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ANEXO 1 – Estatutos do Partido Communista do Brazil, março de 1922

1. A IMPRENSA OPERÁRIA EM QUESTÃO

2.2 As técnicas de produção e reprodução de imagens

Quando falamos do desenho político de imprensa, e mais particularmente, aquele consagrado na imprensa semanária francesa, se deve, primeiramente, esclarecer de onde nos propomos partir no que diz respeito à terminologias. Existe na esfera do desenho de imprensa uma série de ramificações que visam distinguir as modalidades mais variadas dessa expressão artística, a partir da maneira pela qual ela é apresentada pelo artista. Nessa classificação, também é considerada a proposição impressa no desenho pelo artista no momento da concepção, e o ponto de incidência sobre seu trabalho, que pode conferir ao tema apresentado um olhar mais estreito ou mais largo, dependendo mais das circunstâncias temporais e contextuais onde o desenho é construído, do que da inserção do artista numa ou noutra modalidade de desenho.

Uma vez que consideramos o desenho político de imprensa a partir de uma abordagem mais larga, devemos da mesma maneira nos debruçar sobre a terminologia que melhor se adapta a essa perspectiva, e é justamente o termo “caricatura” que expressa “uma designação mais genérica e mais ampla para uma forma de arte que se exprime através do desenho, da pintura, da escultura256”. No

entanto, isso não significa dizer que não há um fracionamento no interior do termo. A

254 TILLIER, Bertrand. La mobilisation sociale des artistes (1880-1914). In: Op. cit. p. 215. [Tradução

da autora].

255 LETHÈVE, Jacques. Op. cit. p. 164. [Tradução da autora]. 256 FONSECA, Joaquim Manuel da. Op. cit. p.17.

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caricatura pode se apresentar enquanto caricatura pessoal: quando ela utiliza a deformação física como metáfora de uma ideia257” ou como caricatura de situação, a

partir do momento em que os eventos reais ou imaginários colocam em relevo os costumes e as tradições de certos grupos humanos258”, mas sua riqueza configura

uma expressão gráfica da arte que pode ter prolongamentos.

A charge, o cartoon e a caricatura pessoal compõem o gênero mais amplo do

que chamamos de caricatura, entretanto, cada um porta suas próprias especificidades. A charge, termo francês que exprime o desejo de exagero, tem por objetivo criticar de maneira cômica um fato ou um acontecimento específico. Trazendo seu caráter efêmero, o cartoon, favorece a crítica de costumes, sendo mais genérico e, portanto, menos passageiro e pontual, a caricatura pessoal, por sua vez, privilegia o exagero dos traços fisionômicos de um indivíduo259, se

utilizando da deformação física do personagem como uma ferramenta de desconstrução e de construção da imagem. Contudo, por considerar as fronteiras entre essas técnicas muito frágeis, optamos por manter a referência à caricatura neste estudo.

A caricatura, enquanto manifestação artística originária da modernidade, deve seu reconhecimento à universalidade da imprensa, mas igualmente ao progresso técnico derivado da produção em série do desenho. Há dois principais processos de produção e reprodução desses desenhos que nos interessam nessa análise: a gravura e a estampa. A primeira, derivada de um processo de produção do desenho através de sua impressão sobre uma placa que pode ser de madeira (xilogravura), de metal (gravura em metal) ou de pedra (litogravura), produziu uma imagem (a matriz) considerada única, enquanto a segunda diz respeito aos processos fotomecânicos, isto é, de produção em série de imagens.

Em 1809, Senefelder discorre num texto sobre sua recente invenção: “a litografia oferece um desenho extraordinariamente bom ao mercado”. A litografia introduziu rapidamente uma revolução na imagem, até então dependente da gravura muito mais custosa e

257 Ibid.

258 Idem.

259 PAGLIOSA, Elcemira Lúcia Balvedi. Humor: um estudo sociolinguístico cognitivo da charge.

passível de reprodução em menores quantidades. Rapidamente, falamos de “litografia social”, segundo uma terminologia plural. Pouco custosa, ela constituiu, primeiramente, uma revolução econômica. Por outro lado ela pode ser, por sua natureza técnica, uma ferramenta de conhecimento e de propaganda de grande e rápida difusão, a uma época na qual o público novo desperta sua consciência política e social e experimenta uma educação pelos sentidos. No momento em que ela surgiu, essa descoberta respondeu imediatamente à demanda sempre crescente de uma sociedade consumidora de imagens, enquanto uma classe burguesa se afirmava com uma cultura pobre [...] A técnica litográfica produz uma formidável avalanche de imagens crescentes pelo desenvolvimento ao longo do século, na sua esteira, de numerosas técnicas gráficas de reprodução: gravura sobre madeira, gilotipia, zincografia... Assim, graças à gravura sobre madeira de topo e ao molde de aço estereotipando tanto o texto quanto a imagem, a imprensa se torna o espaço de eleição da segunda que toma certas vezes mesmo o espaço da primeira, ao ponto de que na metade do século, quando Philipon e Hetzel criam um jornal satírico, eles partem em busca de desenhistas, ao mesmo tempo em que recrutam os redatores e os colunistas sociais260.

A xilogravura é considerada como a técnica mais antiga, utilizada durante a Idade Média para multiplicar os textos escritos, e que no ocidente marcou uma posição de importância para a produção e reprodução de imagens261. A gravura em

relevo produzida sobre a placa de madeira, ficou conhecida por não ser uma técnica muito cara, e também graças a isso ela ganhou a simpatia popular. Mais rudimentar que a gravura em metal e que a litografia em termos de recursos, ela conseguiu resistir às inovações técnicas que emergiram no curso do tempo, mesmo que o seu declínio tenha sido notado no século XVI262. Nós devemos ainda considerar que as

escolhas técnicas no domínio da arte não dependem tão somente das condições econômicas, mas também dependem das identificações formais entre o artista, o material, e a maneira com a qual ele vai criar sua obra, é também em consequência dessa relação que se torna possível constatar, até os dias de hoje, a permanência da técnica, embora em menor escala.

Durante o século XX, a xilogravura foi renovada, notadamente pelo expressionismo alemão do qual ela bem soube se aproveitar, incorporando o desejo pela dramatização das cenas e as questões relacionadas à psicologia, onde o

260 TILLIER, Bertrand. La Républicature: la caricature politique en France 1870-1914. Op. cit.

pp.17-18. [Tradução da autora].

261 HERSKOVITS, Anico. Xilogravura: arte e técnica. Porto Alegre: Pomar Editorial, 2005. p. 99. 262 Ibid. p. 106.

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inconsciente é evocado de forma corrente. No contexto de destruição e de perdas que emergiu mais notadamente após a Primeira Guerra Mundial, o expressionismo soube jogar com os aspectos sensíveis de uma realidade regida pela violência, nesse ínterim “devemos assinalar a presença de artistas independentes como, por exemplo, Käthe Kollwitz, que se dedicou exclusivamente à gravura. Seu trabalho, de grande força expressiva porta uma atmosfera de realismo social263”, centrado

especialmente sobre o tema dos socialmente mais vulneráveis.

A gravura em metal, por outro lado, trouxe uma inovação marcante em relação à otimização do tempo no processo de produção de imagens, por ser mais rápida do que a xilogravura, assim como por conceder ao artista a possibilidade de observar os resultados de seu trabalho ao mesmo tempo em que são feitas as ranhuras sobre a placa de metal polido. Em paralelo a isso, o técnico poderia fazer a gravação, os testes de impressão e a marcação das legendas e dos diálogos, quando e se necessários264.

A despeito desses avanços trazidos pela gravura em metal, a grande inovação foi desenvolvida pela litografia. Ao contrário das outras técnicas que vimos, a litografia não produz ranhuras ou fendas sobre as quais a tinta será absorvida. O artista trabalha sobre uma superfície plana da pedra usando o princípio de que óleo e água não se misturam, produzindo, assim, o desenho.

Com a litografia, a técnica de reprodução chegou numa nova e essencial etapa. Esse processo, muito mais preciso, que se diferencia pela transposição do desenho sobre a pedra, ao invés de talhá-lo sobre a madeira ou de registrá-lo sobre a placa metálica, permitirá aos artistas gráficos, pela primeira vez de não apenas reproduzir as obras de uma maneira ampla, como o fez, mas de oferecer todos os dias novas criações para o mercado. Graças à litografia as artes gráficas puderem ilustrar a vida cotidiana e se situar no mesmo nível que a imprensa265.

263 FAJARDO, Elias; SUSSEKIND, Felipe; VALE, Marcio do. Gravura. Rio de Janeiro: Senac

Nacional, 1999. p. 28.

264 FONSECA, Joaquim da. Op. cit. pp. 36-37.

265 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter;

SCHÖTTKER, Detlev; BUCK-MORSS, Susan; HANSEN, Susan. Benjamin e a obra de arte:

A difusão da litografia abre muitas discussões em torno do tempo de produção, assim como sobre o tempo de permanência das imagens diante do olhar do espectador. Facilmente multiplicável, “a imagem é investida de novos campos sociais e de novas práticas ao mesmo tempo em que retornaria por todos os espaços266”. Ela estabelece cruzamentos entre a vida privada e a vida pública, por

sua facilidade de acesso, de consumo e de circulação. Além disso, o progresso técnico associado à litografia forneceu numerosas oportunidades para o melhoramento da qualidade do desenho, que poderia ser feito de forma mais detalhada em termos de tons e texturas267, o que, por conseguinte, lhe rendeu maior

potencial atrativo aos olhos do público.

No caso brasileiro, a chegada das técnicas de impressão e reprodução de imagens relacionadas à imprensa, emergem no fim do século XIX driblando os problemas de falta de mão-de-obra qualificada (quase inexistente), e o número bastante reduzido de tipografias realmente equipadas. A influência principal residia no trabalho de litógrafos franceses que traziam ao Brasil os avanços do design gráfico. A primeira iniciativa no formato das revistas ilustradas se deu com a Semana

Ilustrada, empreendimento de Carl Fleiuss, litógrafo e gravador alemão que integrou

a missão científica conduzida por naturalistas alemães no Brasil. Por outro lado, esse conteúdo continuou concentrado sobre o espaço das elites brasileiras268.

A caricatura política, a seu turno, aparece no Brasil durante esse mesmo contexto, herdeira de um período no qual o governo imperial brasileiro confere um pouco mais de liberdade à imprensa. Debochando dos políticos, dos costumes e das tradições, ela lentamente penetrou nas outras esferas sociais, graças às exposições e aos esforços desenvolvidos na difusão do gosto artístico: “a significação da caricatura brasileira, enquanto um elemento de divulgação das artes plásticas entre

266 TILLIER, Bertrand. La Républicature : la caricature politique en France 1870-1914. Op. cit. p.

18. [Tradução da autora].

267 FONSECA. Joaquim da. Op. cit. p. 39.

268 ANDRADE. Joaquim Marçal Ferreira de. Do gráfico ao fotográfico: a presença da fotografia nos

impressos. In: CARDOSO, Rafael (orgs.). O design brasileiro antes do design, aspectos da

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nós, não pode ser desprezada, mesmo se alguém a queira restringir a um fim perturbador, pelo ridículo ao qual ela submerge suas vítimas269”.

Os progressos técnicos contribuíram igualmente para o melhoramento dos recursos visuais incorporados à grande imprensa, e os profissionais começam a refletir sobre a integração da imagem e do texto na página. Mesmo se a impressão continuava independente entre eles “os artistas das palavras e da iconografia encontraram na imprensa oportunidades atrativas de profissionalização270”. A

amplificação do espaço de trabalho e a especialização técnica nesse métier permitiu a inserção do desenho de imprensa, mesmo nos jornais que dispunham de menos recursos financeiros para administrar o processo, o que, por consequência, nos conduzirá à reflexão da importância conferida à visualidade veiculada na imprensa moderna.

Difundida pelo mundo, a imagem começa a gerar novos debates. A reprodução muito mais fácil do desenho provocou igualmente os espíritos mais inquietos a refletirem sobre sua unicidade, de onde os debates de Walter Benjamin, e mais recentemente de Georges Didi-Huberman sobre a possível perda da unicidade da imagem surgem. Fruto de seu tempo, e bem alocado no seu contexto, Benjamin problematizou a maneira pela qual as obras de arte poderiam se fazer contemplar após o advento do que ele chamou de era da reprodutibilidade técnica; um período também muito marcado pela chegada da fotografia e de todas as questões que giravam em torno do papel do artista nesse processo. Segundo Benjamin:

A cada dia torna-se mais irrecusável a necessidade de chegar o mais perto possível do objeto por meio de sua imagem, ou melhor ainda, por meio de sua cópia ou reprodução. E as reproduções publicadas nas revistas ilustradas e nos semanários se distinguem inconfundivelmente das imagens, pois a singularidade e a permanência estão tão estreitamente associadas a essas últimas quanto a fluidez e a repetição às primeiras. Despojar o objeto de seu invólucro, destruir a sua aura, esta é a característica de uma

269 LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Vol. I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. p.

96.

270 LUCA, Tania Regina de. A grande imprensa na primeira metade do século XX. In: MARTINS, Ana

Luiza; LUCA, Tania Regina. (orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 152.

percepção cujo “sentido do semelhante no mundo” é tão forte que captura o singular por meio da reprodução. Manifesta-se assim, no plano sensível, o que se percebe no plano teórico como a importância crescente da estatística. A orientação da realidade em função das massas e destas em função da realidade é um processo de imenso alcance não só para o pensamento como para a intuição271.

As imagens passam a se fazer presentes na vida das pessoas, menos pelo seu valor de culto e mais por sua capacidade de se fazerem próximas, mesmo sem a magia da aparição única, sem aquilo que foi denominado “aura”. A perda de sua unicidade foi pensada por Walter Benjamin em relação à concepção modernista que enxergava a aura como condutora de ilusões criadas sobre a imagem, ligadas à incapacidade da modernidade de preservar o fenômeno da experiência sensível, sucessivamente substituído pelas necessidades de consumo generalizadas272.

A excentricidade moderna no seu desejo de multiplicar a imagem chegou ao centro das reflexões sobre a percepção do espectador. O debate sobre a permanência das imagens no pensamento do indivíduo através dos mecanismos de memória reduziu os novos elementos ao domínio da filosofia da arte, compreendendo o quadro da temporalidade e da historicidade das imagens, de sua utilização, mais também de sua interpretação. Uma multiplicidade de reproduções, de informações, e de mediações vão inscrever o homem num sistema de signos muito mais complexo273 onde a ilusão de outrora parece dar lugar à construção de

uma realidade bem particular.

O processo dialético descrito por Benjamin faz parte de um esforço para o entendimento das permanências presentes numa imagem durante o tempo. Vista como fator original da imagem, a aura não pode ser tomada pelo seu desaparecimento “na medida em que ela apresenta uma questão de sobrevivência274” seja uma sobrevivência (naschleben275) de gestos e formas,

271 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter;

SCHOTTKER, Detlev; BUCK-MOSS, Susan; HANSEN, Miriam. Benjamin e a obra de arte: técnica,

imagem, percepção. Op. cit. pp. 14-15.

272 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. pp. 153-154.

273 DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps: histoire de l’art et anachronisme des images.

Paris: Les Éditions Minuit, 2010. p. 235.

274 Ibid. p. 237.

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descrita por Warburg (pathosformel276), seja de ideias (logosformel277) no sentido

empregado por Ginzburg. Em todo o caso, essa sobrevivência será sempre localizada no quadro das diversas temporalidades presentes, assim como, do eterno jogo de sensibilidades involuntariamente proposto pelo espectador quando as múltiplas memórias reivindicam seu espaço no ato da percepção da imagem.

As experiências ópticas e técnicas desenvolvidas no primeiro quarto do século XIX, somadas aos debates filosóficos que começam a propor novas indagações sobre a experiência sensorial, vêm a confirmar uma profunda modificação na maneira pela qual o espectador vai orquestrar seus recursos discursivos em relação ao que é visto. Não se trata de pensar a imagem enquanto produtora de um discurso ordenado e fechado, mas de compreendê-la a partir de seus próprios mecanismos de ação, muito distintos daqueles linguísticos ou discursivos, considerando que eles se manifestam, mais precisamente, no campo das simbologias.

O desenho político de imprensa, e de igual maneira a caricatura, enquanto manifestação artística de caráter moderno, está inscrito justamente sobre o terreno das simbologias; “de essência efêmera mais de expressão recorrente, opera deslocamentos, condensações, exageros, distorções, alterações e mutações, deslizando incessantemente em torno do anormal, por um processo de fratura da norma278”. A caricatura política é fruto de uma manifestação de liberdade do artista

que pode mudar seu traço deformador de um personagem ou de um contexto. Nesse momento, “os artistas acreditavam que tinham a missão de solucionar as crises do mundo moderno, diante da constatação de impotência da ciência para tal”279. No que concerne à caricatura política, esse desejo é ainda mais imperativo,

considerando que o artista, não raramente, está engajado nas fileiras de uma militância efetiva.

276 Idem.

277 GINZBURG, Carlo. Medo, reverência e terror. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

278 TILLIER, Bertrand. La Républicature : la caricature politique en France 1870-1914. Op. cit. p.

60. [Tradução da autora].

279 KERN, Maria Lúcia Bastos. Tradição e Modernidade: a imagem e a questão da representação. In Estudos Ibero Americanos. PUCRS, vol. XXXI, n. 2, dezembro 2005. p.16.

Devemos assinalar que os caricaturistas dos anos 1880-1914 pertenciam a três gerações diferentes. Os primeiros, como Gill, Bertall ou Le Petit, conheceram o Segundo Império e a Comuna. Os segundos, tais como Forain, Ibels e Caran d’Ache, desenvolvem sua atividade durante a Terceira República. Enquanto que os últimos – Jossot, Grandjouan e Radiguet – começaram a produzir no início do século XX nos meios libertários ou francamente anarquistas como

L’Assiette au Beurre ou Les Temps Nouveaux. Se os caricaturistas

dos primeiros anos da Terceira República se enquadram na direita alinhada dos anos de 1860-1870 e difundem os retratos-charge, os caricaturistas dos anos de 1900-1914 se orientam mais geralmente em torno da sátira de tipo social – o militar, o padre, o burguês, o operário... Isso explica em parte porque o retrato-charge aparece mais nos anos de 1875-1900 do que mais tarde280.

Essa periodização traçada por Tillier, nos permite pensar nas especificidades das caricaturas em relação ao momento em que elas foram produzidas. A filiação política do artista pode nos fornecer mais elementos para que possamos melhor compreender suas preferências por determinado tema ou por certos acontecimentos. Partindo para o caso das fraturas dos corpos, Lefébure assinala que: “todos os artistas compõem a partir das mesmas categorias de percepção do corpo, mas o tratamento dos atributos indica, se necessário, que as propostas diferem de acordo com seu engajamento partidário ou seu olhar sobre a atualidade”281. Portanto, se deve observar que mesmo as escolhas artísticas,

compreendidas aquelas concernentes à charge de modificações impressas sobre o desenho, se localizam entre as condições externas que influenciam o olhar que o artista tem da cena ou do personagem, de onde provêm sua inspiração.

Além disso, a caricatura coloca em jogo também certos recursos discursivos para chegar ao seu propósito, provocando certa agitação no espectador, mas isso não configura uma condição obrigatória para sua eficácia, uma vez que se o desenho não se propõe a ser didático, o texto que o complementa tampouco. A relação estabelecida entre a imagem e o texto numa caricatura lhe confere uma condição de indissociabilidade; imagem e texto vão se utilizar das propriedades que lhes são particulares para reforçar seu poder figurativo. Assim, é realmente muito difícil distinguir em uma caricatura o que se constitui enquanto elemento restrito ao

280 TILLIER, Bertrand. La Républicature : la caricature politique en France 1870-1914. Op. cit. pp.

72-73. [Tradução da autora].

281 LEFÉBURE, Pierre. Marc Blondel entre grotesque et allégorie dans le dessin de presse. In : Sociétés et Représentations. 2002/02, n.10. p. 359. [Tradução da autora].

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repertório discursivo e o que pertence à propriedade exclusiva do desenho e, por esta razão, é indispensável analisar a caricatura sem desprezar as ferramentas fornecidas pela semiótica.

É inegável que a caricatura política visa portar ideias e que, contrariamente a isso, seu conteúdo não é sempre legível, isso porque “jamais existiu e jamais vai existir um espectador que apreenderá o mundo a partir de uma evidência transparente282”, o espectador vai ser sempre tocado pelo contexto no qual ele se

encontra. Assim, mesmo se a caricatura porta uma retórica pronta para convencer o indivíduo que a experimenta, ela teria que negociar com as percepções pré-