundo o artigo 5º, IV, da Lei nº 7.827/1989 (BRASIL, 1989), o semiárido é “a região natural inserida na área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento do

Nordeste - Sudene” e definida em portaria dessa autarquia.

Em 2001, com a extinção da Sudene, o Ministério da Integração Nacional (MI) se

tornou o responsável formal por essa definição e instituiu um Grupo de Trabalho

Interministerial (GTI) para a delimitação do novo semiárido brasileiro (MI, 2005, on-

line).

Esse Grupo elencou que três critérios deveriam ser utilizados para a atualização: 1) a precipitação pluviométrica média anual inferior a 800 milímetros; 2) o índice de aridez de até 0,5 (calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração potencial, no período entre 1961 e 1990), e 3) o risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 e 1990.

Partindo da presença de, pelo menos, um desses três critérios, o MI publicou a Portaria nº. 1/05. Nela, evidencia que o semiárido brasileiro apresenta, oficialmente, 1.133 municípios localizados nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte,

Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Sergipe (MI, 2005, on-line). Tais municípios, por sua vez, ocupam uma área de 969.589,4 quilômetros quadrados (MI, 2005, on-line).

De acordo com Baptista e Campos (2013), quando se fala nesse território, as questões que emergem de imediato são as relativas à seca. Junto delas, uma série de mitos aparece, como o de que o maior problema do semiárido brasileiro seria a falta de água.

Desconstruindo esse mito, os autores assinalam que, entre as regiões semiáridas, a brasileira é a mais chuvosa do mundo, tendo, porém, chuvas concentradas em poucos meses, elevado índice de evaporação e elevado índice de escoamento superficial (BAPTISTA; CAMPOS, 2013). Do mesmo modo, Souza Filho (2011) destaca:

A ocorrência da água no semiárido é marcada por sua grande variabilidade espacial e temporal. A precipitação média anual pode variar espacialmente de 400 a 2.000 mm. As precipitações são de verão (dezembro-fevereiro) e de outono (março-maio), tendo o sul do semiárido nordestino maior precipitação de verão e a parcela setentrional precipitações de outono. Este regime de chuvas se dá sob pronunciada sazonalidade, com a precipitação ocorrendo praticamente sobre um período do ano. Este regime de chuvas sobre os solos rasos do cristalino na depressão sertaneja, impõe a existência de rios intermitentes em diversas regiões. Adicionalmente, ocorre uma significativa variabilidade interanual que impõe secas e cheias severas, sobreposta à variabilidade plurianual (decadal) que produz sequências de anos secos ou úmidos. (SOUZA FILHO, 2011, p.5).

Por causa do regime hídrico, Souza Filho (2011) evidencia que uma das marcas da região é a heterogeneidade de seus geoambientes (paisagens). Entre eles, predomina a Caatinga (ou “Mata Branca”, na língua indígena tupi), único bioma exclusivamente brasileiro (BARBOSA, 2010, on-line).

Devido à sua grande biodiversidade - registrada, por exemplo, quando se observam os mais de seiscentos tipos diferentes de árvores identificados -, o autor enseja que sua denominação seja feita, inclusive, no plural, podendo, por isso mesmo, ser chamada de “caatingas” (SOUZA FILHO, 2011) (Figuras 31-33).

Figura 31 - Imagens da caatinga na Região da Pedra (Apodi), no auge do período de estiagem.

Fonte: acervo da pesquisa. Data: 06 de outubro de 2015.

Figura 32 - Imagens da caatinga na Região da Pedra (Apodi), após o início das chuvas de verão.

Figura 33 - Imagens da caatinga na Região da Pedra (Apodi), após o início das chuvas de verão.

Fonte: acervo da pesquisa. Data: 29 de janeiro de 2016.

Assim como demonstram as afirmações de Souza Filho (2011) e as Figuras 31-33, Barros (2003) também descreve a Caatinga como um território da diversidade:

[...] Para desvendar sua riqueza, é necessário um olhar mais atento, mais aberto. Assim ela revela sua grande biodiversidade, sua relevância biológica e sua beleza peculiar. Merece destaque a multiplicidade de comunidades vegetais, formadas por uma gama de combinações entre tipos edáficos e variações microclimáticas. São inúmeras e de grande interesse a variedade de estratégias para sobreviverem aos períodos de carência de chuvas que as espécies apresentam. Muitas plantas perdem suas folhas para reduzir a perda de água nos períodos de estresse hídrico, renovando-as quando as chuvas chegam de uma forma tão rápida e espetacular que a paisagem muda quase que da noite para o dia; diversas ervas apresentam ciclos de vida anuais, crescendo e florescendo no período das águas; os cactos e bromélias acumulam água em seus tecidos e há uma predominância de arbustos e arvoretas na paisagem. Além disso, existe na Caatinga uma proporção expressiva de plantas endêmicas. Diversas destas plantas são comumente utilizadas pela população por suas propriedades terapêuticas. Dentre a fauna, os répteis e anfíbios merecem destaque. São conhecidas para a região semi-árida 97 espécies de répteis e 45 de anfíbios. No que se refere às aves, existem espécies endêmicas e a riqueza de uma mesma localidade pode ultrapassar 200 espécies. Poucos são os mamíferos endêmicos da Caatinga, mas nesta região muito ainda está para se descobrir. (BARROS, 2003, p.9-10).

Associadas a essas características físicas instaladas entre 8 e 10.000 anos atrás (ARTICULAÇÃO SEMIÁRIDO BRASILEIRO - ASA, 2014), o semiárido brasileiro conta com uma população de cerca de 23,5 milhões de habitantes (ASA, 2014), o que representa a maior concentração de população camponesa do Brasil (BAPTISTA, CAMPOS, 2013).

Constitui-se, por conseguinte, como um território camponês no qual comunidades - a partir da observação do comportamento de plantas e animais; das características do clima e do solo e das influências dos ventos e das queimadas - gestaram e experimentaram um conjunto de estratégias de adaptação e convivência (BARBOSA, 2010, on-line):

A convivência com o Semiárido, que tem como princípio a cultura da estocagem (estocagem de água, estocagem de sementes e estocagem de forragens) associada à diversidade dos sistemas produtivos, permitiu a muitas famílias um patamar elevado na produção de alimentos, o que possibilita a existência de uma identidade alimentar e nutricional do Semiárido. Esta identidade alimentar é facilmente identificada nos estudos feitos por Josué de Castro sobre dieta alimentar nas diversas regiões do País. (BARBOSA, 2010, on-line).

Sobre esse território, todavia, foi marcante um processo de colonização determinado pela violência física e simbólica - com a exploração de povos negros e indígenas e a consequente concentração da terra e da água por meio de títulos de propriedade dominados pela elite branca (BARBOSA, 2010, on-line). Desde o século XVI, portanto, estabeleceram-se sobre o semiárido políticas concebidas fora da região, que introduziram ações não adaptadas a ela e serviram a interesses estranhos aos das comunidades camponesas (SCHISTEK, 2013).

Um dos exemplos disso foi a “política de combate à seca”, formalmente iniciada pelo Estado Brasileiro em 1909, quando o Governo Federal criou a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)83, órgão destinado, especificamente, ao semiárido.

A atuação do IOCS partia do pressuposto de que a seca deveria ser combatida com um sistema de barragens, açudes e poços que pudessem acumular água. Ao lado dessa ideia, estabeleceu-se o objetivo de “fixar o homem no campo”, em uma tentativa de impedir os processo migratórios que traziam legiões de famintos(as) aos centros urbanos (NEVES, 2000).

83 Em 1919, por meio do Decreto nº. 13.687, a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) transformou-se em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS). Em 1945, através do Decreto-Lei nº. 8.846, o IFOCS tornou-se o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), que, em 01º de junho de 1963, através da Lei nº. 4.229, passou a ser considerado, institucionalmente, como uma autarquia federal. (DNOCS, 2016, on-line).

Essa primeira concepção do paradigma de “combate à seca” ficou conhecida como “solução hidráulica” e contribuiu para reforçar a estrutura de apropriação privada da terra e da água. Nesse sentido, Diniz (1999) sintetiza:

As ações do Estado pretendiam somente amenizar as conseqüências dos

períodos de seca, com um caráter nitidamente assistencialista. Segundo

ALMEIDA (1989), se efetivavam em dois níveis distintos: com medidas

implantadas após a estiagem, como resposta à constatação de uma nova

manifestação do fenômeno, e na criação de uma infra-estrutura que

pudesse permitir a certas localidades resistirem aos períodos de seca. O

combate à seca tomava a forma de proteção hídrica que consistia basicamente em reservas de água. Sua ação restringiu-se apenas ao sertão semi-árido e seu papel, ao longo dos anos, serviu como mecanismo de reforço às condições

de reprodução da estrutura econômica e social, favorecendo a oligarquia dos coronéis do algodão e da pecuária, no sertão, ameaçados em suas

próprias bases, pelas calamidades sociais. (DINIZ, 1999, p.82, destacou-se). A partir da década de 1950, com o fim do Estado Novo, a emergência de um estado liberal no Brasil e o surgimento de diversos partidos e agremiações políticas no país, a “solução hidráulica” e a “indústria da seca” foram aprofundadas. Assim, obras públicas passaram a ser ainda mais utilizadas para impedir o abandono do eleitorado e constituir novas arenas políticas - tanto pela definição dos locais prioritários para a criação dos projetos, quanto pela definição dos critérios de alistamento dos(as) retirantes. De acordo com Neves (2000), nessa época, milhares de pessoas foram alistadas em obras de qualidade duvidosa, nas quais mais valia o controle sobre as migrações e a sedição das

multidões do que a utilidade dos equipamentos construídos84.

Tais características revelam, em síntese, que as políticas de combate à seca foram instrumentos de apropriação privada dos recursos públicos; asseguraram uma estrutura fundiária e hídrica extremamente concentradas e manipularam a população - impondo a esta uma relação assistencialista por parte do Estado (SILVA et al., 1989).

Ao lado desses elementos - demonstrativos de que “o combate à seca” se traduziu,

na verdade, em um negócio bastante lucrativo para a classe dominante -, os processos de modernização e industrialização da agricultura aplicados no semiárido ao longo da segunda metade do século XX - e reconfigurados no início deste século - também têm representado exemplos da continuidade daquele paradigma.

84 Conforme assinala Neves (2000, p. 96), “desde então, muitos açudes erguidos pelas frentes de trabalho são chamados de ‘açudes sonrisal’ [referência a um medicamento utilizado para neutralizar a acidez estomacal e caracterizado por se dissolver rapidamente na água], pois se desfazem logo com as primeiras chuvas”.

Com novas roupagens, esses processos utilizaram o discurso do combate às estiagens; do Nordeste como “região-problema” e da necessidade de geração de desenvolvimento. Trouxeram consigo, ainda, importantes intervenções estatais, como as representadas pela criação dos perímetros irrigados e pela atualização da Política Nacional de Irrigação, temas elencados nos próximos tópicos por sua importância para a compreensão das expressões do conflito ambiental em Apodi e para a análise das disputas que envolvem o direito à água em relação aos povos do campo no semiárido brasileiro.