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Finalidades, objectos e teses do trabalho de pesquisa

O  trabalho  que  agora  se  dá  a  ler  tem  como  finalidade  dar  conta  de  um  processo  de  reflexão  e  de  pesquisa  que  procura  caracterizar  e  problematizar  como  dinâmicas educativas os processos de desenvolvimento local e comunitário, isto é, os 

processos  de  mobilização  de  um  conjunto  de  sujeitos,  colectivamente  organizados12  em  torno  da  definição  de  sentidos  para  a  sua  vida  e  para  o  seu  trabalho  e  agindo  na/sobre a realidade em função destes, com a finalidade de procurarem melhorar as  suas  condições  de  vida,  individuais  e  colectivas,  e  satisfazerem  as  suas  necessidades  enquanto  sujeitos  e  enquanto  grupo  humano  que  partilha  um  território  e  entre  si  mantém  laços  sociais  marcados  pela  interdependência.  É,  portanto,  um  trabalho  de  análise  de  transformações  diversas  coincidentes  no  tempo  e  ontologicamente  imbricadas,  entendidas  como  educativas  pelos  efeitos  que  produzem  nos  sujeitos:  a  transformação de si, de e com outros, a transformação dos processos de trabalho, dos  sentidos sobre estes e das relações sociais que envolve e, ainda, a transformação do  contexto de vida concreto em que os sujeitos se inscrevem e das representações que  sobre  ele  produzem.  Por  outro  lado,  a  partir  da  concretização  da  finalidade  anteriormente enunciada, e portanto convergentemente, este é também um trabalho  que  tem  como  finalidade  a  preocupação  de  interpelar  as  asserções  e  os  questionamentos  teóricos  que  constituem  para  nós,  à  partida,  os  fundamentos  do  nosso modo de equacionar as relações entre educação e desenvolvimento. Para situar  o  leitor,  diremos  que  a  primeira  finalidade  se  refere  à  atrás  referida  pista  empírica,  enquanto a segunda diz respeito à pista teórica desta pesquisa. 

O  trabalho  de  reflexão  e  pesquisa  toma  como  objecto  social  o  processo  de  transição  autogestionário,  que  vem  decorrendo  desde  1995,  vivido  e  conduzido  por  trabalhadores  e  trabalhadoras  da  usina  Catende13  (produtora  de  açúcar),  situada  no  Nordeste  brasileiro,  mais  exactamente  na  Zona  da  Mata  Sul  de  Pernambuco.  Este  processo foi encetado como resposta a um processo de depauperação fraudulenta do  património da Usina por parte dos anteriores proprietários‐usineiros que colocou em  risco o trabalho e a subsistência de alguns milhares de trabalhadores e suas famílias e  foi marcado pela apropriação e gestão colectiva dos meios de produção por parte dos  trabalhadores,  ainda  que  mitigada  pela  manutenção  de  uma  supervisão  judicial  à 

12 Em boa verdade, como salienta Erhardt Friedberg (in Boudon, R. (1996). Tratado de Sociologia. Porto:  Edições  Asa,  pp.  343‐378.),  o  conceito  de  “organização”  supõe  intrinsecamente  acção  colectiva  regulada, pelo que a expressão “colectivamente organizados” é relativamente tautológica... 

13  Um  conjunto  de  termos  que  se  referem  em  concreto  ao  contexto  do  caso  estudado  consta  do  glossário inicial.

gestão conduzida pelos trabalhadores, que mantém em suspenso a entrega definitiva  aos  trabalhadores  da  posse  do  património  agrícola  e  industrial  enquanto  não  se  encerrar o processo de falência. 

 

  Legenda14: Panorâmica da Usina Catende 

 

Este  objecto  social  polariza  um  conjunto  de  características  que  o  tornam  particularmente  pertinente  para  a  análise  das  funções  e  caracteres  “híbridos”  que  a  educação  assume  nas  dinâmicas  de  desenvolvimento,  como  profundamente  cristalizador  das  tensões  e  contradições  que  envolvem  as  dinâmicas  de  desenvolvimento  local  ao  nível  político,  económico,  organizacional,  cultural  e  educativo. Em síntese, particularmente adequado para a partir dele questionarmos as  relações educação/desenvolvimento nos dias que correm. 

Em  primeiro  lugar,  estamos  perante  uma  situação‐limite  de  sobrevivência  física  que  desencadeia  uma  mobilização  e  organização  de  milhares  de  pessoas,  analfabetas  na  sua  larga  maioria  que,  independentemente  dos  diversos  sentidos  e  interpretações políticas para a situação que vivem, congregam num preciso momento  as suas vontades e forças em torno de um desígnio comum, que em si mesmo é uma  amálgama  de  desígnios  pessoais:  a  preservação  das  condições  indispensáveis  à  sua  existência.  A  acreditar  na  hierarquização  das  necessidades  humanas  elaborada  por 

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  As  fotografias  que  serão  apresentadas  ao  longo  da  tese  foram  retiradas  da  internet,  do  site  do  projecto Catende/Harmonia, no qual constam as identificações dos autores em algumas delas e noutras  não.  

Maslow,  dificilmente  encontraremos  em  qualquer  outro  contexto  uma  razão  mais  radical para o despoletar e o envolvimento numa dinâmica de desenvolvimento local.  E neste sentido, esta situação é, potencialmente, um bom analisador dos modos como  da heterogeneidade das ordens de justificação pessoais e institucionais presentes num  dado momento, num dado contexto, se pode passar à concertação e à acção comum  que,  de  forma  mais  ou  menos  tensa,  incorpora  essa  heterogeneidade  fundadora  do  sentido para a mobilização e para a acção e a aglutina em torno de uma referência que  é inevitavelmente comum. Mas é igualmente uma situação que interpela precisamente  os  modos  de  construção  política  do  sentido  para  os  projectos  de  desenvolvimento  comunitário  e  local  e  a  própria  ideia  de  construção  de  um  projecto  comum,  colectivamente assumido. Provavelmente é, ainda, uma situação significativa do modo  como  um  processo  que  nasce  da  necessidade  urgente  de  satisfação  de  necessidades  básicas  do  ser  humano  se  converte  num  processo  que  transcende  essa  intenção  e  revela o ser humano, mesmo o mais despossuído, como um ser de projecto, capaz de  se projectar e de projectar um sentido para a sua vida e de agir em conformidade com  essa natureza, ou seja, em que a sua humanitude se revela15. 

Por outro lado, a opção pela autogestão como processo e finalidade almejada  do  empreendimento  agro‐industrial  de  Catende,  isto  é,  uma  concepção  e  concretização,  sempre  inacabadas,  de  um  percurso  a  prosseguir  e  a  definição  de  um  ideal‐utopia a alcançar para esta dinâmica de desenvolvimento local e comunitário que  supõe:  a  apropriação  e  gestão  dos  meios  sociais  de  produção  pelos  trabalhadores;  a  instauração  de  relações  simétricas  entre  sujeitos  sociais  como  princípio  político  de  organização  da  vida  no  interior  do  empreendimento;  o  aprofundamento  de  mecanismos de participação democrática colectiva em todo o processo de definição e  tomada de decisões tácticas e estratégicas de orientação do projecto e sua avaliação e  uma  socialização  tendencialmente  equitativa  das  mais‐valias  do  trabalho.  Este 

15  Em  nossa  opinião,  a  este  objecto  social  aplicam‐se‐lhe  particularmente  bem  as  palavras  de  Alberto  Melo (2002:442) escritas acerca do desenvolvimento local que, como campo de reflexão e intervenção,  é  a  “arena  natural  para  a  peleja  entre  as  novas  ideologias  económicas  e  a  determinação  de  «pôr  as  pessoas em primeiro lugar» e de fazer a demonstração prática de que a vontade, a emoção, o querer e a  acção humanas podem resistir aos desígnios destrutivos da economia mundial”.

processo  é  particularmente  instigante  para  interrogar  as  dinâmicas  de  desenvolvimento local. 

Não  é  tanto  pela  relativa  «anacronia»  histórica  da  re‐emergência  da  autogestão hoje depois das suas materializações históricas concretas não terem sido,  no  passado,  necessariamente  bem  sucedidas  ou  sustentáveis  no  tempo  (com  raras  excepções, como o caso do complexo cooperativo de Mondragón, no País Basco ‐ mas  cujas particularidades e sua discussão não cabem na economia deste trabalho (cf. por  exemplo  a  este  respeito  Santos,  2002)  ‐  e,  obviamente,  do  movimento  a  que  se  tem  assistido nas últimas duas décadas na América Latina, particularmente na Argentina e  Brasil,  que  já  se  poderá  considerar  significativo  deste  ressurgimento  e  sustentabilidade),  mas  porque:  i)  esta  dinâmica  de  desenvolvimento  local  se  procura  concretizar  no  âmbito  de  um  território  secularmente  marcado  pelo  modelo  de  relações  escravocrata,  que  a  obra  de  Gilberto  Freyre,  “Casa  Grande  e  Senzala”16  retrata  e,  mais  recentemente,  marcado  por  relações  de  assalariamento  não  só  caracterizadas  pela  forte  discrepância  entre  trabalho  e  retribuição  do  trabalho  (ou  seja, a mais‐valia extraída), como pela instauração de uma nova forma de dependência  do trabalhador da venda da sua mão‐de‐obra face à manutenção de uma situação em  que  os  trabalhadores  não  detêm  a  mínima  propriedade  de  quaisquer  meios  de  produção; ii) envolve uma população que na sua larga maioria não é alfabetizada e iii)  incide  largamente  num  empreendimento  cuja  sobrevivência  está  profundamente  dependente das flutuações do mercado mundial do açúcar e, portanto, da capacidade  de resistir aos fenómenos típicos de uma economia capitalista num mundo globalizado  (competitividade, produtividade, lógica da oferta e procura, crescente tecnologização  da  produção,  entre  outros)  e  que,  iv)  historicamente,  se  estruturou  segundo  uma  lógica taylorista de organização do trabalho, aparentemente contraditória com a lógica  autogestionária.  

16 Uma outra fonte literária para compreender o sistema de relações sociais dominante neste território  é o conjunto de obras de José Lins do Rego, que constituem no conjunto da sua obra o designado «ciclo  da  cana‐de‐açúcar»  e  onde  se  dá  conta  das  memórias  da  vida  nas  casas  grandes  dos  engenhos  nordestinos  ‐  uma  vez  que  o  autor  é  neto  de  um  senhor  de  engenho  ‐  mas  também  do  apogeu  e  decadência dos engenhos e dos banguês e da sua substituição pelas Usinas.

Ou seja, à partida parece estarmos perante um processo global que visa uma  mudança  de  ruptura  (no  sentido  em  que  envolve  simultaneamente  diferentes  domínios da vida), num contexto em que todas as condições parecem adversas a essa  possibilidade, daí que se possa esperar que de forma mais acentuada se polarizem aí  as contradições de qualquer processo de desenvolvimento local.   Por outro lado, estamos perante um processo que, em tese, envereda por um  percurso que não só lhe é genericamente “exclusivo” no contexto da realidade social,  política e territorial em que está inscrito, como é um percurso que não pré‐existe à sua  produção, cujo sentido necessita ser construído e apropriado pelas pessoas, por entre  uma  pluralidade  de  sentidos  possíveis  para  o  devir  daquela  comunidade,  designadamente  sentidos  que  a  partir  do  exterior  se  procuram  insinuar  como  mais  legítimos,  e  onde,  claramente,  a  educação  é  chamada  a  desempenhar  não  só  esse  papel,  como  em  simultâneo  se  lhe  imputam  diversas  funções,  e  o  de  responder  a  exigências que, por causa da sua génese no seio de um processo de autogestão de uma  empresa que depende do capitalismo para sobreviver, são, por vezes, contraditórias.  Neste  sentido,  este  processo  é  particularmente  interpelador  dos  modos  como  diferentes  esferas  da  vida  social  –  a  cultural,  a  económica,  a  política,  a  educativa,  a  organizacional,  entre  outros  –  se  articulam  nas  dinâmicas  de  desenvolvimento,  aqui  muitas vezes evidentemente de forma tensional. 

Por  fim,  uma  vez  que  na  emergência  e  desenvolvimento  deste  empreendimento  estão  polarizadas  as  contradições  de  um  modelo  de  desenvolvimento  de  toda  uma  região,  as  suas  relações  com  o  exterior,  pautadas  por  diferentes  necessidades  estratégicas,  são  atravessadas  por  lógicas  substancialmente  diversas  e  heterogéneas  entre  si,  protagonizadas  não  só  pela  Usina  para  o  exterior,  mas  também  precisamente  por  essas  entidades  e  actores  sociais  e  políticos  que  contribuem ou se relacionam diversamente, segundo os seus próprios desígnios, para  e  com  o  percurso  que  ali  se  vai  tecendo,  designadamente  em  termos  educativos,  políticos,  económicos  e  organizacionais.  Neste  sentido,  este  caso  é  particularmente  significativo  para  apreciar  o  carácter  compósito  que,  em  última  instância,  caracteriza  todas  as  dinâmicas  de  desenvolvimento  local  e  que  obriga  à  mobilização  de  dispositivos  de  coordenação  da  acção,  de  ajustamento  mútuo  e  de  planeamento 

estratégico  que  a  todo  o  momento  produzem  significações  que  não  são  declináveis  dentro de uma visão linear do desenvolvimento. 

No  sentido  de  conhecer  e  analisar  de  perto  e  intensivamente  a  situação  enunciada tivemos oportunidade de acompanhar durante cerca de 6 meses – entre os  anos  de  2004  (Fevereiro  a  Abril)  e  de  2005  (Julho  a  Setembro)  –  o  quotidiano  deste  processo  e  de  alguns  dos  seus  variados  protagonistas,  bem  como  de  entrevistar  informantes privilegiados e recolher, para posterior análise, material documental que  nos  permitisse,  tanto  quanto  possível,  reconstituir  um  percurso  temporal  que  largamente ultrapassa(va) a nossa presença física no local.  

A  intensividade  do  olhar  analítico  e  o  carácter  de  analisador  natural17  que  conferimos  a  esta  situação  impelem‐nos  a  considerar  metodologicamente  que  estamos,  simultaneamente,  perante  o  que  se  constituiu  do  ponto  de  vista  da  utensilagem metodológica um estudo de caso e, do ponto de vista da sua interpelação  teórica,  um  caso  de  estudo,  eminentemente  abordado  segundo  um  paradigma  qualitativo e compreensivo da pesquisa em ciências sociais. 

O  olhar  analítico  sobre  esta  situação  procura  constituir  como  objecto  científico o processo de transformação/mudança de uma realidade comunitária sócio‐ instituída como dinâmica educativa, isto é, a sequência de momentos, de (inter)acções  e de processos de atribuição de sentido produzidos pela e na acção dos sujeitos que  numa  dinâmica  de  desconstrução‐construção‐consolidação  (Matos,  1999)  produzem  uma  realidade  nova  (uma  nova  realidade  instituída)  e  do  mesmo  passo  produzem  transformações significativas nos que protagonizam estas vivências e nas relações que  estes estabelecem com o mundo ou, para usar os termos de Georges Lerbet (1981:46  referido in Galvani, 1991), transformações no modo como na dinâmica pessoa‐meio se  estrutura e vai configurando o «sistema‐pessoa»18.   Por isto, é, também, um trabalho  17  Analisador porque consideramos que o objecto científico construído transcende a particularidade da  situação  estudada  e  a  análise  levanta  pistas  hermenêuticas  susceptíveis  de  ancorarem  processos  de  pesquisa sobre realidades semelhantes; e natural porque a situação em análise possui um conjunto de  propriedades  que  a  tornam singular  pelo modo  como  essas  propriedades  estão  condensadas  em  si,  o  que permite entendê‐la como processo ideal típico de uma dada espécie de dinâmicas sociais. 

18  Na  análise  que  realiza  às  diferentes  correntes  da  autoformação,  Pascal  Galvani  (1991)  enraíza  a  corrente bio‐epistemológica da autoformação na psicologia cognitiva e “relativista” de Georges Lerbet  (1981)  que  apresenta  um  modelo  teórico  do  desenvolvimento  do  “sistema‐pessoa”.  Esta  perspectiva  sugere  que  o  sistema‐pessoa  se  constitui  a  partir  da  dinâmica  de  interacção  entre  a  pessoa  e  o  seu 

sobre  a  mudança19,  entendida  como  processo  concomitante  de  transformação  material e/ou simbólica dos contextos em que vivemos e (inter)agimos colectivamente  e  de  transformação  de  si  (Crozier,  1982;  Enriquez,  1972)  e  sobre  a  mudança  como  processo de dupla face que supõe, muitas vezes simultaneamente, tanto a percepção  da  transformação  do  que  nos  é  exterior,  como  a  transformação  dos  nossos  mecanismos  de  percepção  e  de  entendimento  e  atribuição  de  sentido  que  tornam  diferente  (mudado)  o  objecto  sobre  que  se  detêm.  Diríamos  que  esta  é  a  já  referida  pista empírica deste trabalho.  

No  que  respeita  à  sua  pista  teórica,  o  objecto  científico  deste  trabalho  é  a  própria teorização e problematização dos processos e dinâmicas de desenvolvimento  local de que partimos e que interrogamos precisamente a partir do seu confronto com  este processo que procurámos conhecer intensivamente. Ou seja, a análise deste caso  particular – no que antes designámos como tomá‐lo como caso de estudo – permite‐ nos  ilustrar,  matizar  ou  acentuar  os  limites  dos  próprios  modos  como  conceptualizamos as dinâmicas de desenvolvimento local e comunitário, o que faz da  nossa  reflexão  teórica  o  objecto  sobre  o  qual  produzimos  conhecimento:  um  conhecimento  sobre  o  nosso  conhecimento  sobre  as  dinâmicas  de  desenvolvimento  local, seria assim uma finalidade desejada deste trabalho. 

Finalmente,  este  trabalho  é  também  um  exercício  e  uma  reflexão  sobre  o  próprio  trabalho  de  pesquisa  e  de  produção  de  conhecimento  no  domínio  da  intervenção no e para o desenvolvimento local e comunitário e sobre os desafios que  do  ponto  de  vista  epistemológico,  teórico  e  metodológico  coloca  a  produção  de  um 

contexto. No decurso das suas trocas com o meio, a pessoa “«produz» uma organização que «retém» do 

meio (...). É esta produção que constitui o seu mundo próprio” ou, dito de outro modo, o seu «Meio»  (Lerbet,  1981,  p.22).  Ainda  de  acordo  com  Galvani  (1991),  Gaston  Pineau  propõe  igualmente  uma  definição espacial e interactiva da pessoa como “sistema de relações” (Pineau, 1985: 36). Para Georges  Lerbet a pessoa também é um “ «lugar» de trocas (...) ela constrói‐se na e pela relação com o outro. Mas  esta relação é interiorizada ao ponto que ele confere ao meio um estatuto da ordem do sujeito” (Lerbet,  1981:16).

19 Talvez a forma mais sintética de esclarecer de que falamos quando falamos de mudança seja optar  pela  caracterização  que  dela  faz  Silva  (2000:9).  Para  o  autor,  em  termos  sociológicos  falamos  de  mudança para nos referirmos a processos sociais que, separada ou articuladamente, envolvem diversas  dimensões:  i)  “a  natureza  dinâmica  (não  estática)  dos  referidos  processos;  ii)  a  dimensão  diacrónica  (evolução segundo o eixo do tempo, entrelaçamento de tempos); iii) a ocorrência ou a possibilidade de  ocorrência de transformações de maior ou menor amplitude, nas estruturas e nas práticas sociais; iv) a  acção intencional de actores, animados por projectos e programas de alteração deliberada de certos ou  todos os aspectos das estruturas e práticas sociais”

olhar sistemático de índole analítica visando produzir um saber sobre as comunidades  locais e, designadamente, sobre as dinâmicas de acção e de intervenção que visam o  seu  desenvolvimento,  nomeadamente  quanto  ao  seu  estatuto  e  ao  seu  modo  de  produção (isto é, com que desafios somos confrontados quando procuramos construir  um saber sobre a intervenção e sobre o saber da intervenção).  

Como  em  qualquer  trabalho  científico,  partimos  para  a  realização  desta  pesquisa  com  pré‐conceitos  que,  no  seu  decurso,  intentámos  suspender  ou,  em  alternativa,  questionar  no  embate  com  a  realidade  apreendida  –  apreendida  ela  própria  em  função  de  um  recorte  arbitrário  realizado  a  partir  da  tentativa  da  sua  compreensão teórica com e contra aqueles pré‐conceitos – e com o aprofundamento  teórico,  mas  também  partimos  com  um  arcaboiço  teórico  e  experiencial  que,  inevitavelmente, nos forneceu de antemão um quadro de problematização – isto é, um  conjunto articulado de modos teóricos de interrogar a realidade e os conceitos usados  para a traduzir – que nos impeliu, inicialmente até de forma inconsciente, a produzir  possibilidades  de  interpretação  provisórias  e  antecipatórias  de  compreensão  das  questões que elegemos analisar. Aliás, como sustenta Ferreira de Almeida (in Almeida;  Machado et al., 1994:194) “um processo que se estabelece no início com a formulação 

de  uma  pergunta  não  pode  aparecer  senão  no  quadro  de  um  conjunto  anterior  de  teorias  e  concepções  sobre  o  mundo”.  A  investigação  dita  positivista  e  experimental 

apelida  estas  interpretações  antecipatórias,  se  apresentadas  sob  uma  forma  questionadora,  de  hipóteses,  que  no  seu  conjunto  e  articulação  permitem  à  investigação configurar o problema em estudo e erigir as suas teses, ou seja, delimitar  o  objecto  de  pesquisa  e  as  suas  dimensões  a  reter  e  estabelecer  uma  ou  várias  “proposições para defender em caso de impugnação” (Dicionário Houaiss, p.3506).  

Na  pesquisa  em  ciências  sociais,  pelo  menos  a  inscrita  num  quadro  epistemológico  compreensivo  ou  interpretativo  e  de  carácter  qualitativo,  a(s)  tese(s)  aproximam‐se  mais  do  sentido  que  lhe  atribuiu  Hegel,  ou  seja,  enquanto  primeiro  estádio  de  um  processo  dialéctico  de  análise  da  realidade,  sujeita(s)  portanto  à  antítese negativa e a uma superação através de uma síntese que é expressão lógica da  transformação  contraditória  a  que  toda  a  realidade,  nomeadamente  a  material,  está  sujeita.  Esta  síntese  representa  o  novo  conhecimento  produzido  pela  pesquisa  e  a 

nova  tese  a  sucessivamente  ser  contraditada  por  outras  novas  antíteses.  Sem  pretensões a uma extrema fidelidade filosófica para com Hegel, este é o carácter que  pretendemos  atribuir  a  algumas  asserções  que  organizam  o  nosso  olhar  sobre  a  realidade. 

No sentido anunciado, uma das teses subjacente a este trabalho, e que não é  necessariamente original (cf. Pain, 1991; Melo, 1994; Canário, 1999; Cavaco, 2002), é a  de  que  toda  a  acção  social  exercida  num  dado  contexto  relacional  e  espacial  é 

potencialmente  uma  acção  educativa.  O  esforço  analítico  de  caracterização  e 

problematização  das  formas  que  a  educação  assume  neste  processo  supõe  portanto  admitir o pressuposto de que a educação presente nos processos de desenvolvimento  comunitário  só  é  reconhecível  se  transcendermos  as  categorias  de  apreensão  do  objecto  educativo  que  herdámos  historicamente  da  vinculação  da  educação  à  forma  escolar, particularmente no que respeita aos tempos e espaços em que decorre e aos  modos como se desenvolve (Nóvoa, 1988). Como reconhece Rui Canário (1999), este  alargamento  do  cânone  educativo  deve  bastante  aos  contributos  das  práticas  no  domínio da educação dos sujeitos adultos e da reflexão sobre aquelas, nomeadamente  através  do  aprofundamento  de  noções  como  «Educação  Permanente»,  que  vem  romper  com  a  delimitação  cronológica  da  acção  educativa  ao  tempo  da  infância  e  juventude  para  a  fazer  alastrar  à  globalidade  do  ciclo  vital  dos  sujeitos,  bem  como  contribuir para a compreensão da acção que constitui o processo educativo como um  contínuo  de  níveis  de  formalização  que,  situando‐se  entre  a  informalidade  e  a  estruturação mais estrita, nem por isso deixa de igualmente constituir formas legítimas  de  acção  educativa,  se  avaliada  pelos  efeitos  que  produz  nos  sujeitos,  alargando‐se  assim, quer o leque dos contextos que podem entender‐se como educativos, quer as  modalidades  de  estruturação  destes  que  potencialmente  são  educativas,  e  ainda  realçando  como  o  processo  educativo  acontece  na  confluência  de  diferentes