• Nenhum resultado encontrado

De  onde,  quando  e  como  surge  a  narrativa  científica  do  desenvolvimento?  Quais  os  significados  sociais  e  políticos  que  esta  narrativa  assume  em  diferentes  momentos? Que consequências se podem destacar no campo educativo das narrativas  que  acerca  do  desenvolvimento  se  têm  produzido?  Neste  capítulo,  e  a  partir  destas  questões,  procuramos  contribuir  para  a  compreensão  do  processo  de  construção  social (científica, política, económica, cognitiva) do desenvolvimento, através de uma  digressão  sócio‐histórica  que  culmina  no  actual  momento  em  que  este  está  no  “no 

centro  de  uma  incrivelmente  poderosa  constelação  semântica”  (Esteva,  1992:8),  sem 

paralelo na modernidade, pela força que tem de nortear (literalmente) pensamento e  acção, apesar de que para outros persiste hoje apenas como palavra/noção “incapaz 

de  dar  substância  e  sentido  ao  pensamento  e  comportamento”  e,  como  tal,  frágil  e 

vazia (idem:8), mesmo uma “uma ruína na paisagem intelectual” (Sachs, 1992:1).   Ou seja, vivemos um momento histórico em que simultaneamente proliferam  as referências no discurso quotidiano e político aos imperativos do desenvolvimento e  se publicam dezenas de revistas científicas que erigem o desenvolvimento para núcleo  central  das  problemáticas  que  abordam  e,  por  outro  lado,  nos  deparamos  com  discursos, que os seus críticos apelidam de pós‐modernos (Parfitt, 2002), que sugerem  até que se abandone a utilização do termo desenvolvimento de tão pouco que ainda  significa e de tão catastrófica foi e é a sua invocação principalmente para aqueles que  dele  são  objecto.  «Impostura  intelectual»,  dizem  mesmo  estes  críticos  do  desenvolvimento (Latouche, 2004:73). 

Esta  digressão  sócio‐histórica  através  dos  diversos  sentidos  do  desenvolvimento, a partir da caracterização das concepções políticas e científicas que  em  diferentes  momentos  foram  predominantes,  visa  essencialmente  dar  conta  da  persistência  dos  traços  hegemónicos  de  pensar  e  concretizar  aquele  desígnio,  enfim,  salientar como a história do desenvolvimento, principalmente a sua história política e  científica,  é  uma  história  de  continuidade(s)  muito  mais  do  que  de  rupturas.  A  identificação  de  distintas  concepções  dos  processos  de  desenvolvimento  que  particularmente  ao  longo  da  segunda  metade  do  século  vinte  se  foram  erigindo 

contribui,  em  larga  medida,  para  confirmar  estas  continuidades:  constituem‐se  em  quadros  de  caracterização  e  análise  de  processos  designados  de  desenvolvimento,  naturalmente  que  ancorados  em  conceitos  distintos  oriundos  de  tradições  teóricas  várias,  enfatizando  aspectos  diversos  daqueles  processos,  encontrando  mesmo  a  sua  génese  em  matrizes  disciplinares  marcadas  pela  pluralidade,  mas  em  que  verdadeiramente  o  programa  societário,  o  sentido  do  caminho  da  humanidade,  a  teleologia que subjaz à ideia de desenvolvimento não é, essencialmente, distinta entre  as várias concepções, nem objecto de uma crítica verdadeiramente radical.  

Salvaguardam‐se  no  entanto  os  trabalhos  que  mais  recentemente  (particularmente  a  partir  de  meados  da  década  de  8021,  e  com  maior  expressão  a  partir da década de 90 do século passado22), se vêm desenvolvendo sob a designação  de  pós‐desenvolvimento23  (cf.  Sachs,  1992;  Latouche,  2004;  Munck&O’Hearn,  1999;  Escobar, 1995, Santos, 2002) e que efectivamente desenvolvem uma análise radical da  “era  do  desenvolvimento”  que  afirmam  ser  necessário  encerrar,  não  só  porque  “as 

condições  históricas  que  catapultaram  a  ideia  [do  desenvolvimento]  para  a  proeminência  desapareceram:  o  desenvolvimento  tornou‐se ultrapassado.  Mas  acima  de  tudo,  as  esperanças  e  desejos  que  fizeram  com  que  a  ideia  voasse,  estão  agora  exauridos: o desenvolvimento tornou‐se obsoleto” (Sachs, 1992:1)..  

Wolfgang  Sachs  (1992:2‐4)  afirma  que  a  “era  do  desenvolvimento”  que  começa  após  a  II  Guerra  Mundial  está  em  declínio  porque  as  suas  quatro  premissas  fundadoras foram tornadas obsoletas pela história. A primeira destas premissas era a  que afirmava quer a superioridade incontestável na escala de evolução social dos EUA  e  das  outras  nações  altamente  industrializadas  quer  os  efeitos  libertadores  que  essa  industrialização  traria  à  humanidade,  premissa  hoje  altamente  questionada  tanto  pelos  efeitos  que  a  exacerbação  tecnológica  produziu  em  termos  ambientais  e  que 

21Embora  a  maioria  das  obras  compulsadas  sobre  esta  perspectiva  sejam  da  década  de  90  do  século  passado,  Gustavo  Esteva  (1992:16),  recorrendo  ele  próprio  a  uma  obra  de  Gilbert  Rist  (1990),  remete  para os idos de 1985 o início desta nova era do pós‐desenvolvimento: “By 1985, a post development age  seemed to be in the offing”.

22

  Embora  possamos  encontrar  contributos  isolados  que  a  precedem  enquanto  corrente  mais  sistemática, de que arriscaríamos destacar como maior representante Ivan Illich e os trabalhos que ao  longo dos anos 70 e 80 produziu (cf. Finger&Asún, 2003 e Latouche, 2004 para uma listagem ampla dos  trabalhos de Ivan Illich durante este período)

23  Parfitt  (2002:1‐10)  apresenta  sumariamente  algumas  outras  obras  significativas  dos  anos  90  produzidas a partir do quadrante intelectual das perspectivas pós‐desenvolvimentistas.

mostram que se as nações industrializadas ainda seguem à frente...apenas se dirigem a  um  abismo  civilizacional  colocando  em  causa  a  sustentabilidade  global  do  planeta,  como  pela  constatação  de  que  a  prometida  redenção  da  humanidade  não  chegou  a  acontecer, nem sequer se assistiu a uma socialização justa de eventuais benefícios de  algumas  das  promessas  da  modernização  tecnológica.  Portanto,  face  a  esta  primeira  premissa  a  questão  que  se  coloca  é  muito  simplesmente:  as  nações  ditas  desenvolvidas/industrializadas  afinal  são  modelos  de  quê  e  para  que  futuro?  Uma  segunda  premissa  ancorava‐se  no  confronto  então  vivido  entre  dois  blocos  políticos  hegemónicos  (protagonizados  pelos  EUA  e  pela  URSS)  onde  o  desenvolvimento  (e  particularmente a ajuda ao desenvolvimento) representava uma forma de fidelização  das nações (principalmente as que viviam processos de descolonização) e de vantagem  competitiva  nesta  luta  entre  sistemas  políticos.  Hoje,  num  contexto  político  substancialmente  distinto,  marcado  pelo  fim  do  confronto  entre  bloco  de  leste  e  ocidental  e  pelo  advento  de  um  certo  mundo  policêntrico,  a  dimensão  política  e  ideológica  do  desenvolvimento  perdeu  força  enquanto  arma  de  arremesso  na  competição  entre  sistemas  políticos  e  os  apelos  ao  desenvolvimento  tomam  hoje  como  referencial  a  divisão  ricos‐pobres,  o  que  transforma  o  carácter  do  projecto  do  desenvolvimento:  “a  prevenção  substitui  o  progresso  como  objectivo  do 

desenvolvimento;  a  redistribuição  do  risco  mais  do  que  a  redistribuição  da  riqueza  domina agora a agenda internacional” (idem, ibidem:3). A terceira premissa da “era do 

desenvolvimento”  remetia  para  a  sua  capacidade  de  transformar  a  face  da  terra  diminuindo  a  desigualdade  entre  regiões  e  nações.  Pois  bem,  não  só  isso  não  aconteceu como a desigualdade se agravou e a ilusão de “apanhar os países da frente”  revelou‐se  apenas  isso,  uma  ilusão.  De  igual  modo  assistiu‐se  a  um  aumento  da  polarização  social  no  interior  dos  países,  e  não  apenas  dentro  dos  mais  pobres,  mas  também  dentro  das  nações  ditas  desenvolvidas  (cf.  Canário,  1999:62).  Por  fim,  a  quarta  e  última  premissa  da  “era  do  desenvolvimento”  assentava  no  desígnio  da  Ocidentalização  do  mundo  (“Westernization  of  the  world”)  o  que  supunha  uma  “via 

única” que conduzisse a diversidade humana, naturalmente deficitária, por um mesmo 

caminho,  rumo  à  maturidade  dos  países  que  “seguiam  à  frente”.  Ora,  perante  esta  perspectiva, Wolfgang Sachs sugere que não era o falhanço do desenvolvimento que 

mais  devíamos  temer,  mas  sim  o  seu  sucesso!  Com  efeito,  a  ter  sido  concretizado  totalmente este desígnio profundamente etnocêntrico, ter‐se‐ia apenas provado que a  empresa  a  que  o  desenvolvimento  se  devotou  estava  desde  o  início  profundamente  errada.  Não  pode  todavia  deixar  de  se  assinalar  que  esta  agenda  escondida  do  desenvolvimento  ao  estilo  ocidental  se  concretizou  em  parte  e  resultou  obviamente  numa  tremenda  perda  de  diversidade  de  que  o  mercado,  o  estado  e  a  ciência  terão  sido  actores  privilegiados  enquanto  promotores  de  uma  universalização  cultural  uniformizante  que  invadiu  mesmo  o  espaço  mental  da  maior  parte  da  Humanidade;  como sugere Sachs (1992:4) “o Outro desapareceu com o desenvolvimento” e com ele  desapareceram  algumas  alternativas  viáveis  a  um  mundo  industrializado  orientado  para o crescimento e alguma capacidade humana de enfrentar o futuro de forma mais  criativa. A transformação das condições históricas que permitiram ao desenvolvimento  erguer‐se  por  sobre  aquelas  premissas  tornou‐o  num  conceito  “amiba”,  isto  é,  de  contornos e fronteiras indefinidos mas inerradicável (idem, ibidem: 4). 

De  acordo  com  Parfitt  (2002:5)  esta  escola  de  pensamento  ou  discurso  pós  desenvolvimentista  “coheres  around  the  central  contentions  that  development  has 

been harmful, and that consequently it should be consigned to the dustbin of history in  order  to  make  way  for  new  strategies  of  emancipation  associated  with  what  are  sometimes  referred  to  as  ‘new  social  movements’  originating  in  the  ‘Third  World’  “. 

Neste sentido, estes autores esforçam‐se por realizar “um inventário crítico dos credos 

do  desenvolvimento,  da  sua  história  e  implicações,  para  expor  à  luz  o  seu  viés  perceptivo,  a  sua  inadequação  histórica  e  a  sua  esterilidade  imaginativa”  (Sachs, 

1992:2).  Não  obstante  a  postura  crítica,  os  autores  desta  perspectiva  têm  a  clara  consciência de que o desenvolvimento ocupa ainda um lugar importante nos discursos  das declarações oficiais de entidades internacionais que agem no domínio da política e  da  economia  e  mesmo  nos  discursos  dos  movimentos  de  base  comunitária  que  pugnam  pela  transformação  das  condições  de  vida  a  um  nível  micro‐sistémico;  daí  decorre que o projecto intelectual da perspectiva pós desenvolvimentista seja, mais do  que  criticar  o  desenvolvimento  como  performance  técnica  ou  enquanto  conflito  de  classes,  o  de  “desmantelar  essa  estrutura  mental”  (idem,  ibidem:1)  que  o  desenvolvimento ainda constitui, já que “o desenvolvimento é muito mais do que uma 

empresa  sócio‐económica;  é  uma  percepção  que  modela  a  realidade,  um  mito  que  conforta  as  sociedades  e  uma  fantasia  que  liberta  paixões”  (idem,  ibidem:1).  Mas  os 

argumentos destes críticos radicais não deixam de igualmente sofrer contestação por  parte de autores como Parfitt (2002:3) que constatando que “the teorists who took a 

post‐modern  route  out  of  the  impasse  often  ended  by  taking  a  rejectionist  position  towards  development”  e  se  contrapõe  ao  anunciado  «fim  do  desenvolvimento», 

argumentando que “the post‐development school’s call for the end of development is 

misconceived and precipitate and that its view as to what should follow development  raises  problems  that  can  be  more  effectively  solved  within  the  context  of  a  pro‐ development  approach”  (idem,  ibidem:5).  Para  este  autor,  o  apoio  teórico  dos  pós‐

desenvolvimentistas  (no  designado  pós‐modernismo  ou  pós‐estruturalismo),  invocando  nomes  como  Foucault  (principalmente  este),  Baudrillard,  Lyotard  e  Jameson,  não  só  é  estrategicamente  parcial  nos  autores  ditos  pós‐modernos  que  utiliza  e  nos  aspectos  que  mobiliza  do  trabalho  teórico  de  cada  um,  como  passa  por  cima  das  críticas  e  perspectivas  alternativas  aos  seus  trabalhos  (e  aqui  o  autor  especificamente  salienta  a  «ausência»  de  J.  Derrida  e  E.  Levinas  destas  reflexões  e  a  não consideração das críticas de J. Habermas ao universo teórico pós‐moderno). 

Ora, na perspectiva do autor que vimos seguindo, e é bom esclarecer que ele  próprio parte da análise dos trabalhos dos teóricos mais influentes da perspectiva pós‐ moderna,  uma  maior  contenção  e  atenção  à  galáxia  teórica  utilizada  conduziria  certamente  os  pós‐desenvolvimentistas  a  outras  conclusões  nos  seus  trabalhos  e  consequentemente  a  uma  «reabilitação»  do  valor  do  desenvolvimento,  particularmente,  no  sentido  que  Parfitt  (2002)  lhe  atribui,  em  que  se  salvaguarda  a  possibilidade  de  que  determinadas  formas  de  desenvolvimento  podem  ser  complementares  a  projectos  emancipatórios  conduzidos  por  movimentos  sociais  perseguindo assim um sentido de desenvolvimento como “a entailing achievement of 

the freedom of a community, nation, or group, to pursue its own projects for realisation  of  a  good  life  on  the  proviso  that  it  does  the  least  possible  harm  to  others”  (Parfitt, 

2002:6).