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Repercussões dos seus redimensionamentos para o ensino da leitura 

Capítulo 3  – O ensino explícito da compreensão na leitura

3.1.2.  Repercussões dos seus redimensionamentos para o ensino da leitura 

Como sublinha Sá (2004), o modo como se ensina a leitura depende da forma com  esta é concebida, desempenhando as representações que temos da mesma um papel de  relevância crescente neste contexto.  

Butlen  (2009),  redimensionando  a  pluralidade  atual  da  leitura,  propõe  a  distinção  entre “leituras reais” (promovidas em contexto escolar, de acordo com os programas em  vigor nos respetivos países) e “leituras invisíveis para a escola”:  

 

Na  representação  comum,  ler  é  ler  a  literatura,  ler  livros  de  literatura  essencialmente  em  suportes  de  papel.  Muitos  adolescentes  não  se  consideram  verdadeiros  leitores  porque  apreciam  pouco  a  literatura  escolar  e  pouco  leem  as  obras  recomendadas  ou  impostas.  No  entanto, eles leem! Eles leem, até mesmo muito mais do que os adultos imaginam (…) Suas  práticas  de  leitura  mais  correntes  são  invisíveis  em  classe  e  parecem  não  ter  a  menor  importância. No entanto, eles leem, sobre muitos suportes, notícias, jornais, revistas. Leem e  escrevem  abundantemente  em  múltiplas  telas.  Alguns,  em  números  até  significativos,  até  leem literatura, só que não é a desejada pela escola. (Bueno & Rezende, 2015, p. 559) 

 

Embora se refira, em particular, aos adolescentes, esta distinção de Butlen parece‐ nos muito relevante por várias razões que passamos a enumerar. 

Em primeiro lugar, aponta para uma das representações mais comuns do conceito  de  leitura,  à  luz  do  qual  a  leitura  de  obras  de  caráter  obrigatório,  feita  em  contexto  escolar, é reconhecida como a mais relevante e, porventura, a mais legítima. Embora tais  práticas de leitura sejam importantes na formação do perfil de leitor, importa não deixar  de  lado  outras,  cujo  contributo  poderá  ser  igualmente  significativo.  Como  sublinham  Viana e Martins (2009, p. 35), 

 

Um  leitor  competente  não  se  constrói  apenas  através  de  uma  memória  textual  prenhe  de  textos  literários,  por  muitos  mundos  possíveis  que  dê  a  conhecer.  Um  leitor  competente  também se constrói através das suas vivências pessoais e mediatizadas (…) oriundas das suas  experiências de vida e dos diversos tipos de textos com que contacta através de vários canais  de comunicação como a televisão, o cinema, o teatro, a internet, a literatura… 

 

Em segundo lugar, contraria a representação, também comum atualmente, de que  os  jovens  leem  pouco,  sublinhando,  que  leem,  em  vários  suportes,  com  regularidade,  aspeto frisado igualmente na literatura de especialidade (Salazar, Álvarez & David, 2014;  West & Chew, 2014; Zapata, 2014) e alargado às suas práticas de escrita: 

Los niños, adolescentes y jóvenes, leen y escriben todos los días, incluso más por fuera de la  escuela  que  en  ésta.  Sin  embargo,  lo  hacen  de  diversas  formas  y  muchas  veces  de  manera  inconsciente. Ellos son ahora más lectores y escritores que nunca. Sin embargo, los adultos,  mediadores y docentes se empeñan en afirmar que ellos, esta generación, no lee, ni tampoco  escribe.  Se  están  utilizando  viejas  palabras,  leer  y  escribir,  para  nombrar  actos  cognitivos  y  sociales  que  están  en  transición;  que  no  son  hoy  lo  que  eran  antaño  (…) las  prácticas  de  relación con la lectura y la escritura no pueden estar exclusivamente circunscritas al ámbito  escolar  porque  son  prácticas  sociales:  se  lee  y  se  escribe  en  diversas  situaciones  de  la  vida  (Salazar, Álvarez & David, 2014, p. 17‐18) 

Em terceiro lugar, sublinha a importância de deixar ao leitor a missão de selecionar  aquilo  que  lê,  construindo  um  itinerário  autónomo  de  leitura,  aspeto  considerado  importante na literatura de especialidade (cf. De Naeghel, Van Keer & Vanderlinde, 2013;  Duke,  Pearson,  Strachan  &  Billman,  2011).  Bustos  (2009)  corrobora  esta  linha  de  pensamento,  ao  frisar  que  hoje  os  estudantes  leem  mais,  nomeadamente  por,  em  seu  entender, a leitura funcional assumir um caráter imprescindível para a sobrevivência num  quotidiano caracterizado pela crescente omnipresença dos meios de comunicação. Logo  caberá  à  universidade  o  labor  de  ensinar  a  ler  “(…)  no  sólo  textos  (si  por  éstos  entendemos sólo a los libros) y más allá de que nos duela pues la tarea es enseñar a leer  la multiplicidad de mensajes que se reciben diariamente.” (Bustos, 2009, p. 40).  

Embora  se  refira  especificamente  ao  estudante  universitário,  o  que  Bustos  (2009)  propõe é que o ensino da leitura seja (re)ajustado às distintas formas que esta assume no  quotidiano.  Neste  sentido,  sugere  que  a  formação  de  leitores  autónomos  e  críticos  privilegie  a  participação  em  práticas  de  leitura,  que  deem  acesso  a  vários  tipos  de  material  escrito,  com  objetivos  bem  definidos  (por  exemplo  para  aprofundar  um  determinado tema, para fazer uma apresentação oral) e a textos completos associados a  diversos contextos comunicativos. 

Em  contexto  educativo,  tem‐se  procurado,  de  formas  distintas,  fazer  eco  da  evolução  das  práticas  de  leitura,  de  modo  a  que,  como  frisa  Solé  (2012)  a  formação  de  leitores seja equivalente a formar cidadãos que: i) escolham a leitura tendo em mente um  conjunto variado de objetivos; ii) saibam o que ler e como ler; iii) que possam utilizar a  leitura para transformar a informação em conhecimento.  

Em Portugal, tal tem sido objeto de atenção a vários níveis. 

Começamos  por  destacar  a  criação  do  Plano  Nacional  de  Leitura  (PNL),  desenvolvido em duas fases: i) a implementação propriamente dita, de 2006 a 2011, e a 

sua  avaliação;  ii)  a  partir  de  2012,  a  redefinição  e  alargamento  dos  programas  de  intervenção  em  curso  e  a  mobilização  de  novas  iniciativas  que  possam  contribuir  para  desenvolver  a  leitura.  De  entre  os  seus  objetivos,  sublinhamos:  i)  a  importância  de  promoção da leitura, encarando‐a enquanto fator de desenvolvimento individual e como  contributo  para  o  progresso  do  país;  ii)  a  valorização  da  criação  de  um  ambiente  social  que  favoreça  a  leitura;  iii)  a  realização  de  um  inventário  de  práticas  pedagógicas  que  possam  estimular  o  prazer  de  ler  entre  crianças  jovens  e  adultos,  concedendo‐lhes  particular  relevância;  iv)  a  criação  de  instrumentos  que  possibilitem  traçar  metas  específicas no intuito de desenvolver a leitura (Plano Nacional de Leitura, 2013a; 2013b). 

A  avaliação  regular  da  implementação  do  Plano  Nacional  de  Leitura  (PNL),  sintetizada em vários relatórios de balanço (cf., por exemplo, Plano Nacional de Leitura,  2007, 2008a, 2013a) tem revelado o incremento de atividades diversificadas de promoção  da leitura, quer em contexto escolar – da Educação Pré‐Escolar ao Ensino Secundário –,  quer  em  contexto  extraescolar,  nomeadamente  através  das  atividades  desenvolvidas  pelas Bibliotecas Públicas Municipais (Plano Nacional de Leitura, 2013a).  No intuito de ir ao encontro da leitura em suporte digital, foram ainda criados, no  site do PNL, a Biblioteca de Livros Digitais e o Clube de Leituras. Embora a Biblioteca de  Livros Digitais dê acesso a obras destinadas a faixas etárias distintas (dos 3 anos aos 16  anos), a oferta é ainda muito escassa face ao possível manancial a explorar.  No que respeita aos estudantes do Ensino Superior, a iniciativa que nos parece ter  sobressaído,  no  âmbito  do  PNL,  foi  a  parceria  que  estabeleceu,  em  2012‐2013,  com  o  projeto  “Voluntários  de  leitura”,  criado  na  Faculdade  de  Ciências  Sociais  e  Humanas  da  Universidade Nova de Lisboa. Este projeto levou à criação da unidade curricular de opção  livre  designada  por  Voluntariado  de  Leitura,  que  permitiu  aos  estudantes  participar  na  formação de leitores em escolas e bibliotecas. 

Uma  outra  iniciativa  a  destacar  é  o  Programa  Nacional  do  Ensino  do  Português  (PNEP), iniciado no ano letivo de 2006‐2007 e concluído no ano letivo de 2009/2010. Para  além de um conjunto de atividades de formação aos professores, foram produzidos vários  materiais didáticos, nomeadamente uma coleção de brochuras sobre temáticas de relevo  no  currículo  do  Ensino  Básico  (cf.,  por  exemplo,  Duarte,  2011;  Gonçalves,  Guerreiro  & 

Freitas, 2011). A leitura mereceu especial atenção, tendo sido criadas brochuras sobre o  seu ensino, incidindo na compreensão na leitura (Sim‐Sim, 2007), na decifração (Sim‐Sim,  2009) e na avaliação (Viana, 2009). 

É igualmente de referir: 

‐ A homologação dos Programas de Português do Ensino Básico (Reis et al., 2009) –  revogado  em  1  de  setembro  de  2015  –  que  procuravam,  entre  outros  objetivos,  ir  ao  encontro  das  mudanças  exigidas  ao  ensino  do  Português,  de  modo  a  acompanhar  a  evolução da sociedade, reconhecendo‐se ser exemplo disso a repercussão, “no processo  de aprendizagem do idioma, das ferramentas e das linguagens facultadas pelas chamadas  tecnologias  da  informação  e  comunicação,  associadas  a  procedimentos  de  escrita  e  de  leitura de textos electrónicos e à disseminação da Internet e das comunicações em rede”  (Reis et al., 2009, p. 5); 

‐  A  formulação  das  Metas  Curriculares  de  Português  (Buescu,  Morais,  Rocha  &  Magalhães, 2012a), procurando‐se, globalmente, clarificar os conteúdos de aprendizagem  por ciclo e em cada ano; para o 1.º e 2.º Ciclos do Ensino Básico, os domínios da Leitura e  da  Escrita  foram  congregados  num  só,  surgindo  separados  no  3.º  Ciclo;  foi  ainda  introduzido o domínio da Educação Literária, no âmbito do qual foram apresentadas listas  de obras e textos literários para leitura anual “ (…) garantindo assim que a escola, a fim de  não reproduzir diferenças socioculturais exteriores, assume um currículo mínimo comum  de obras literárias de referência para todos os alunos que frequentam o Ensino  Básico”  (Buescu, et al., 2012a, p. 6);  ‐ A revogação dos Programas de Português do Ensino Básico (Reis et al., 2009) e sua  articulação  com  as  Metas  Curriculares  de  Português  (Buescu  et  al.,  2012a)  e  a  sua  substituição  por  um  documento  único,  denominado  Programa  e  Metas  Curriculares  de  Português do Ensino Básico (Buescu, Morais, Rocha & Magalhães, 2015), com o objetivo  fundamental  de  harmonizar  as  duas  componentes  dos  textos  reguladores  do  ensino  do  Português. 

A nível internacional, a leitura tem sido um dos focos privilegiados de estudos como 

International Reading Literacy Study), que procuram avaliar a evolução operada no que se  refere à literacia em leitura.  

No  PISA,  avalia‐se  a  mobilização  das  competências  de  Leitura,  Matemática  ou  Ciências  na resolução  de  situações relacionadas  com  o  dia‐a‐dia,  por  alunos  de  15  anos  (Instituto de Avaliação Educativa, 2015). O PIRLS foca‐se na compreensão na leitura dos  alunos no final do 4.º ano de escolaridade.   Apesar do público‐alvo destes estudos e os parâmetros de avaliação considerados  serem diferentes, bem como a sua especificidade, verificou‐se que ambos adotaram uma  definição de literacia em leitura que fizesse eco da sua multidimensionalidade atual.   No PIRLS, a leitura é definida como   (…) the ability to understand and use those written language forms required by society and/or  valued by the individual. Readers can construct meaning from texts in a variety of forms. They  read  to  learn,  to  participate  in  communities  of  readers  in  school  and  everyday  life,  and  for  enjoyment. (Mullis, Martin & Sainsbury, 2015, p. 12) 

 

No  PISA,  a  definição  de  literacia  em  leitura  foi  sendo  reelaborada  tendo  em  consideração  os  desenvolvimentos  teóricos  na  literatura  de  especialidade,  a  par  das  mudanças  operadas  no  quotidiano.  Em  2000,  era  encarada  como  “(…)  understanding,  using  and  reflecting  on  written  texts,  in  order  to  achieve  one’s  goals,  to  develop  one’s  knowledge and potential, and to participate in society” (OECD, 2013a, p. 9). Em 2009, foi  adotada  a  definição  que  passou  a  constar  dos  estudos  subsequentes  (2012  e  2015):  “Reading literacy is understanding, using, reflecting on and engaging with written texts, in  order  to  achieve  one’s  goals,  to  develop  one’s  knowledge  and  potential,  and  to  participate  in  society”  (idem;  sublinhado  nosso).  Acrescentar  o  envolvimento  dos  estudantes na leitura foi considerado relevante, concedendo estatuto à motivação para a  leitura (em dimensões como a diversidade, a frequência de leitura com fins recreativos e  atitude face à leitura), a par da proficiência em leitura (OECD, 2013a). 

Os  dois  estudos  consideraram  a  necessidade  de  acompanhar  o  alargamento  das  práticas de leitura online que fazem parte do nosso quotidiano. No âmbito do PISA, em  2009,  foi  realizado  um  estudo  com  estudantes  de  19  países,  com  o  objetivo  global  de  avaliar como  liam  textos  digitais,  entendidos  como  sinónimos  de  hipertextos:  “a  text  or  texts with navigation tools and features that allow the reader to move from one page or 

site  to  another.  They  are  texts  composed  predominantly  of  language  rendered  in  a  graphic  form”  (OECD,  2011a,  p.  40).  O  PIRLS,  a  partir  de  2016,  será  acompanhado  pelo  ePIRLS,  visto  como  “an  innovative  assessment  of  online  reading,  designed  to  be  responsive  to  the  information  age  and  provide  important  information  about  how  well  students are developing 21st century skills” (Mullis & Martin, 2015, p. 5). 

Outros  estudos  que  contemplam  o  ensino  da  leitura  na  Europa  (EACEA/Eurydice  (2012)  e  fora  da  Europa  (Cunningham  &  O’Donnell,  2015;  Goldman  &  Snow,  2015)  têm  também permitido uma reflexão atenta sobre várias dimensões que importa considerar  face à evolução do perfil de leitor na atualidade. 

Abordamos, em seguida, um dos processos que possivelmente mais contribui para a  evolução  de  tal  perfil:  a  compreensão  na  leitura,  complementada,  no  ponto  seguinte,  com a reflexão que fazemos sobre a motivação para a leitura.