• Nenhum resultado encontrado

3 AS TERRAS: O REFERENCIAL TEÓRICO E A PROBLEMATIZAÇÃO QUE LOCALIZAM ESTA PESQUISA

3.3 Considerações sobre a categoria dos direitos humanos

Mesmo com abordagens profundamente distintas, os direitos humanos têm permeado discussões e propostas de Estados, organismos internacionais, universidades, mídias, organizações não-governamentais, movimentos sociais, comunidades e povos

tradicionais e até mesmo grandes empresas71. Ao longo dos três últimos séculos, diversos

documentos também os positivaram na ordem jurídica internacional e, sob a forma de

direitos fundamentais, nas Constituições de diferentes países72.

Apesar disso, a efetivação de tais direitos não se universalizou (LIMA, 2012). A realidade demonstra, ao contrário, que sua violação sistemática persiste e, inclusive, aprofunda-se em relação à tentativa capitalista de suprimir ou diminuir algumas

conquistas, sobretudo quando se fala dos direitos da classe não-proprietária73 (LIMA,

2012).

Em geral, essa não-efetivação dos direitos humanos é apresentada dentro de um campo “gerencial”, como se faltasse “eficiência” ou “qualidade na gestão pública” (LIMA, 2012). Entretanto, cumpre observar os marcos que nutrem essa categoria; o complexo de relações que confere uma série de limites a ela e o vínculo que existe entre esses aspectos e o quadro histórico de violações (LIMA, 2012). Nesse sentido, importa

71 Como exemplo, ressalta-se que o sítio eletrônico da Monsanto, uma das principais representantes do agronegócio, apresenta uma seção específica para publicizar sua “Política de Direitos Humanos” e seus “defensores de direitos humanos” (MONSANTO, on-line).

72 “Em que pesem sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira, e diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)” (SARLET, 2009, p. 29).

73 No Brasil, um dos exemplos disso pode ser verificado com a tentativa de aprovação do Projeto de Lei nº. 5807/2013 e de seus substitutivos, que tentam regulamentar um novo Código Mineral para o país. Esse projeto e seus substitutivos viabilizam, entre outras violações, uma série de obstáculos à oficialização de novas unidades de conservação, territórios indígenas e territórios quilombolas (SOLIDARIEDADE E EDUCAÇÃO - FASE, 2015). Um outro exemplo, também brasileiro, é a tentativa de aprovação do Projeto de Lei nº. 4.330/2004, que libera a contratação de serviços terceirizados para qualquer tipo de atividade e apresenta como efeitos políticos mais importantes “a fragmentação dos coletivos de trabalho e a pulverização de sindicatos” (DRUCK, 2015, p.6).

vislumbrar tais direitos em sua totalidade, como faz Trindade (2011a), que os analisa por

meio de uma “História Social dos Direitos Humanos”.

Partindo dessa abordagem, destaca-se que a categoria dos direitos humanos surgiu com as “revoluções” liberais-burguesas verificadas na França e nos Estados Unidos no século XVIII (COMPARATO, 2010). Essas “revoluções” reivindicaram a igualdade jurídica e a liberdade econômica necessárias ao acesso da burguesia ao poder, ao desenvolvimento das atividades capitalistas e à proteção da propriedade privada (LIMA,

2012). Assim, redefiniram o papel do Estado74 (COMPARATO, 2010) e apresentaram a

classe burguesa como a porta-voz de dois atributos: o interesse geral e a defesa de direitos universais (TRINDADE, 2011b), carcacterísticas que, até hoje, marcam profundamente a concepção dos direitos humanos.

Não por coincidência, as primeiras declarações referentes a esses direitos75

expressaram, justamente, os anseios da classe burguesa e evidenciaram o que ela considerava como “geral” e “universal”.

Essas declarações destacaram, entre outros aspectos, 1) a noção individualista e abstrata de homem (apresentado como alguém “socialmente descontextualizado e a- histórico”); 2) a concepção não-universal deste (restrito “a uma matriz branca, masculina,

rica ou quase rica, e de padrão civilizatório eurocêntrico”) e 3) a cisão ideal do indivíduo

(de um lado, homem, assim considerado em sua vida concreta na sociedade civil ou esfera “privada”; de outro, cidadão, assim considerado em sua relação com o Estado ou esfera “pública” que, de forma neutra, igualaria todas as pessoas e desconsideraria as contradiçõs atuantes na sociedade) (MARX, 2007; TRINDADE, 2011b, p. 57-58).

Tais declarações enfatizaram, também, 4) a garantia da propriedade privada aos que conseguissem obtê-la e mantê-la, fossem quais fossem os meios; 5) a garantia da igualdade perante a lei (que convivia, sem qualquer desconforto, com a desigualdade social que o capitalismo lastreava na Europa; com a inferioridade - inclusive legal - das mulheres; com a colonização dos povos não-europeus; com o tráfico negreiro e com o massacre dos indígenas americanos); 6) a defesa da liberdade individual de quem conseguisse retirar o melhor proveito na “dura luta pela vida” (surgindo, aqui, a figura do “sujeito de direitos”, indispensável à livre contratação que move o capitalismo); 7) a

74 A partir de então, surge a democracia moderna e o Estado de Direito, que passa a ter seu poder limitado de forma horizontal (com a separação das funções excutiva, legislativa e judiciária) e vertical (com os direitos individuais) (COMPARATO, 2010).

75 Entre estas, destacam-se a “Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia”, de 12 de janeiro de 1776, e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 27 de agosto de 1789 (SILVA, 2008).

garantia de direitos políticos (reduzidos ao direito a voto para quem fosse rico ou bastante remediado, visto que o sufrágio se tornou censitário, salvo em alguns estados norte- americanos) e 8) a não-menção ao que hoje se designa como direitos econômicos, sociais e culturais (TRINDADE, 2011b, p. 58).

Portanto, conforme Lima (2012) reitera em sua pesquisa,

(...) não há, com o despontar das declarações de direitos humanos, uma completa reviravolta no que diz respeito à distribuição do poder, à atividade produtiva, ao acesso aos bens nessas sociedades, mas uma ruptura com o modelo sustentado no binômio feudalismo-absolutismo de modo a emergir o binômio capitalismo-Estado Liberal, que tampouco abole os vários fatores geradores de exploração e desigualdade social; ao contrário, renova-os, sob novos mecanismos, ideias e estratégias (LIMA, 2012, p. 29).

Partindo dos elementos citados, salienta-se que o resultado da aplicação do conjunto de características expresso nessas primeiras declarações de direitos humanos foi a própria violação de direitos, como exemplificam as péssimas condições de trabalho que o capitalismo impôs aos(às) operários(as) da Europa a partir da Revolução Industrial. Contudo, tal realidade promoveu, dialeticamente, além da indignação, a organização da classe trabalhadora (COMPARATO, 2010).

De fato, a partir de diferentes formas de mobilização, essa classe aprofundou os direitos civis e políticos e expandiu os direitos humanos para incorporar a eles os direitos econômicos e sociais (LIMA, 2012). No plano político, por exemplo, isso se expressou na busca dos(as) trabalhadores(as) pela participação na tomada de decisões (com a defesa de pautas como o sufrágio universal e a liberdade de associação). No plano econômico, na busca por garantias trabalhistas (com a defesa de pautas como a regulamentação e a redução da jornada de trabalho, o salário mínimo, as férias e a aposentadoria). No plano social, por sua vez, na busca pela prestação de serviços públicos, como os que envolviam a saúde e a educação (LIMA, 2012).

Assim, a classe trabalhadora trouxe à tona, principalmente nos séculos XIX e XX, diversos direitos anticapitalistas que se contrapuseram à atomização social e à ideia de “homem abstrato” caracterizadoras do surgimento dos direitos humanos (COMPARATO, 2010).

Tais direitos foram reconhecidos, por exemplo, na Constituição Mexicana (1917); na Constituição de Weimar (1919) (COMPARATO, 2010); na Declaração dos Direitos

do Povo Trabalhador e Explorado76 (1918); na Declaração Universal dos Direitos

76 Essa Declaração foi formulada no Terceiro Congresso Panrusso dos Sovietes e inspirou a Constituição Soviética de 1918 (SILVA, 2008).

Humanos (1948) - apesar desta também ter estabelecido a propriedade privada como direito - (LIMA, 2012); no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC (1966) e nas Constituições de diversos Estados, como a Carta Magna Brasileira (BRASIL, 1988).

Junto dos direitos econômicos e sociais, a classe trabalhadora estimulou, nos séculos XX e XXI, a partir da emergência de “novas” identidades coletivas e dos denominados “novos movimentos sociais” (HOBSBAWM, 1995), a positivação de direitos culturais, ambientais e territoriais.

Nesse ponto, destaca-se, por exemplo, o reconhecimento formal dos direitos à autodeterminação, à terra e ao território dos povos indígenas, com a consequente ênfase no fato desses povos terem o direito de manter e fortalecer sua relação espiritual com as terras, os territórios, as águas, os mares costeiros e os outros bens que tradicionalmente

possuem e ocupam77.

Ressalta-se, ainda, a mobilização de outros povos e comunidades - como quilombolas, seringueiros(as), castanheiros(as), quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos(as), faxinalenses e comunidades de fundo de pasto - no sentido de lutarem

para tornar mais abrangente e complexo o significado da expressão “terras

tradicionalmente ocupadas” e para promover o reconhecimento legal de suas territorialidades específicas (ALMEIDA, 2008).

Entretanto, é preciso considerar que, embora muitos desses direitos já tenham sido positivados (nacional e internacionalmente) e expressem demandas populares, persistem abismos - que se alargam - entre sua previsão formal e sua efetividade (TRINDADE, 2011a).

Conforme demonstra a crítica anticapitalista aos direitos humanos (TRINDADE, 2011b; LIMA, 2012), isso acontece porque a possibilidade de concretização de tais direitos está subjugada a dimensões econômicas, políticas e sociais. Assim, é relevante assinalar que a própria forma jurídica que reveste formalmente esses direitos é produzida pelas relações capitalistas e imprescindível à dinâmica desse sistema (MIAILLE, 2005). Partindo-se, portanto, da premissa de que os direitos humanos se ligam,

necessariamente, a um “conjunto sistêmico estabelecido sob a supremacia do capital”,

77 A esse respeito, pode-se conferir a Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989 (BRASIL, 2004), a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2005 (BRASIL, 2007), e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007 (ONU, 2008).

conclui-se que eles “nunca serão efetivados plenamente” dentro desse modo de produção (LIMA, 2012, p.83):

Os bens que estão sob o selo dos direitos humanos são mercadorias. Não se subordinam ao uso, mas à troca. Se, abstratamente, poderíamos encontrar uma oposição entre essa dupla caracterização dos bens, mercadoria e direito - em que a primeira se subordinaria à circulação e o segundo à sua garantia pelo Estado para o uso dos indivíduos - essa oposição se desfaz diante de um olhar concreto. A sociedade fundada na mercadoria é a mesma sociedade fundada no direito. A forma jurídica é o reverso da forma mercadoria. Mercadoria e direito são determinações da troca, não devemos desligar o indesligável. A impossibilidade de efetivação dos direitos humanos sob o capitalismo, crônica, articulada à especificidade da forma jurídica enquanto forma burguesa, revela que a verdadeira efetividade dos direitos humanos é sua inefetividade; ou, em termos mais rigorosos, que os efeitos materiais dos direitos humanos são sua inefetividade (para além da mera troca) para os trabalhadores - e, então, suas consequências, inclusive sobre a luta entre as classes - e sua efetividade para os proprietários, pois capazes de comprá-los, diretamente ou através da compra do próprio Estado (LIMA, 2012, p.82-83).

Logicamente, a ordem jurídica não reconhece que é impossível efetivar plenamente os direitos humanos no capitalismo, pois esse reconhecimento seria seu próprio suicídio, assim como o seria se o Estado admitisse seu caráter de classe (LIMA, 2012). Assim, o discurso daquela ordem responde à inefetividade dos direitos humanos com menções do tipo “são normas programáticas”, “há um processo de efetivação progressiva”; “isso leva tempo”, “existem dificuldades técnicas” quando, na verdade, nenhuma dificuldade técnica impediu que o capital erguesse uma complexa estrutura para sua reprodução (LIMA, 2012, p.85).

Esse mesmo discurso tem inserido os direitos humanos, ainda, em um “conjunto ético transcendental”, “natural”, “neutro” e localizado “acima da política” (DOUZINAS, 2009; LIMA, 2012). Desse modo, eles são separados da dinâmica material que os formula e ricos e pobres (bem como Norte e Sul), por exemplo, são apresentados como potadores de interesses idênticos expressos por meio das convenções e dos tratados internacionais (DOUZINAS, 2009; LIMA, 2012).

Por conseguinte, o apelo retórico de tal discurso tem permitido que o termo “direitos humanos” seja capturado para preencher os interesses de diferentes grupos e conforme acordos em níveis completamente abstratos (“se ambos somos a favor da justiça e dos direitos humanos, então estamos do mesmo lado”) (LIMA, 2012, p. 92-94).

Todos esses aspectos ressaltam, portanto, a necessidade de que a crítica aos direitos humanos não seja feita de forma isolada, mas leve em consideração “as determinações a que está submetida a própria forma jurídica e as implicações práticas da inefetividade crônica” desses direitos (LIMA, 2012, p. 44-45, destaque no original). Revelam, ainda, a

necessidade do constante exercício de desvelar o que está por trás desse tema (LIMA, 2012).

Apesar disso, ressalta-se que a positivação de direitos humanos pode significar avanços (e recuos) historicamente possíveis e que é preciso reconhecer que essa pauta oferece possibilidades de diálogo e articulações fortalecedoras das organizações populares, inclusive em suas disputas na arena judicial (LIMA, 2012).

Do mesmo modo, assinala-se que exigir do Estado o conteúdo dos direitos humanos expresso por povos e comunidades tradicionais e por diversos movimentos sociais também carrega importância em virtude de apresentar uma forte contradição com a dinâmica do capital (LIMA, 2012).

Vislumbra-se, ainda, que as pautas que compõem os direitos humanos (como o acesso à terra, à água, à saúde, à moradia, ao trabalho e à participação política, para citar alguns exemplos) se relacionam com as questões concretas da vida e, desse modo, com a própria luta cotidiana. Logo, inseri-las no debate de tais direitos é, também, impulsioná- las no sentido de incentivar formas de mobilização que podem, inclusive, contribuir com a formulação de outros processos políticos (LIMA, 2012).

Diante desses elementos, enfatiza-se a necessidade atual de defesa tática dos direitos humanos e de trabalho com o aparato político-jurídico, mas se reitera mais ainda que não se pode perder de vista a necessidade estratégica de superação do capital, do Estado e da forma jurídica que o acompanha (LIMA, 2012).

É a partir da consideração dos limites e das potencialidades apresentadas anteriormente, portanto, que o próximo tópico discute as características do direito humano à água.