4. Organização da tese
1.2. As representações sociais e a investigação em Educação
A reflexão levada a cabo no ponto anterior permitiu‐nos compreender que o estudo das representações sociais pode contribuir para a indagação sobre os significados da inscrição plural dos sujeitos nos espaços em que transitam (Arruda, 2009; Jodelet, 2011a), pondo a descoberto o papel das redes tecidas nas práticas sociais diversificadas nas quais se envolvem.
No âmbito da Educação, em que tais práticas assumem dimensões plurais porventura instigadoras de “grelhas de leitura do mundo” (Amado, Crusoé & Vaz‐Rebelo, 2013, p. 100), tem sido reconhecido o seu contributo global para uma melhor compreensão da relevância da interação individual e coletiva em contexto escolar e extraescolar (Garnier & Rouquette, 2000; Jodelet, 1993). Ao refletir sobre a importância do estudo das representações sociais no campo da Educação, Gilly (1993) sublinha o seu caráter fundamental: i) A nível macro, por permitir compreender as relações entre a pertença a um grupo social e as atitudes e comportamentos dos seus membros em relação à Escola; ii) A nível micro, por poder contribuir para uma análise mais fina, respeitante à “comunicação pedagógica” no seio da sala de aula e respetiva construção de saberes.
Adicionalmente, Gilly (1993) defende também que a arena educativa se institui como um campo privilegiado para a descoberta da construção, evolução e transformação das representações sociais no seio dos grupos sociais, bem como para lançar luz sobre o papel desempenhado por tais processos na relação estabelecida pelos grupos com o objeto da sua representação.
Atualmente, as representações sociais têm sido objeto de crescente interesse na investigação em Educação, sendo focada a sua relevância no que respeita, por exemplo, à
educação: para/em a saúde (Gaudreau, 2000; Teixeira & Oliveira, 2014); ambiental (Reis & Bellini, 2011; Silva & Sales, 2000) e para a cidadania (Fagundes & Zanella, 2000).
Como sublinham Garnier e Rouquette (2000, xvi):
La complexité de l’objet de l’éducation en fait un champ qui s’appuie simultanément sur plusieurs disciplines; en fait, c’est un terrain, par excellence, de l’interdisciplinarité et de concept de représentation sociale répond, par son développement scientifique, de manière originale à cette position épistémologique.
No entender destes autores, o contributo das representações sociais para a investigação em Educação está patente no caráter crescentemente diversificado dos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos nesta área. Apontam várias razões para que tal aconteça:
i) A evolução da sociedade, abrindo novas dimensões sociais, a merecer um olhar atento (exemplificam com o incremento da formação de adultos e a diversidade cultural na Escola, entre outros);
ii) O reconhecimento, por parte da Escola, da existência de outras formas de saber para além do saber científico, sobre os quais constitui um desafio refletir (fruto do confronto com questões relativas à multietnicidade, ao abandono escolar, etc.);
iii) O desenvolvimento de formas de educação informal e não formal, que não resultam de processos de formação organizados pela Escola.
Garnier (2000) reconhece o contributo das representações sociais no âmbito da Educação, associando, no entanto, alguma complexidade ao desenvolvimento de estudos que impliquem a articulação entre ambos. Nas suas palavras (Garnier, 2000, p. 28), (…) même si l’intérêt des chercheurs a été rapidement éveillé, qu’ils appartiennent au champ des représentations sociales ou à celui de l’éducation, ils ne parviennent que rarement à tenir compte du jeu ambigu qui se fait entre les représentations, ces savoirs de sens commun, et les théories de l’éducation.
No intuito de evitar os perigos do que vê como uma utilização superficial do conceito de representação social, a autora sugere que a investigação realizada se centre, sobretudo, em duas questões:
i) O(s) modo(s) como as representações sociais possibilitam a abordagem, descrição e compreensão do universo concetual da Educação em contextos multifacetados;
ii) A forma como este universo educacional, tecido de práticas fortemente socializadas, pode facultar um objeto que seja propício ao desenvolvimento de questões de cariz teórico e metodológico, ligadas ao campo das representações sociais.
No entender de Garnier (2000), a resposta a tais questões poderá lançar luz sobre: i) As dinâmicas sociais que intervêm em cada grupo e que resultam das
relações entre vários grupos;
ii) As representações sociais entretecidas nas redes de significados que resultam da interação dos diversos atores em contexto educativo;
iii) A possível distinção entre as representações sociais de diferentes grupos e seu cruzamento.
Alves‐Mazzotti (2008) destaca também o contributo das representações sociais para o descortinar da ampla rede de processos que ocorrem na interação educativa, destacando, por exemplo, o modo como podem possibilitar uma melhor compreensão do papel da Escola na educação das classes desfavorecidas, nomeadamente através da realização de estudos que lancem luz sobre atitudes e comportamentos de professores e de alunos.
Recentemente, De Rosa (2013), na meta análise teórica que realizou sobre a literatura de especialidade relativa às representações sociais (no lapso temporal de 1953 a 2009), sublinhou que a área temática “Desenvolvimento‐Educação” foi a terceira que mais se distinguiu, o que corrobora também a sua importância crescente.
Tal relevância sobressai também no estudo de Madiot (2013). A investigadora realizou uma análise sobre os resumos apresentados em Francês nas conferências internacionais sobre representações sociais realizadas entre 1992 e 2012, tendo concluído que, no referente às temáticas abordadas, a “Educação” surgiu como a segunda que mais se realçou (29 ocorrências em 611 resumos).
Para Chaib, Danermark e Selander (2011), a Educação institui‐se enquanto parte importante do processo de criação, manutenção e/ou transformação das representações sociais. Em seu entender, a abordagem das relações entre as representações sociais e a Educação implica que se distinga entre:
i) Representações sociais do sistema educacional, em que estarão em causa Ideias e conceções sobre o papel da Educação na sociedade em geral
(os autores dão como exemplo o facto de, na Suécia, durante as décadas de 60 e de 70 do século XX, um dos pontos de vista que circulava na sociedade dizer respeito ao facto de o objetivo principal da Educação dever ser envolver as novas gerações numa economia em crescimento)
Questões como, por exemplo, que representações sociais evidenciam diferentes grupos da sociedade (alunos, professores, pais, gestores escolares, políticos), de que forma essas representações sociais emergem e como se transformam;
i) Representações sociais no sistema educacional, um campo de investigação mais elaborado que inclui várias categorias e uma análise mais detalhada de um conjunto de aspetos nos quais sobressaem o professor e a profissão de professor, os estudantes, mas também outros intervenientes na área educativa como, por exemplo, os educadores sociais, os profissionais de saúde, etc.; neste caso, uma das questões para a qual os autores consideram ser mais comum procurar resposta é determinar quais são as representações sociais do professor no que respeita ao seu papel de professor.
No entender de Jodelet (2011b), a relação entre o campo de estudo das representações sociais e a Educação rege‐se por critérios:
i) Históricos, porque, desde o início, a teoria das representações sociais se centrou nas relações entre formas de conhecimento científico e/ou escolar, a par do conhecimento do senso comum, (re)construído no dia a dia dos indivíduos;
ii) Lógicos, porque a abordagem das representações sociais possibilita dar resposta à complexa trama respeitante aos processos de emissão, transmissão e receção do conhecimento (sua difusão e assimilação na arena
educativa, na qual se cruzam, em permanência, valores, normas, identidades, etc.).
A relevância das representações sociais para a investigação em Educação tem sido crescente, de acordo com Jodelet (2011b), sobretudo pelo incremento dos desafios inerentes às mudanças operadas na sociedade em geral, com repercussões no acesso à escola pública pelas massas – exigindo novas orientações que ultrapassam os objetivos “tradicionais” atribuídos ao sistema educativo.
Exemplos disso são, segundo a autora, orientações com vista a satisfazer requisitos de três tipos:
i) Económicos (preparação para o emprego e para o desempenho económico); ii) Educacionais (fornecer ferramentas intelectuais orientadas para a ação na
sociedade);
iii) Democráticos (assegurar a igualdade e o respeito pelas diferenças, lutar contra o insucesso escolar, por exemplo).
Todos estes aspetos se podem repercutir no tecido escolar, podendo a teoria das representações sociais contribuir para a compreensão das representações que emergem dos diversos contextos educacionais e seus respetivos atores.
Bona e Silva (2009, p. 16) sublinham, por seu turno, a importância da compreensão da rede de relações entre representações sociais, cultura e práticas educativas, justificando a fecundidade do seu cruzamento da seguinte forma:
As práticas educativas (…) são instrumentos veiculadores das representações construídas historicamente por uma dada sociedade. As representações são modelos pessoais de organização dos conhecimentos, valores e concepções sobre um objeto ligado à prática e à expressão social de cada indivíduo. Desse modo, as práticas efetivadas pelos profissionais da educação estão pautadas no senso comum e nas diversas vertentes pedagógicas que surgem no espaço reificado pela ciência.
Enquanto modalidades de conhecimento prático que orientam o comportamento dos grupos, as representações sociais plasmam‐se possivelmente nas práticas dos profissionais da Educação, redimensionando‐se em múltiplas vertentes intrinsecamente relacionadas com as interações resultantes das relações diversificadas nas quais se envolvem (seja em contexto escolar ou extraescolar).
Complementarmente, Garnier e Rouquette (2000) consideram que existem quatro aspetos associados às práticas educativas que se relacionam estreitamente com os fundamentos das representações sociais:
i) O nível de implicação/compromisso de cada um em/com tais práticas, influenciado pelo pensamento social que contribui para que se aja e se comunique de determinada forma;
ii) A centralidade das interações sociais, dado que estas resultam de diversos processos de influência entretecidos na complexidade das relações sociais que possam ter lugar na arena educativa;
iii) A comunicação, encarada enquanto “motor”, que está na base de tais interações sociais, no âmbito das quais os grupos elaboram as representações;
iv) A mudança/transformação implicada nas práticas educativas – frisando que o interesse da pesquisa pode estar associado à indagação como tal mudança/transformação poderá ter lugar.
No Quadro 2, apresentamos uma síntese dos aspetos focados por Garnier e Rouquette (2000, p. xii‐xiii), no que respeita às relações que se podem estabelecer entre práticas educativas e representações sociais: Relações práticas educativas/representações sociais Nível de implicação nas práticas Centralidade das interações sociais Mudança
‐ Relação entre os diferentes atores sociais, enquadrados em sistemas de valores nos quais se articulam representações;
‐ Comunicação como aspeto fundamental e comum às práticas educativas e às representações sociais;
‐ Finalidades que orientam as práticas educativas;
‐ Paixão pela ação, entretecida nas relações humanas em (re)construção.
‐ Complexidade/diversidade dos atores envolvidos.
‐ Processos evolutivos das representações sociais em contexto educativo.
Quadro 2 – Relações práticas educativas/representações sociais
Na síntese explicitada no Quadro 2 fica patente o caráter holístico inerente às relações entre práticas educativas e representações sociais, destacando‐se a importância
do(s) modo(s) como as segundas vão permeando as primeiras, num processo evolutivo, no qual as interações sociais desempenham um papel fundamental. Tal caráter holístico revela‐se importante para os futuros profissionais da Educação com responsabilidades na formação de leitores, porquanto as suas representações sobre a leitura terão possivelmente influência no nível de implicação nas suas práticas, bem como nos objetivos e finalidades que as orientam.
Por seu lado, Amado, Crusoé e Vaz‐Rebelo (2013) sublinham a importância do estudo das representações sociais para a desocultação de sentidos implícitos e explícitos nas práticas educativas, encaradas na sua diversidade e multidimensionalidade. Na síntese que apresentam, embora não excluam a importância do contexto extraescolar (Amado, Crusoé & Vaz‐Rebelo, 2013, pp. 102‐105), destacam, preferencialmente, o contexto escolar, tendo em conta aspetos como, por exemplo:
i) A relevância das representações que professores e alunos constroem uns sobre os outros na sua interação diária, bem como o contexto em que estão envolvidos;
ii) O interesse em compreender as representações dos professores sobre a aprendizagem e sobre o comportamento dos alunos relativamente às regras no seio da aula e da instituição em que se integram;
iii) A importância de conhecer as representações dos professores sobre a interdisciplinaridade e as razões que subjazem ao seu desenvolvimento. Como sintetizam Amado, Crusoé e Vaz‐Rebelo (2013, p. 105): “ (…) a identificação das representações que permeiam a realidade e a prática educacionais é fundamental para a análise do conhecimento dessa mesma realidade e dessas mesmas práticas.”
Na reflexão realizada sobre pesquisas em Educação e representações sociais, Oliveira (2014) destaca a importância do olhar dos educadores para as representações dos educandos, de forma a possibilitar que nas suas práticas educativas:
i) Trabalhem pedagogicamente temas sociais, articulando “o saber erudito com o do senso comum” (Oliveira, 2014, p. 151);
iii) Diversifiquem as metodologias utilizadas, de forma a poderem ir ao encontro dos dois parâmetros anteriores.
Embora reconheça a complexidade metodológica inerente a tal labor, dada a multiplicidade de objetos de representações como estudos, Oliveira (2014) encara as representações sociais como suporte teórico‐metodológico significativo, por permitirem pôr a descoberto a forma como os atores educacionais percecionam o contexto escolar. Em seu entender, o estudo das representações sociais possibilita ainda ao educador uma melhor compreensão da prática pedagógica, na medida em que lhe pode abrir novas vias de exploração sobre o modo como os educandos interagem no seu quotidiano social, cruzando‐o com o escolar. Na Figura 1, apresentamos uma síntese dos principais aspetos focados nesta secção no que respeita às representações sociais e investigação em Educação: Representações sociais e investigação em Educação Nível macro
‐ Pertença a grupos sociais ‐ atitudes e comportamentos em relação à Escola;
‐ Diversidade contextual:
educação para a
saúde/ambiental/cidadania, etc.
‐ Evolução da sociedade (novos desafios);
‐ Reconhecimento de outras formas de saber para além do científico;
‐ Diversidade cultural, multietnicidade, abandono escolar, etc.
‐ Satisfação de requisitos económicos, educacionais e democráticos.
Nível micro
‐ Interações geradas na sala de
aula (atitudes e
comportamentos de professores e de alunos);
‐ Especificidade e diversidade dos diferentes atores envolvidos. Construção, evolução, transformação das representações sociais Articulação do saber erudito com o saber do senso comum Práticas educativas/representações sociais Nível de implicação nas práticas/centralidades das representações/mudança Representações sociais sobre o contexto escolar, a interdisciplinaridade, a aprendizagem, o comportamento dos alunos…. Figura 1 – Síntese dos aspetos relativos às representações sociais e investigação em Educação