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A escrita autobiográfica sempre foi praticada pelos povos em várias épocas. Os gregos, em uma prática de “cuidado de si”, dedicavam-se com constância ao exercício da introspecção e à escrita de sensações, sentimentos e lembranças. Anotar reflexões sobre si mesmo que seriam lidas em seguida, escrever tratados e cartas aos amigos para ajudá-los, ter uma caderninho de notas com “pensamentos” que seriam relidos, eram alguns dos instrumentos fundamentais do “cuidado de si mesmo”. O preceito de “cuidar de si mesmo” era um princípio básico da vida na cidade, uma das regras fundamentais da conduta social e pessoal e da arte de viver (FOUCAULT, 2000). “Cuidar de si” e “conhece a ti mesmo” (gnòthi seautòn) estavam relacionados, onde o cuidado de si vinha primeiro como modo de autoconhecimento e descoberta da própria sabedoria, da verdade e da perfeição da alma. Esta era uma tarefa a ser realizada durante toda a vida, quando jovem e também na velhice. O ato de escrever permite certo prazer em razão do benefício fisiológico e terapêutico da verbalização. L’epiméleia1 heautoù se constituía quase como premissa irrenunciável da vida

adulta e anciã, que encontra na solidão e na reflexão um espaço funcional ao bem-estar da segunda metade da vida e à preparação ao momento da morte. O cuidar de si mesmo era

indissociável do conhecimento de si e foi intuída já na antiguidade grega como pré-requisito à realização e à constituição do sujeito.

No mundo grego o gênero autobiográfico ainda não existia, no entanto, no século V e IV a.C. já estava presente uma transcrição das histórias humanas nos diálogos platônicos ou nos tipos psicológicos de Aristóteles e de Teofrasto. Fedone é o diálogo platônico que representa o primeiro texto de cura, e de convite à cura, através do narrar filosófico e de caráter de amizade. Sócrates sabe que deve morrer e nos dias de espera, na prisão, é circundado das palavras dos amigos, em diálogo, em uma dialética que interroga e se interroga (DEMETRIO, 1999). As palavras são cura para Sócrates, através de um eu narrador, juntamente com a poesia, a música, praticada nos últimos dias de vida tornam-se vias para a formação, mesmo diante da morte.

Os romanos levaram esta prática a uma nova conotação ampliando a reflexão sobre si mesmo, em uma dimensão quase autobiográfica. Assim eram os escritos de Marco Aurélio, Júlio César, De Bello Gallico, De Bello Civili, Tibério, Seneca, Josefo Flávio, Cicerone, Orazio e Galeno; alguns outros imperadores, santos, literários ilustres, que se imortalizaram através das próprias memórias, diários e narrações da própria vida. A partir do século IV, a contemplação, própria da vida monástica cristã, passou a ser vista como bem supremo e como dever do monge na sua busca por Deus. Santo Agostinho, em suas Confissões, impulsionado por um momento de crise espiritual, realiza um caminho de autoconhecimento e escrita de si, que, segundo um estilo híbrido entre laudes, recordações, reflexões, confissões de pecados e de fé, inaugura uma nova fase da narração de si, da vida interior, e de discussão da própria identidade. Segundo Moorhman, apud Andres (1996), a obra de Agostinho é “uma longa carta a Deus”, uma carta que tem a forma de uma meditação ou uma preghiera meditativa2, uma prece a partir de fatos da vida do autor. A busca pela elevação de si mesmo a Deus está no centro das Confissões, exemplo de narrativa espiritual e de conversão cristã, comuns na Europa da Idade Média. As Confissões de Agostinho sugeriam não só um método de auto-análise e de meditação, mas um modo de reencontrar o Mestre interior, sendo considerado como precursor da idéia moderna de consciência (FORMENTI, 1998). Conforme sublinha Demetrio (1999), as escrituras de Platão e Agostinho são, portanto, os eventos na cultura ocidental e mediterrânea que dão origem à história da interioridade, e também a dois modelos de cura, uma dialógica e outra monológica.

Montaigne, Pascal, Rousseau, Comenius e Descartes são exemplos do estilo literário que se valendo de diários, memórias, confissões, meditações, buscavam entrar em contato com a interioridade, em maior ou menor profundidade, criando uma representação reflexiva do Ser.

Após Agostinho, a prática de escrever sobre si mesmo, em diversos formatos, (memórias, diários, cartas) constituiu por vários séculos um método de meditação filosófica e introspectiva amplamente apreciada. É no seio dos movimentos de espiritualidade, dentro ou fora das igrejas instituídas que se forma a narrativa biográfica moderna. Seja no catolicismo, no molinismo espanhol e no quietismo francês, no pietismo alemão, o metodismo anglo-saxão ou no protestantismo, as escritas de si são praticadas como instrumentos do exercício e do controle da fé, além de ser via de elevação espiritual (GUSDORF, apud DELORY- MOBERGER, 2008). Posteriormente, em um movimento de secularização das práticas autobiográficas e narrativas, aparece um novo paradigma em que as narrativas adquiriram uma dimensão de introspecção psicológica. Diversos filósofos e pedagogos, como Rousseau, Goethe, Montaigne e Pascal, comunicaram uma imagem de si e da evolução sobre suas concepções sobre a educação, além da descrição e a explicação das vicissitudes humana e intelectual. A autobiografia constituiu também uma modalidade literária para propor um modo de educar, através de um percurso exemplar, como foi O Emílio de Rousseau e Leonardo e Gertrude de Pestalozzi. Portanto, as práticas biográficas de hoje são, em parte, uma herança da Europa iluminista e da “narrativa de formação” ou “romance de formação”, que se desenvolveu em torno da noção de Bildung3. Dois gêneros se distinguem nesse período: a autobiografia, onde um narrador-autor faz uma retrospectiva em primeira pessoa da própria vida; e o romance de formação, escrito em primeira ou terceira pessoa como narrativa retrospectiva da vida de um personagem de ficção. Desde então, a autobiografia torna-se um gênero literário aberto a todas as pessoas que assim queiram recolher suas memórias em um texto, independente de ser um rei, um santo, um governante, um político, um pedagogo, ou um escritor ilustre.

O termo autobiográfico, no entanto, foi inventado no final do século XVII quando os três elementos auto-bio-grafo, que no grego significam ser, vida e escrever foram colocados juntos para designar um gênero que abrangia as confissões, os diários e as memórias. Bollas (apud SEGANTI & POLICANTE, 2008) recorda que o primeiro escrito

3 Bildung é um modelo de formação humana que se desenvolveu a partir da modernidade na Alemanha, que “chama com força ao centro do debate pedagógico os problemas da formação humana através da relação pessoal com a cultura e mantida por dois séculos até a atualidade” (CAMBI & FRAUENFELDER, 1998, p. 25).

verdadeiro deste gênero literário foi The Autobiography of a Dissenting Minister de W. P. Scargill, publicado em 1834. Mais tarde é Freud quem dá à autobiografia um novo lugar com o enfrentamento do problema da análise de si mesmo com extremo rigor. A sua auto-análise, as cartas ao amigo Wilhelm Fliess, no período de 1887 a 1894, entre os 31 e 38 anos, levou a aventura autobiográfica aos seus limites extremos, dando mais profundidade à linguagem da autobiografia através da análise rigorosa dos sonhos e da associação livre; os instintos sexuais, os impulsos homicidas e as preocupações egoístas que se apresentavam foram integrados à narração autobiográfica de Freud, o qual fundou um novo modo de falar de si.

Na atualidade, um clássico do gênero autobiográfico e espiritualidade é o texto de Paramahansa Yogananda (2001), Autobiografia de um Iogue. Publicado pela primeira vez em 1945, este livro sobre iogues, escrito por um iogue, narra a história de uma vida, escrita em primeira pessoa, tornou-se uma obra-prima. A criação da Atuobiografia de um Iogue foi um projeto no qual Paramahansa Yogananda trabalhou por um período de vários anos, principalmente entre 1937 e 1945. Este texto é também o relato de uma testemunha ocular das extraordinárias vidas e poderes dos santos hindus modernos escritos a partir de preciosas lembranças e sagradas experiências que eram revividas interiormente no processo de escrita, conforme depoimento do próprio Yogananda.