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A nossa maior identidade é que somos parte de uma Divindade. Sri Sri Ravi Shankar. Aqueles eram dias incomuns no Ashram de Bangalore. Milhares de pessoas circulavam diariamente tornando as ruas, o anfiteatro e o templo pontos de convergência de visitantes ou hóspedes. Muitos indianos e pessoas de várias nacionalidades trabalhavam como voluntários ou participavam das atividades disponíveis. Estavam sendo oferecidos, simultaneamente, o Curso Parte 1, o Curso Parte 2 Internacional, o Curso Art Excel (para

crianças), o Curso Yes Plus (para jovens), os Cursos para Instrutores de Crianças e Jovens, o Curso para Instrutores de Adultos, o Curso de Meditação Sahaj Samadhi, além de um Seminário Internacional sobre Educação e Valores Humanos. Preparava-se também o grande evento: o Jubileu de Prata da Arte de Viver. Construções ainda estavam sendo terminadas, estradas sendo renovadas e asfaltadas, em uma atividade frenética, uma corrida contra o tempo. Só então comecei a perceber a dimensão do evento que estava sendo preparado. Falava-se que já havia doze mil pessoas hospedadas no Ashram e todos os hotéis da cidade estavam lotados. Jamais havia participado de um evento tão grande, mas na verdade eu estava longe de conceber o que seria a festa do Jubileu.

Eu estava inscrita no Curso Parte 2 e aguardava o seu início, o que seria em dois dias depois da nossa chegada. Assim, o cotidiano naqueles dias era bastante comum: comer, passear, dormir, meditar. Era como um período de férias em que não há nada de urgente para fazer, nenhum problema para resolver ou assunto para tratar, apenas gastar o tempo no meu próprio ritmo. Participava dos ensaios do grupo brasileiro que deveria apresentar um número de canto e dança na festa do Jubileu, explorava o Ashram, participava dos Satsangs que eram realizados às dezenove horas, todos os dias. Um dos meus locais preferidos nestes primeiros dias era o Divine Shop, uma pequena loja que oferecia produtos diversos, como livros, cd’s, camisetas, roupas indianas, pashiminas, artigos naturais para pele e corpo, remédios de medicina ayurveda, incensos, fotos de Sri Sri Ravi Shankar e inúmeros outros pequenos objetos destinados àqueles que desejavam levar uma pequena lembrança. Comprei livros, cd’s de música, meditação e algumas peças de roupas típicas. Já no terceiro dia o Divine Shop estava lotado em todos os momentos do dia, o que tornava difícil qualquer tentativa de entrar ali.

O momento das refeições era muito interessante. Após um dia de superlotação e filas imensas, mudaram a logística de distribuição das refeições, criando várias ilhas, as quais foram classificadas em “no spyce” (sem pimenta) e “spyce” (com pimenta). E para a minha surpresa, os alimentos que não continham pimenta eram bastante apimentados para o meu paladar e para o de muitas outras pessoas. Assim, mesmo servindo doze mil refeições por dia, ir ao restaurante era muito tranquilo e a espera suportável. Era um momento para conviver com os brasileiros e conhecer novas pessoas. Geralmente seguíamos em pequenos grupos e com nossas bandejas sentávamos no chão, na área sem mesas ou cadeiras, e comíamos à moda indiana, com a mão direita. Foi uma experiência muito interessante e divertida, me trouxe lembranças da infância quando comíamos, eu e meus irmãos, com as mãos, brincando com o alimento e arrumando-os em forma de “capitão”, um pequeno bolinho de forma alongada. No

entanto, agora adulta, foi bem diferente, manipular o alimento com as mãos trazia uma sensação de maior energia vibratória nas mãos, e o alimento parecia mais saboroso. A alimentação oferecida era estritamente vegetariana, e para mim foi bastante fácil adaptar-me, apesar de, naquela época, ainda não ser adepta do vegetarianismo.

Para o hindu os hábitos alimentares estão relacionados a um código social e à religião. A religião indiana não tem dogmas. Não há nem mesmo proibições para comer carne. O fato de a grande maioria dos hindus não comerem carne não nasce de nenhuma proibição ou imposição por regra vinda de fora, ou algo higienista, mas vem da natural tendência que têm os seres humanos em não matar nenhuma criatura.Não se encontra a carne bovina em restaurantes ou no cardápio das famílias, visto que a vaca é considerada um animal sagrado por simbolizar a mãe, aquela que nos traz o alimento materno, o leite e seus derivados. De fato, há uma consciência ecológica nata nas pessoas da Índia, porque elas notam que há muito mais desvantagens em alimentar-se de carnes do que de vegetais, grãos e cereais, frutas e laticínios. A vaca e o gado vacum produzem muito mais estando vivos do que mortos. Alguns restaurantes non vegan oferecem outras carnes como carneiro, o cordeiro, peixes e frango. No entanto, aqueles que ingerem carne de porco aos domingos são aqueles pertencentes à casta dalit, a mais baixa de todas, os quais são considerados párias ou “intocáveis”. Apesar de o arroz ser a cultura principal da Índia, há o uso de muitos alimentos. A grande maioria do povo é vegetariana, mas nem todos praticam este tipo de dieta, uma vez que o princípio fundamental da filosofia védica diz que tudo deve ser realizado conforme tempo, lugar e circunstâncias, e sem violência ou ahimsa.

A culinária indiana é a terceira mais popular do mundo, é rica, cremosa e possui uma deliciosa mistura de especiarias, que impregna o ar e o paladar. O emprego correto de especiarias é de muita importância na culinária indiana. Elas dão à comida o sabor, o aroma, propriedades terapêuticas e fazem com que a comida fique de fácil digestão. As especiarias são consideradas tônicas para o corpo, mente e espírito. Na Índia, “somos aquilo que comemos” não é apenas um ditado, mas uma prática diária. Tudo o que ingerimos vai influenciar nosso corpo físico, mental e espiritual. A comida indiana é baseada nos princípios da medicina ayurvédica, de prevenção da doença através da nossa alimentação. A culinária indiana é sábia, saborosa, rica, colorida e variada, incluindo muitos estilos regionais, pois sendo a Índia um país imenso (com mais de cento e sessenta milhões de quilômetros quadrados) e com uma variedade muito grande de raças e religiões, os pratos diferem-se muito de um estado para outro. Fortemente influenciada por aspectos geográficos, diversidades culturais, e pelos preceitos religiosos, a gastronomia indiana tem características

bastante singulares. Para os indianos cozinhar é uma arte, além de ser um ato sagrado: a forma cerimoniosa no preparo, o respeito para com o alimento, as cores, os aromas, tudo isso compõe um estilo especial, diversificado e inconfundível. Assim, os cozinheiros indianos são verdadeiros artistas e artistas reverenciados, lembrando que, para os hindus, o alimento irá nutrir principalmente o espírito e, dessa forma, o cozinheiro é um verdadeiro Guru, Monge ou Iluminado – um Guru Rasoiya (cozinheiro).

Cada refeição para mim era um momento de descobertas, em que eu procurava descobrir o nome de cada prato, como e com quais ingredientes era preparado. Pude conhecer e apreciar pratos de vegetais com curry, verduras com molhos de iogurte, o ghee ou manteiga clarificada, o lassi (bebida preparada com iogurte e água de rosas), chapati (pão indiano), masalas, dals (lentilhas), halawa (doce tradicional), coalhadas, iogurte com pepinos, arroz branco ou com lentilhas, ou, ainda, arroz com ervilhas e condimentos, e tantos outros pratos não identificados. Mas nem todas as pessoas do grupo de brasileiros adaptaram-se à alimentação oferecida no Ashram. Algumas pessoas não suportaram os temperos e a pimenta presente nos alimentos e não fizeram uma só refeição durante os dez dias que ali estivemos. Preferiam biscoitos, nozes, castanhas e salgadinhos trazidos do Brasil, além de pizza quando saíam para compras.

Conversando com as pessoas que compunham o grupo brasileiro descobri que nem todos estavam contentes com as condições que estavam vivendo. Muitos reclamavam dos quartos que estavam com mais pessoas do que foi comunicado antes nos contatos feitos pelos organizadores da viagem; reclamavam da poeira que estava no ar e nos corredores; reclamavam da comida que era vegetariana e muito condimentada; reclamavam da coordenadora da viagem porque achavam que esta não estava apoiando o grupo como deveria; e muitas outras pequenas reclamações. O grupo brasileiro era de classe média, na sua maioria, profissionais liberais de nível superior, como advogados, engenheiros, administradores, psicólogas, arquitetas, uma juíza e uma nutricionista. Portanto, era um grupo habituado ao conforto, bons restaurantes e a empregados que lhes serviam o que, por um lado, justificava a dificuldade de adaptação ao ambiente do Ashram. Eu, ao contrário, estava aceitando os pequenos contratempos da viagem com muita tranquilidade e sem reclamações. Por tudo que eu havia lido e ouvido falar sobre a pobreza na Índia, as acomodações que nos foram oferecidas me pareciam de um grande conforto. Realmente, visitando outras áreas do Ashram pude ver outros alojamentos destinados a grupos maiores onde se estava menos confortável que nós brasileiros. Toda aquela reclamação para mim era pura perda de tempo e de energia, já que tínhamos tantas coisas bonitas e novas para serem apreciadas e vividas.

A comunicação com pessoas de outras nacionalidades para mim era um problema. A língua oficial era o inglês, e apesar de haver estudado no passado, me vi incapaz de compreender a fala dos indianos e demais pessoas que utilizavam esta língua. Assim, era um limite que se apresentava nas minhas incursões diárias. Mas logo percebi que a melhor comunicação era aquela que todos utilizavam no ashram: pronunciar Jai Guru Dev, juntando as palmas das mãos estendidas na altura do rosto e inclinando a cabeça para frente. Saudar as pessoas com este gesto se mostrou para mim mais que uma saudação. Na Índia quase tudo é sagrado e o homem indiano manifesta o seu respeito pelo sagrado com o gesto añjali. O gesto de juntar as mãos à altura do rosto, mas que em origem consistia em manter as mãos juntas na frente de si, com as palmas voltadas para o alto, em forma de taça: o gesto através do qual se derrama a água ao amanhecer olhando para o sol, com o qual se recebe uma doação, mas também com o qual se oferece o gesto que ainda hoje, simplificado, substitui todos os tipos de saudações (PIANO, 1996). Compreendi e vivi o real significado de Jai Guru Dev: que vença a grande mente. Essas poucas palavras em sânscrito são a saudação oficial da Arte de Viver e encerra um grande significado. Sobre este mantra, Sri Sri Ravi Shankar diz que:

Existe uma grande mente e uma pequena mente. Às vezes a grande mente vence a pequena mente e ás vezes é ao contrário. Quando a pequena mente vence é o sofrimento; quando a grande mente vence é a felicidade. A pequena mente promete felicidade e deixa você de mãos vazias. A grande mente pode trazer uma resistência no início, mas mais tarde encherá você de felicidade. Jai significa vitória. Guru significa grande. Dev significa o Divino que é amante da diversão, brincalhão, leve. Jai Guru Dev significa vitória da grandeza que há em você, vitória da Grande Mente em você que é séria e brincalhona. Normalmente, alguém que é brincalhão não é sério e alguém que é sério não é brincalhão. Mas o Divino em você – a Grande Mente – são os dois ao mesmo tempo. Jai Guru Dev não precisa ser pensado como vitória para o Mestre. Ao contrário, é vitória para você mesmo, sua própria Grande Mente sobre as lamúrias da pequena mente. (SRI SRI RAVI SHANKAR, 2003, p. 33).

Com uma linguagem simples e clara Sri Sri Ravi Shankar introduz a concepção básica do hinduísmo contida nos Vedas, que é a natureza essencial de si mesmo. Geralmente nós nos identificamos com o nosso corpo, com os sentidos, com o intelecto, com a mente. Segundo os Vedas, estas dimensões humanas são aparentes (mithya), pois nós somos em essência Seres divinos, Atman, o Ser real, expressão da realidade última Brahman. Atman é satyam, o que é sempre existente. Assim, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana. Somos seres ilimitados, cuja natureza é existência, consciência e felicidade (satcitanandasvarupah) (SRI SANKARACARYA, 2007).

A cada passo, cumprir este ato me levou a compreender profundamente que somos feitos das mesmas substâncias materiais e imateriais, o quanto as nossas diferenças são insignificantes frente à grandeza da nossa verdadeira natureza e da humanidade como comunidade de destino. Tomei consciência que saudar o outro com o coração, vendo no outro parte de você mesmo e de algo maior, pode levar-nos a construir relações mais autênticas e amorosas. Quem me mostrou isso, especialmente, foi um rapaz indiano que era o vigia do nosso bloco de alojamento. Todos os dias ele ali estava, no seu posto, com um grande sorriso que irradiava todo o seu rosto. Era um rapaz franzino, de cor escura e uma cabeleira curta, mas volumosa que lhe caía, às vezes, sobre os olhos. Vestia sempre uma calça comprida escura e uma blusa branca com os botões fechados até o pescoço, era o seu uniforme de trabalho. Cada vez que as pessoas passavam, ele juntava as mãos na altura do peito e dizia Jai Guru Dev, com um grande sorriso. Não me recordo quantas vezes nos saudamos assim. Todas as vezes era diferente, mas de uma alegria e comunicação verdadeiras. Não era um ato mecânico, mas do fundo do coração. Com ele comecei a entender a alma do indiano.

Indianos e indianas compunham o meu campo de observação preferido, depois dos recantos escondidos do ashram. As mulheres me encantavam pela sua beleza, pela delicadeza dos gestos, pela maciez da pele e o brilho dos cabelos. Acredito que as mulheres indianas são as mais belas do mundo em sua expressão doce, um rosto que não acumula ou mostra os efeitos do estresse e da tensão cotidiana. Haverá um segredo para tal fato? As vestimentas indianas são belíssimas, um conjunto harmônico de cores, estampas multicoloridas sedosas sejam em sári (o sári é um longo tecido com seis metros de comprimento por um metro e meio de largura, sem botões, zíper, colchete ou velcro, que se usa enrolado no corpo e uma das pontas sobre os ombros) ou túnicas (kurta) que cobrem todo o corpo. As mulheres indianas nunca mostram os ombros, pernas e tornozelos em público, estão sempre cobertas. Os homens em geral vestem um conjunto de calças largas no quadril e afunilada nas pernas, e o punjabi, uma espécie de túnica (kurta) longa, que chega até os joelhos, ou, ainda, calças e blusas à moda inglesa. A echarpe é um complemento obrigatório para as mulheres, enquanto o angavastram (pedaço de tecido não pespontado medindo, aproximadamente, um metro e meio) é usado drapeado sobre os ombros pelos homens, quando vestidos de forma tradicional. Os homens também são muito bonitos e de um olhar expressivo que nos cativa. Um olhar franco, aberto e brilhante combinado com um sorriso amistoso e sincero, que está sempre presente no rosto do indiano ou da indiana. Este é um povo muito alegre e feliz, para o qual a dança e as manifestações de alegria são naturais. Durante um satsang os indianos são o grupo mais animado que contagia o ambiente. Braços

para o alto, pequenos saltos, movimentos de cabeça para um lado e para o outro, movimentos sincronizados de braços e pernas, e sorrisos, sorrisos, sorrisos. É realmente um povo esfuziante na celebração. Mesmo durante o trabalho, servindo os comensais no restaurante, na limpeza do templo, na organização dos eventos ou outras tarefas diárias, os indianos estavam sempre felizes. Maior felicidade ainda se vê entre aqueles que acompanham Sri Sri Ravi Shankar, um pequeno séquito que cuida do dia-a-dia e tenta controlar o acesso das pessoas ao Mestre, o que muitas vezes é uma tarefa impossível. Os pequenos contratempos são driblados com aceitação e alegria. Para eles a organização é algo que é essencialmente desorganizado, ao final tudo se encaixa em seu devido lugar. Presenciei também momentos de grande eficiência e competência durante estes dias, afinal, coordenar uma festa para três milhões de pessoas, como foi o Jubileu, é uma tarefa monumental.

As minhas andanças pelo ashram eram divertidas, mas muito cansativas. As distâncias percorridas, as subidas e descidas me levaram a perceber o quanto eu estava acima do peso e fora de forma. Para uma ex-atleta, era uma constatação deprimente. Durante o dia, passei a sentir dores por todo o corpo, articulações, ombros, costas, quadris, pernas e pés. Uma dor no arco do pé esquerdo que me incomodava já há alguns meses, voltou muito forte, tornando quase insuportável o caminhar. À noite, quando me recolhia e deitava na cama, era um grande alívio. A cada dia afirmava a mim mesma de iniciar uma atividade física, quem sabe o yoga, caminhar diariamente, promessas que eu sabia ser difícil de cumprir, já que nos últimos anos a minha determinação para praticar exercícios físicos estava muito abalada. E com esses pensamentos me entregava aos meus sonhos com a perspectiva de acordar cedo para outro dia muito especial na Índia.