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Nos últimos vinte e cinco anos o método biográfico diversificou-se do ponto de vista epistemológico e metodológico ao ponto de podermos falar de uma didática autobiográfica. Como desenvolver percursos formativos utilizando-se de estratégias e instrumentos que favoreçam a transformação da experiência em formação? Como propor modos concretos de exercitar a subjetividade gerando aprendizagem e mudanças, constituindo um espaço de autoformação? A reflexão metodológica, apesar das inúmeras possibilidades criadas, ainda necessita aprofundar-se, no sentido de, juntamente com uma discussão epistemológica, prosseguir na construção deste paradigma. Os diversos modelos culturais construíram suas propostas metodológicas formativas com especial atenção ao contexto e às finalidades da pesquisa ou da intervenção formativa. Três elementos têm sido considerados como condições básicas que garantem a passagem da experiência à formação: o reconhecimento autobiográfico e a escuta de si, a atividade interpretativa ou de co-construção, e a fase de reflexão formativa ou a escritura da sua narração (FORMENTI, 2002). Ademais, cada proposta formativa é única e se constitui atenta à sua intencionalidade formativa e possibilidades do contexto. “O dispositivo cenário parte da idéia de que a compreensão de seu

processo de formação implica um processo de conhecimento ao longo do qual os participantes construirão seu relato a partir de uma série de etapas, alternando trabalho individual e de grupo” (JOSSO, 2008, p.28). A função do grupo está relacionada às dimensões hermenêuticas, emancipadoras da autobiografia, “exercitando uma meta-prospectiva sobre tais dimensões: níveis de sentido, níveis de autonomia, níveis de experiência, níveis de coligação possíveis inter-, intra- e trans-individual” (FORMENTI, 1998, p. 167).

Em geral, um processo formativo autobiográfico (ateliê, laboratório, etc.) se inicia com um trabalho sobre a memória, um encontro com a própria capacidade de biografização. Os primeiros encontros são dedicados à organização, negociação, sensibilização do grupo, para em seguida iniciar o processo de evocação e reconhecimento autobiográfico, segundo modalidades e instrumentos diversos, os quais fazem uso de linguagens introspectivas ou retrospectivas. A riqueza do processo realizado depende da pluralidade de tarefas e de consignas apresentadas, seja durante os encontros coletivos ou no trabalho individual. É requerido aos participantes iniciar um percurso mnemônico e introspectivo, de explorar o passado e narrá-lo de forma mais ou menos aprofundada. Para Formenti (1998), a fase de reconhecimento é um momento de escuta no qual vem revitalizada e re-exercitada a capacidade e a disponibilidade a reconhecer-se e reconhecer partes de si talvez esquecidas. Este é uma fase que se realiza segundo regras que estruturam a tarefa e criam vínculos.

Algumas dimensões a serem escolhidas em um percurso formativo autobiográfico são: a escolha do contexto relacional que se quer estabelecer com os sujeitos da formação; a escolha de como articular o trabalho individual (introspectivo e mnemônico) e a interação coletiva; a escolha do instrumento através do qual acontecerá a narração; a escolha de regras e normas; a escolha entre as duas dimensões de intervenção/escuta e implicação/distância. A priori, não existe uma observação neutra e natural. A posição do facilitador é implicada, se atribui grande valor a uma relação intensa de acolhimento, livre, entre sujeitos adultos curiosos e reciprocamente interessados, principalmente nos modelos “latinos” de autobiografia. A escuta é recíproca e autorreferenciada; quem escuta é alguém que reconhece, age e utiliza construtivamente o próprio ser implicado no processo de pesquisa e formação.

O processo mnemônico e de reconhecimento de si pode acontecer através de vários instrumentos ou meios, fortemente subjetivos ou mais padronizados e objetivos. Os instrumentos variam desde os mais clássicos individuais (produção de texto temático, diário pessoal, testemunhos materiais – fotos, imagens, filmes –, perfis cronográficos, questionários, narração oral; instrumentos face a face (duplas ou trios) como entrevistas abertas, entrevistas em profundidade, métodos projetivos, método crítico-clínico; e instrumentos de trabalho

coletivo como jogos de interações, técnicas de grupo, auto-apresentação do sujeito ao grupo oral ou escrita, discussão sobre temas biográficos etc. (FORMENTI, 1998). No entanto, para além dos instrumentos, o que institui a atividade autobiográfica é o “pacto educativo” que implica negociação em torno das necessidades formativas, a configuração dos objetivos, a gestão atenta do contexto interpessoal e a avaliação compartilhada.

A oralidade e a escritura são instrumentos privilegiados, no entanto não exaurem a gama de possibilidades à disposição. O narrar e o recontar-se são particularmente estimulados pelo confronto com outras linguagens, da disponibilidade para ir além das palavras e da racionalização, experimentando códigos menos evidentes (corpóreos, sensoriais, subliminares etc.), os quais são ativos na construção do sujeito, das suas relações e dos seus contextos. O pensamento também é imagem, ação, imobilidade, silêncio e suspensão. Esta via tem se constituído um terreno de exploração dos mais fascinantes no campo da metodologia autobiográfica, a descoberta de modos de expressão e construção de si comumente esquecidos: a dança, a expressão pictórica ou a escultura, o ritual, o uso criativo do espaço e do tempo (FORMENTI, 2002; 2008; GAMELLI, 2006), a fotografia (DELORY- MOMBERGER, 2006), a presença atenta (RUGIRA, 2008), o relaxamento e a meditação (DEMETRIO, 2005, JOSSO, 2004).

O grupo de pesquisa Dialogicidade, Formação Humana e Narrativas do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, do qual faço parte, vem se dedicando ao estudo do método (auto)biográfico reinventando essa abordagem, inclusive, combinando-a com outras metodologias. As nove pesquisas em andamento, sob orientação da Coordenadora do grupo, a Professora Ercília Maria Braga de Olinda, buscam identificar e compreender os significados das experiências vividas por sujeitos jovens e adultos em diferentes espaços sociais e culturais.

Interessam-nos os processos de (auto)formação e constituição de identidades para a edificação de sujeitos autônomos e solidários (OLINDA, 2006), que têm consciência de seu processo de formação. Tentamos elaborar uma visão de totalidade das experiências com suas múltiplas implicações, apoiados nas narrativas orais e/ou escritas de quem efetivamente viveu/vive essas experiências (OLINDA, 2008, p. 248).

Autobiografia, interioridade e meditação estão conectadas desde os seus primórdios, seja em uma prática de introspecção laica, cristã ou mística. Meditação no Ocidente tanto pode significar o uso da razão, teorética, concentração intensa do espírito para

o conhecimento da verdade, quanto uma via de ascese, mística, de oração mental, de comunhão com o Divino. A escrita de si é vista como um meditar sobre si, no sentido de reflexão consciente sobre as vicissitudes da própria vida, “um diálogo silencioso que a mente mantém tra sé e sé, praticando aquele pensamento introspectivo que objetiva o conhecimento da própria forma de vida” (MORTARI, 2002, p. 111).